Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Sociedade Democrática, Direito Público e Controle Externo. Brasília: Tribunal de Contas da União/Universidade de Brasília. 2006, 534 p.
Sempre que se discute papel do Estado, desempenho de máquina governamental, servir bem o cidadão, reformar o sistema burocrático e modernizar os aparelhos de gestão institucional, surge uma tentação poucas vezes refreada de orientar a análise dos mecanismos que desviam a administração pública de seus objetivos essenciais – compatibilizar eficiência e eficácia com equidade e democracia – para atribuir aos servidores públicos a responsabilidade por tais desvios e transformá-los em custos de manutenção do sistema que é preciso minimizar e até mesmo eliminar.
Para além disso, uma tendência recente incrementada pelo oportunismo propagandista, tende a oferecer a dignidade do servidor público – marajás, perdulários, ímprobos e outros [des]qualificativos – para o simbolismo expiatório que não hesita em atribuir função sacrificial a uma categoria social que tem sido garante da boa gestão do interesse publico.
Com efeito, a literatura foi sempre pródiga em destacar a respeitabilidade da função pública, mesmo quando a fina ironia de autores que primavam pela profunda compreensão dos matizes e das relações autênticas, preserva a boa descrição dos caracteres típicos de um determinado tempo. Pode-se encontrar isso em muitas passagens da monumental Comédia Humana de Balzac; assim como em Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, dois notáveis escritores brasileiros e, simultaneamente, pela vida toda, servidores públicos ativos e engajados exercitando cidadania em seu duplo ofício.
Ora, pensar Estado democrático é pensar a tarefa de refundação democrática da administração pública. Se o Estado democrático é fundamento para a transformação da cidadania abstrata em cidadania ativa e participativa, a mediação possível para uma institucionalidade livre de vícios, entre aqueles descritos por Raymundo Faoro [Os Donos do Poder], Sérgio Buarque de Holanda [Raízes do Brasil], Victor Nunes Leal [Coronelismo, Enxada e Voto] – paternalismo, autoritarismo, clientelismo, cunhadismo, filhotismo, nepotismo – está assentada no desempenho organizado, responsável, eficiente e profissional do servidor público.
A propósito da questão da administração pública e o regime de seus servidores, o historiador Toynbee chegou a formular uma teoria explicativa do sucesso dos países e dos Estados, tomando como exemplo o Império Romano. Para ele, a grande expansão de Roma não se deveu tanto ao seu formidável exército, mas sim ao seu funcionalismo civil, altamente capaz, responsável e bem remunerado e organizadamente distribuído em todos os espaços administrativos do Império [Recolhi o exemplo em Ronaldo Poletti, no livro “Redefinindo a relação entre o professor e a universidade: emprego público nas Instituições Federais de Ensino?, organizado por Cristiano Paixão e publicado pela Faculdade de Direito da UnB, vol. , da Coleção “O que se pensa na Colina”, Brasília, 2002].
A Emenda Constitucional nº 19/98, conhecida como Reforma Administrativa, alterou profundamente a relação do Estado com o agente público porquanto, na prática, flexibilizou a garantia constitucional da existência de um só regime para o servidor público.
Daí a importância de estabelecer parâmetros para uma qualificada relação entre Estado e funcionalismo público. No exame das situações comparadas, verifica-se uma preocupação constante com a perda, em vários países – Alemanha, Grã-Bretanha, França – de centralidade da condição estatutária tendente a um regime jurídico único de natureza administrativa, que confira ao servidor público a prerrogativa de atender as peculiaridades de um vínculo baseado no interesse público próprio à ação do Estado. Agora que a crise demonstrou a necessidade da intervenção qualificada do Estado para preservar o sentido social dos investimentos e da distribuição dos bens econômicos, mais se faz necessário recuperar uma característica fundamental da organização pública, que é justamente a participação expressiva de funcionários de carreira na ocupação dos postos centrais da administração do Estado.
Foi ao impulso desses fundamentos que o Tribunal de Contas da União e a Universidade de Brasília, por sua Faculdade de Direito, organizaram em 2005 o curso de Especialização Direito Público e Controle Externo voltado para os servidores do sistema de auditoria de contas dentro dos projetos de capacitação de pessoal do Instituto Serzerdello Corrêa (TCU).. O esforço compartilhado de realização do curso, conforme acentuei como seu coordenador, para além de materializar um projeto de capacitação científica e profissional, procurou mobilizar energias solidárias das instituições que com ele se comprometeram orientadas pelos valores descritos na fundamentação da proposta.
A realização do Curso procurou também estabelecer interconexões precisas entre os campos do Direito Público e da Teoria da Constituição e do Direito Constitucional, proporcionando uma visão abrangente com base em outros ramos dos saberes (Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica, Ciência Política e Hermenêutica), de modo a interligar sabres de áreas de conhecimento e de domínio conexo no plano das mudanças paradigmáticas que desde a Constituição Federal de 1988 reorientam as relevantes funções de controle externo a cargo dos Tribunais de Contas (p.13-20).
Os artigos que compõem este livro foram elaborados pelos alunos do Curso de Especialização Direito Público e Controle Externo ao longo do desenvolvimento de suas atividades programáticas. Eles representam sínteses temáticas destacadas por seus autores, em interlocução com os conteúdos do Programa, sua pertinência epistemológica e relevância técnica e respondem aos objetivos propostos pela Faculdade de Direito da UnB e pelo Tribunal de Contas da União, ao montarem o Curso. A produção dos textos se deu por meio de interlocução com os regentes das disciplinas que formam o eixo programático do Curso e as suas várias etapas respondem às exigências metodológicas também programaticamente fixadas.
Cada aluno-autor indicou um docente-orientador que acompanhou o processo de elaboração dos textos, fazendo registro desse acompanhamento e recomendando a aprovação final do trabalho para efeito de avaliação de desempenho. A indicação para publicar veio de bancas examinadoras constituída para esse objetivo, cujos pareceres, quando foi o caso, indicaram as modificações necessárias ao ajustamento dos textos respectivos às condições adequadas de publicação.
Analisados por seus conteúdos os artigos acabaram revelando elementos temáticos que facilitaram o seu agrupamento nas quatro partes em que são aqui classificados: Parte 1 – Constituição e Controle Externo; Parte 2 – Controle Social e Cidadania Participativa; Parte 3 – Democracia e Controle Externo; e, Parte 4 – Procedimento e Instrumentalidade no Controle Externo.
Nesta distribuição é possível que um ou outro texto possam estar localizados em conjuntos diversos do que o que lhes poderia designar a edição. Este ajustamento, entretanto, foi necessário para evitar excessiva fragmentação do sumário de temas.
Em última análise, nesta composição, os artigos apontam para um contexto em que Estado e Sociedade se transformam e nesse processo re-designam as instituições e as mediações que lhe dão sentido. Penso que neste processo a categoria controle, social e político, atinge uma dimensão vigorosa, tanto em seus aspectos jurídicos quanto técnicos, passando a constituir-se como uma estratégia valiosa para aferir a eficiência e a racionalidade das ações de governo, seu impacto na cidadania e, especialmente, nos direitos sociais dos cidadãos.
De fato, os artigos que compõem Sociedade Democrática, Direito Público e Controle Externo caminham nesta direção. Eles revelam uma disposição funcional, qualificada na experiência de re-fundamentação paradigmática que o Curso Direito Público e Controle Externo proporcionou aos seus autores, para pensar o controle externo no patamar de relevância política que a Constituição de 1988 lhe atribuiu.
Embora representem como conjunto a qualificada expertise da ação de controle exercida pelos autores a partir do seu ofício, os artigos apontam para um contexto em que Estado e Sociedade se transformam e nesse processo re-designam as instituições e as mediações que lhe dão sentido. Boaventura de Sousa Santos alude a um certo choque desburocrático que decorre das atuais relações entre Estado e cidadania, para indicar ser adequado definir os critérios que permitam aos cidadãos avaliar os seus resultados e apoiá-los ou resistir-lhes (O Choque Desburocrático, Constituição & Democracia – Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 3, março de 2006, p. 24).
Penso que neste processo a categoria controle, social e político, atinge uma dimensão vigorosa, tanto em seus aspectos jurídicos quanto técnicos, passando a constituir-se como – é novamente Boaventura de Sousa Santos quem o diz – critério fundamental para avaliar a eficiência e a racionalidade das ações de governo, seu impacto na cidadania e, especialmente, nos direitos sociais dos cidadãos (idem).
É nesse trânsito que o livro, a partir do Curso, incorporou a expressão que lhe completou o projeto, passando a intitular-se Sociedade Democrática, Direito Público e Controle Externo. Se nos aspectos técnicos já se nota a apropriação de vários de seus enunciados em estandares e arestos, inclusive no Supremo Tribunal Federal; é ainda notável surpreender-se em outras aproximações, achados avançados que se prestam a embalar novas categorias para pensar a dimensão democrática do controle, justificando a Parte 2 – Controle Social e Cidadania Participativa. Lembra Lygia Bandeira de Mello Parente (Participação Social como Instrumento para a Construção da Democracia: a Intervenção Social na Administração Pública Brasileira, p. 203-212), nesse sentido que pensar e realizar a participação popular e sua relação com o fortalecimento de práticas políticas e de constituição de direitos transcende os processos eleitorais e seus impactos sobre a cidadania.
Importante ter esse horizonte na conjuntura de refluxo democrático para recorrer às reservas republicanas de uma institucionalidade que se engrandeceu com a dignidade utópica de uma burocracia recuperada em sua dignidade política, para não se deixar arrastar na voragem autoritária que já não esconde a tentação de instrumentalizar o controle como arma para desarticular o protagonismo participativo da sociedade civil (o controle como ameaça da auditoria como modo de desmonte de políticas e de programas sociais).
Por isso é que o livro situa, assim, o controle externo como idéia-força de uma solidariedade fiscalizadora e participativa que confere ao Estado e ao seu aparato administrativo, comprometimento direto com as exigências sociais de submissão a parâmetros de inclusão, segundo princípios de uma verdadeira democracia redistributivista, alternativa às formas burocráticas facilitadoras de exclusões.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |