Coluna Latinitudes
A laicidade do Estado, à luz de uma constituinte “sob a proteção de Deus” – comparativos com a América Latina
“Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!” (Discurso de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1988)
É no preâmbulo mesmo que nos deparamos com a primeira grande polêmica sobre o estado laico. Quando se lê ali que a constituição foi promulgada “sob a proteção de Deus”. Que DEUS? Seria um Deus no sentido lato, fazendo menção à pluralidade de credos (e neste diapasão destacamos que a sociedade plural, fraterna e sem preconceitos também é citada no mesmo preâmbulo), ou seria o Deus do cristianismo, do qual apenas 3,6 % da população Brasileira não é devota?
A menção de Deus no preâmbulo sempre gerou questionamentos e debates – e muitas vezes embates mesmo – acerca do verdadeiro comprometimento constitucional para com a laicidade no estado democrático. Além disto, questionou-se também por bastante tempo a possível incongruência com o direito fundamental presente no artigo 5º, inciso VI que traz a inviolabilidade da liberdade de crença e de consciência e que assegura ainda o livre exercício de cultos religiosos, qualquer que sejam estes. Este imbróglio hermenêutico de interpretação constitucional foi superado na ADIN 2076, onde o STF sedimentou o entendimento de que as disposições do preâmbulo não tem força normativa e constitui apenas posição ideológica do constituinte.
E nesse ponto, é que circunda o cerne da nossa reflexão desta edição da coluna: o que, afinal de contas, um estado laico, se a constituição federal pode adotar posicionamentos ideológicos? Bom, primeiro cabe o destaque de que a própria democracia é um posicionamento ideológico. Assim, fica um pouco mais fácil entender porque encontramos a menção de Deus no preâmbulo, se considerarmos a esmagadora parcela populacional declaradamente cristã. O mais importante é que as minorias foram protegidas com a inviolabilidade de crença, com a liberdade de culto e isso faz do Brasil um estado não confessional, ou seja, sem uma religião específica elevada a status de religião oficial, e faz da nossa constituição federal de 88 verdadeiramente plural.
O nosso estado democrático de direito está inserido no grupo de países laicos justamente por isso, por não possuir um religião oficial e estar pautado na liberdade religiosa, não havendo, para tanto, a necessidade de se revestir como estado ateu. Até porque o Brasil, assim como outros países da América Latina, nasceu católico – não deixemos de considerar isso -, e com os processos de colonização, tanto o sincretismo de credos quanto a presença de religiões tidas como pagãs, como as indígenas e de culto à natureza, de matriz africanas, ou de vertentes orientais ou mesmo do eixo Árabe, todas elas constituíram a nossa sociedade contemporânea, nessa seara da religião. Então, por silogismo amigos, se um estado é laico, logo é plural e não necessariamente ateu, principalmente quando pensamos em América Latina e seu povo bastante religioso.
Noutro giro, será que nossos vizinhos tratam essa laicidade da mesma forma que nós? A nossa América Latina é composta de 20 países e desses 20 países a maioria adota a mesma posição que o Brasil, ou seja, a separação entre Estado e igreja. Mas, assim como o Brasil, a América Latina nasceu católica e, ainda hoje há resquícios dessa colonização nos textos constitucionais de países como Guatemala, Peru, El Salvador, Panamá, República Dominicana e Paraguai. Nestes países a liberdade de culto também existe, mas a igreja católica conta com algumas benesses exclusivas como doações de títulos de propriedade, isenção de impostos exclusiva, reconhecimento de personalidade jurídica e ensino religioso nas escolas públicas.
Esses países podem ser alocados numa espécie de transição dogmática, pois estes dispositivos que a gente acabou de citar e outros inúmeros exemplos já são objeto de ações de inconstitucionalidade ou mesmo se cogita em supressão de texto, na esfera do poder legislativo.
E, por último trazemos os 3 países latinos remanescentes que não avançaram ainda no processo de secularização que é tendência nos regimes democráticos. São eles: Argentina, Bolívia e Costa Rica. Embora a liberdade religiosa dos outros cultos esteja assegurada, o catolicismo é a religião reconhecida pelas constituições federais desses países. Esses países mantém um posicionamento constitucional como a Inglaterra que adota como religião oficial o Anglicanismo e a Grécia que reconhece a igreja ortodoxa.
O importante é que na América Latina, felizmente, não temos um estado confessional radical ou seja, que proíbe a liberdade de culto e de crença. Mas, por outro lado, temos bastante ocorrências de intolerância religiosa. De acordo com levantamento realizado pelo Ministério dos Direitos Humanos, o Brasil registra uma média de uma denúncia pautada intolerância religiosa a cada 15 horas. Outro ponto que fragiliza a laicidade é o flerte entre estado e igrejas, com a utilização da massa de fiéis como manobra de negócios políticos.
E isto corrobora a nossa missão, enquanto sociedade, de agirmos como agentes fiscalizadores, pois os ditames constitucionais existem para a proteção dos direitos fundamentais, hoje especialmente o direito fundamental à crença e ao culto, mas a manutenção exige constante vigilância. Temos que ter sempre em mente que a sociedade está em constante evolução e a carta constitucional é o espelho disto, devendo evoluir junto, se adaptar às mudanças de paradigmas, e se lacunas se apresentarem, que sejam supridas sempre com a consciência voltada para os princípios que forjaram a constituinte
Amicus autem protinus te vider! Até a próxima, amigos!
Referências bibliográficas:
REPORTAGEM. Brasil tem uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas. In Revista Veja. Disponível em: https://abr.ai/2WGF7wj
REPORTAGEM. O IBGE e a religião — Cristãos são 86,8% do Brasil; católicos caem para 64,6%; evangélicos já são 22,2%. In Blog Reinaldo Azevedo – Revista Veja. Disponível em: https://abr.ai/2WOO32W
STF. ADIN 2076. Voto e acórdão. Disponível em: http://bit.ly/2Gns0dV
Olivia Ricarte é Articulista do Estado de Direito. Servidora pública em Boa Vista-RR. Bacharel em Direito pela UNIFENAS/MG, foi bolsista do CNPQ em programa de iniciação científica. Foi advogada, é ex membro da comissão da mulher da OAB/RR. É especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional e em Filosofia e Direitos Humanos pela PUC. Integrou a Câmara de mediação e arbitragem Sensatus/DF. É graduanda em ciências sociais pela UFRR, é presidente regional da Rede Internacional de Excelência Jurídica. É coautora da obra “juristas do mundo”, lançada em 2017 em Sevilha, Espanha. Foi condecorada com as medalhas de mérito pela contribuição a ciência pelas universidades de Bari, na Itália e Porto, de Portugal. |
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