Manifestação da religiosidade no Direito e na Filosofia – perspectiva crítica dos Direitos Humanos

Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

cabeçalho

RESUMO

O objeto do presente artigo pretende trazer contribuições à “Teoria Imunológica do Direito”, na contribuição por último apresentada por Willis Santiago Guerra Filho à Teoria de Sistemas Sociais Autopoiéticos (“Immunologial theory of law“, 2014), o qual também pioneiramente apresentou um enfoque crítico desta teoria. Tal contribuição foi saudada pelos editores do livro “Luhmann Observed” (2013) como trazendo uma possibilidade de mudança no paradigma sistêmico autopoiético, pela introdução do enfoque imunológico, que permite perceber o trânsito da autopoiese à autoimunidade, a apontar o risco de uma autoimunização do sistema social mundial ante as deficiências detectadas no sistema parcial do direito, considerado por Luhmann com um sistema imunológico desde sua obra seminal “Sistemas Sociais” (“Soziale Systeme”, ed. bras. 2016). Busca-se verificar se a melhor resposta a tal crise da sociedade poderia estar na aplicação correta do princípio da proporcionalidade, como que vacinando-a contra conflitos sociais com a sua transformação em conflitos jurídicos, quando solucionados por meio de tal princípio, para evitar que haja antes um agravamento do que o aplacamento de tais conflitos. Examina-se o paradoxo dos direitos humanos e dos direitos fundamentais em face de sua concomitante proliferação e atual ineficácia, a demandar uma análise à luz da “Teoria imunológica do direito”, questionando-se se as minorias societárias podem ser tomadas como exemplificação da figura do “homo sacer”, de “abandono”, de exceções por meio das quais o direito os inclui, isto é, inclusão por meio da exclusão. A presente proposta aporta contribuição para a busca de respostas ao que se apresenta como uma crise autoimunitária do direito, verdadeira aporia e paradoxo, revelando que o ser humano é, assim, um ser abandonado, homo sacer (Agamben), já que todos no final somos homo sacer, e pelo próprio direito, que o devia proteger, donde haver uma tendência à autoimunidade social.

Visa-se, assim, verificar a resistência de certos axiomas do Direito, denominada de “resistência fundamental” por Jacques Derrida, analisando o Direito para além do formalismo, e reconhecendo-se a necessidade da interdisciplinaridade possibilitando uma fertilização mútua entre os saberes, a fim de se preservar a autopoiese do sistema jurídico e do ser humano. O Direito também se revela e se manifesta através da linguagem, sem se reduzir a esta, pois, de certa forma, a precede, enquanto modo de prescrição; há, pois, em tal relação uma composição entre os aspectos jurídico, religioso e mitopoético, visto de forma indissociável das práticas mágicas, já que repleto de mitos, ritos e atos performáticos. Assim como a Religião, também o Direito revela-se fundamentado em dogmas, havendo, ainda, associada a ambos, toda uma estrutura dogmática de conhecimento, a fim de especular-se racionalmente sobre tais dogmas. Do que se trata, portanto, é de analisar a relação entre Direito, Religião, Filosofia e mitopoética, já que tal relação revela-se na própria linguagem, na esteira do que propõe Rossenstock-Huessy (“A origem da linguagem”), com seu caráter sacramental (Johann Georg Hamann), exigindo um determinado contexto para que surja, devocional, reverente, ritualístico, mimético, por mítico-religioso.

 

INTRODUÇÃO

Visa-se com o presente artigo contribuir por meio de uma análise crítico-filosófico-zetética para uma melhor compreensão do princípio da proporcionalidade, bem como do próprio Direito, analisando-se sua natureza jurídica, o contexto de sua aplicação, bem como trazendo algumas críticas à jurisprudência do STF, à fórmula matemática de R. Alexy para o sopesamento, por não ser adequada ao fim a que se destina, qual seja, conferir racionalidade ao método da ponderação, evitando-se o subjetivismo do intérprete, bem como à análise por parte de Virgílio Afonso da Silva. Por outro lado, busca-se verificar se o princípio da proporcionalidade poderia ser considerado como um pharmakon, entendido desde a origem da tradição filosófica em seu duplo sentido na medicina, de remédio e veneno, a depender de como se dê sua aplicação, e uma resposta tanto adequada quanto adequadora à chamada crise autoimunitária do Direito, ao estado de exceção generalizado nas sociedades de corte ocidental, Estado de não direito, contrário ao Estado de Direito, ao Estado Constitucional de direitos fundamentais. Sua correta aplicação daria garantia de um julgamento verdadeiro, de responsabilidade no julgar e congruência entre as diversas decisões semelhantes envolvendo conflitos entre direitos e princípios constitucionais, necessitando toda uma argumentação extra para se justificar a alteração do posicionamento dos Tribunais, a fim de não se tornarem apenas a boca da lei a que se referiu Montesquieu, mas sim a boca do Direito. Assim se poderia evitar, como afirma Agamben na obra “Pilatos e Jesus”, um processo sem juízo, sem um julgamento verdadeiro, ou um processo impossível, um simulacro de processo, sendo esta a mais severa objeção que se possa levantar contra a incidência na vida do Direito.

Foto: Pixabay

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Há uma relação de fundamentalidade entre o princípio da proporcionalidade e a teoria sistêmica desenvolvida por N. Luhmann, já que cada vez mais nas sociedades hipercomplexas da pós-modernidade se verifica a necessidade da adoção de procedimentos para oferecer soluções jurídicas aos seus problemas cada vez mais complexos, tendo o princípio da proporcionalidade também uma carga procedimental, relacionando-se em diversos aspectos à teoria luhmaniana.

Partindo-se do conceito do Direito de N. Luhmann como sendo o sistema imunológico da sociedade com a função de proteção contra os conflitos sociais considerados como doenças, mas não com a exclusão de tais conflitos, e sim com os conflitos mesmos, elaborados normativamente, verifica-se o risco de advir uma espécie de autoimunidade, quando aquele sistema que deveria proteger o sistema social não distingue adequadamente o que haveria de atacar, para defende-lo, e termina voltando-se contra ele mesmo. Segundo Luhmann e sua teoria sociológica de sistemas, o Direito é um dos “sistemas funcionais” do sistema social global que integraria o “sistema imunológico” das sociedades com a função de reduzir a complexidade do ambiente, da realidade social, absorvendo a contingência do comportamento social, ao garantir certa congruência entre as expectativas de comportamento dos indivíduos, e a generalização dessas expectativas, pela imunização do perigo de serem decepcionadas, em suma, é o Direito conceituado como “generalização congruente de expectativas comportamentais”, fornecendo “uma imunização simbólica de expectativas contra outras possibilidades”, imunizando as sociedades de conflitos entre seus membros, não pela negação dos conflitos, isto é, contra os conflitos, e sim com os conflitos[1].

A questão da autoimunidade vem sendo trabalhada por autores tais como J. Derrida, quanto à religião, R. Esposito, quanto à política e Willis Santiago Guerra Filho quanto ao Direito, na esteira de Luhmann, bem como, com base naquele primeiro, também por Andrew Johnson, John Protevi e Michael Nass, e estaria presente quando ocorre a perversão do direito, com o desrespeito a direitos fundamentais, a direitos humanos e principalmente à dignidade humana, valor axial de todo ordenamento jurídico que se considera um Estado Democrático de Direito; relaciona-se, outrossim, com a questão trabalhada por outros, como Gilberto Bercovici, ao mencionar o estado de exceção econômico permanente, com a suspensão da normatividade em razão de interesses econômicos, ou Pedro Serrano, ao referir o estado de exceção judicial, mas, em especial, por Giorgio Agamben, ao tratar da antiga figura jurídico-penal romana do “homo sacer” e do estado de exceção em que vivemos, com forte influência de Walter Benjamin e também de Jean-Luc Nancy, por seu conceito de bando, relação de abandono, tanto que tal filósofo é considerado por Agamben aquele que pensou com maior rigor a experiência da lei que está implícita na vigência sem significado, considerando toda a história do ocidente como “abandono”, assim como integraria a estrutura ontológica da lei[2].

No estado de exceção há uma coincidência entre o que está de acordo com a norma e o que a viola, havendo uma suspensão da ordem, uma exceptio, uma exclusão inclusiva, ou uma inclusão através de uma exclusão, a demonstrar que a estrutura soberana da lei tem a forma de um estado de exceção. A figura do “homo sacer” possuiria certa semelhança com o conceito de soberano, já que este também ao mesmo tempo está fora e dentro do ordenamento jurídico, ambos, da mesma forma como o ser “abandonado”, permanecem incluídos, apesar de sua exclusão (exceptio). A síntese da democracia atual seria então uma aporia, e o estado de exceção se revela como estrutura política fundamental em nosso tempo. A lei se instaura desde sua origem não como sanção, mas, sobretudo, no repetir-se do mesmo ato sem sanção, ou seja, como caso de exceção. Exceção no lugar da sanção.

Podemos afirmar que o estado de exceção apresenta-se como um espaço anômico, representativo da expressão força de lei sem lei, um elemento místico, ou melhor, uma ficção, pela qual o direito tenta incluir em si a anomia. Por meio de tal elemento místico, a lei sobrevive a seu próprio apagamento, correspondendo à expressão “FANTASMA DA LEI” e age como uma pura força no estado de exceção.

Roberto Esposito, em sua obra “Immunitas”, ao abordar o conceito de “imunidade” desenvolvido por Luhmann, o compara com conceitos de René Girard, Simone Weil e Walter Benjamin, afirmando a correlação, no sentido de potencialização, desdobramento, entre os termos biomédicos da imunidade e a imunização jurídica. Vai então afirmar que Luhmann interpretaria o dispositivo imunitário no sentido de que a imunização se tornou paradigma geral e universal da modernidade, e que a comunidade é a imunidade[3]. Em suas palavras: [4]

Mas a afirmação neutra de um negativo equivale a uma dupla negação: no universo luhmaniano a esta altura a comunidade não pode ser atacada pela doença que a ameaça porque já não existe – ou nunca existiu – enquanto tal. Não é mais que a interface de seu próprio sistema imunitário: a margem (…) ao largo de qual a imunidade se replica auto reflexivamente sobre si mesma. (…) com relação a sua forma clássica, resulta por sua vez imunizada pela violência implícita em sua modalidade homeopática. Para Luhmann o dispositivo imunitário do direito não implica a repressão violenta da comunidade no sentido de Benjamin, nem o sacrifício de uma vítima, seguindo o modelo de Girard (…). Por isso, desde seu ponto de vista, o exterior é interior, o conflito é ordem, a comunidade é imunidade. Não é casual que Luhmann ressalte como (…) uma série de tendências históricas sinalizam um compromisso crescente para se postular (…) uma imunologia social. A imunização se estendeu progressivamente do âmbito do direito aos âmbitos da política, da economia, da cultura, até assumir o rol de sistema de sistemas, de paradigma geral da modernidade.

Segundo a teoria luhmaniana o Direito é autônomo, pois ocorre a autoprodução de suas normas, bem como a auto constituição de figuras jurídico-dogmáticas, considerando o que é conflito para o direito, e estabelecendo soluções conforme o direito, ou seja, opera com seu próprio código, o que lhe mantém autônomo; e para tanto se faz necessário para tal autoprodução, ou seja, para sua autopoiese, elementos do meio ambiente, e como sistema autopoiético é essencial a formação de determinadas unidades, às quais de um modo geral se pode denominar “procedimentais”; portanto, para ser possível o acoplamento estrutural do Direito com outros sistemas sociais são necessários os procedimentos de reprodução jurídica, procedimentos legislativos, administrativos, judiciais, contratuais. O Estado Democrático de Direito depende de procedimentos, legislativos, eleitorais, e especialmente os judiciais, para que se dê sua realização, sendo a proporcionalidade de se considerar um desses procedimentos, ou parte essencial daqueles procedimentos judiciais. Portanto, o princípio da proporcionalidade relaciona-se com a procedimentalização do Direito, a legitimidade do direito pelo procedimento, a judicialização do ordenamento jurídico, a fim de se garantir a participação, um espaço público para discussão, com o procedimento, e suas garantias do amplo debate, publicidade, e isonomia, utilizado como instrumento não apenas da função jurisdicional, mas também das demais funções do Estado. Tal postulação encontra apoio em autores, além de Luhmann, como Habermas, R. Wiethoelter e John Rawls.

Historicamente, pode-se localizar o surgimento do princípio da proporcionalidade, como princípio constitucional, nas sociedades europeias, pós II Guerra Mundial, representando a falência tanto do modelo liberal de Estado de Direito, como também das fórmulas políticas autoritárias que se apresentaram como alternativa. E em um segundo momento também do modelo social e, mesmo, socialista de Estado. O Estado Democrático de Direito, então, representa uma forma de superação dialética da antítese entre os modelos liberal e social ou socialista de Estado. Em sendo assim, tem-se o compromisso básico do Estado Democrático de Direito na harmonização de interesses da esfera pública, ocupada pelo Estado, da esfera privada, em que se situa o indivíduo, e um segmento intermediário, da esfera coletiva, em que se tem os interesses de indivíduos enquanto membros de determinados grupos.

É certo que a ideia subjacente à “proporcionalidade”, de uma limitação do poder estatal em benefício da garantia de integridade física e moral dos que lhe estão sub-rogados, confunde-se em sua origem, como é fácil perceber, com o nascimento do moderno Estado de direito, respaldado em uma constituição, em um documento formalizador do propósito de se manter o equilíbrio entre os diversos poderes que formam o Estado e o respeito mútuo entre este e aqueles indivíduos a ele submetidos, a quem são reconhecidos certos direitos fundamentais inalienáveis.[5] A proporcionalidade, portanto, remete a princípio jurídico cujas origens radicam no processo de afirmação concreta dos direitos fundamentais, no bojo de um novo constitucionalismo.

Denominando-o pioneiramente entre nós por Willis Santiago Guerra Filho de o “princípio dos princípios”, “garantia das garantias” [6], o princípio da proporcionalidade se revela indispensável para solução correta dos denominados “casos difíceis” (hard cases), aplicável no caso de colisão entre princípios fundamentais da ordem jurídica, sendo capaz de dar um “salto hierárquico” (hierarchical loop – Hofstaedter), ao ser extraído do ponto mais alto da “pirâmide” normativa (previsto de forma implícita), para ir até a sua “base”, onde se verificam os conflitos concretos, validando as normas individuais ali produzidas, na forma de decisões administrativas, judiciais etc. Essa forma de validação é tópica, requerida nas sociedades hipercomplexas da pós-modernidade, permitindo atribuir um significado diferente a um mesmo conjunto de normas, a depender da situação a que são aplicadas. Esse tipo de validação substituiria a linearidade do esquema de validação kelseneano pela referência à estrutura hierarquicamente escalonada do ordenamento jurídico em circularidade, com o embricamento de diversas hierarquias normativas, as “tangled hierarchies” da teoria sistêmica.[7] Concretamente, isso significa que assim como uma norma ao ser aplicada mostra-se válida pela remissão a princípios superiores, insculpidos na Constituição, esses princípios validam-se por serem referidos na aplicação daquelas normas. Pode-se afirmar, pois, que a validação tópica encontra raízes no método tópico fundado por Aristóteles, na Idade Média propugnado por G. Vico (contra o positivismo racionalista cartesiano), hodiernamente postulado por Nicolai Hartmann, e recuperado no Direito por Theodor Viehweg em sua obra “Tópica e jurisprudência (= ciência do direito)”, sendo que tal método volta-se para a consideração do problema com questões abertas. A obra de Viehweg inaugura uma tendência que mais vem se destacando em teoria do direito no último terço do séc. XX, em alguns dos centros mais avançados como a Alemanha, a proposta do estudo do direito orientado para o tratamento de problemas concretos.

Trata-se do reconhecimento do recurso incontornável ao princípio da proporcionalidade, para ser possível, no âmbito do Estado Democrático contemporâneo, a harmonização de princípios e direitos dotados de fundamentalidade, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa; referido princípio representa “a principialidade dos princípios”, enquanto decorrente de sua relatividade mútua, o que os diferencia dos valores, absolutos e das regras, aplicadas na forma do “tudo ou nada”, portanto, desprovidas de qualquer “dimensão de peso”. Por conseguinte, o traço distintivo entre regras e princípios, e entre princípios e valores, seria a característica de relatividade dos princípios, pois não há princípio do qual se possa pretender seja acatado de forma absoluta, em toda e qualquer hipótese. Daí se dizer que há uma necessidade lógica e, até, axiológica, de se postular um “princípio de relatividade”, que é o princípio da proporcionalidade, tal como concebido no campo jurídico na tradição germânica, como um princípio, também, de “relatividade”, o qual determina a busca de uma “solução de compromisso”, respeitando-se mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, e procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), sem jamais lhe(s) faltar minimamente com o respeito, isto é, sem ferir o “núcleo essencial”, onde se encontra entronizado o valor da dignidade humana, princípio fundamental e “axial” do contemporâneo Estado Democrático. Este posicionamento acerca da dignidade humana como núcleo essencial de todo direito fundamental, conteúdo intangível que jamais poderá ceder, o qual deverá ser protegido pelo princípio da proporcionalidade em sentido estrito, segue a orientação de Willis Santiago Guerra Filho, sendo, contudo, ainda um posicionamento minoritário, já que prevalece na doutrina e jurisprudência pátrias a posição relativista de Luís Virgílio A. da Silva e de R. Alexy.

Por conseguinte, o princípio da proporcionalidade, embora não esteja explicitado de forma individualizada na CF88, é uma exigência inafastável da própria fórmula política adotada por nosso constituinte, a do “Estado Democrático de Direito”, pois sem a sua utilização não se concebe como bem realizar o mandamento básico dessa fórmula, de respeito simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. Assim sendo, entende-se que o princípio da proporcionalidade deriva e está vinculado à Cláusula do Devido Processo Legal em sentido substancial, pois para se ter um Estado de Direito com respeito à dignidade humana, isto é, que seja também democrático, pressupõe-se uma compatibilização de legalidade (Estado de Direito) com legitimidade (Democracia), obtida, em última instância, pela aplicação, no âmbito de processos judiciais, administrativos e outros, precisamente, do princípio da proporcionalidade.

Quanto à natureza jurídico-dogmática, entende-se[8] que não deveria ser reduzido o princípio da proporcionalidade a mero método ou critério de interpretação e aplicação do Direito, ou ainda a um postulado, como pretende notoriamente Humberto Ávila, desconsiderando-se todo o conteúdo normativo desse princípio, sendo um dever e não uma faculdade do intérprete sua aplicação e concretização, sob pena de inconstitucionalidade da decisão jurídica. Portanto, o princípio da proporcionalidade consubstancia verdadeira garantia constitucional, imanente ao Estado de Direito contemporâneo.[9] No mesmo sentido, Ernesto Pedraz Penalva.[10] Não deve, outrossim, ser confundido, também, já que é o princípio da proporcionalidade uma prescrição, com um cânone da nova hermenêutica constitucional, que remete à mesma ideia que ele, a sabe, aquele da conformidade prática, também dito da harmonização e, entre nós, da cedência recíproca.[11]

Em assim sendo, o princípio da proporcionalidade se consubstanciaria em uma garantia fundamental, ou seja, direito fundamental com uma dimensão processual, de tutela de outros direitos – e garantias – fundamentais, passível de se derivar da “cláusula do devido processo”,[12] visando a consecução da finalidade maior de um Estado Democrático de Direito, que é o respeito à dignidade humana.

A circunstância dos fatos serem subsumidos às regras, e quando em conflito ocorrer uma antinomia a ser resolvida na forma do tudo ou nada, ao contrário dos princípios, que exigem um sopesamento, e que somente irão colidir em concreto, já esclarece não poder ele, por hipótese alguma, ser considerado uma regra, consoante entendimento de Virgílio Afonso da Silva, mas como princípio, na esteira de Willis Santiago Guerra Filho.

Da circunstância de ter o princípio da proporcionalidade seu conteúdo formado por subprincípios, passível de subsumirem fato e questões jurídicas, não se pode, contudo, vir a considerar o princípio da proporcionalidade mera regra, ao invés de verdadeiro princípio, como sustenta Virgílio A. da Silva,[13] pois não poderia ser uma regra o princípio que é a própria expressão da peculiaridade maior dos princípios, a qual Ronald Dworkin refere como a “dimensão de peso” (“dimension of weight”) dos princípios,[14] e Alexy como a ponderação (“Abwägung”) – justamente o que se contrapõe à subsunção nas regras.[15] E também, caso a norma que consagra o princípio da proporcionalidade não fosse verdadeiramente um princípio, mas sim uma regra, não poderíamos considerá-la inerente ao regime e princípios adotados na Constituição brasileira de 1988, deduzindo-a do sistema constitucional vigente aqui, como em várias outras nações, da ideia de Estado democrático de Direito, posto que não há regra jurídica que seja implícita, mas tão-somente os direitos (e garantias) fundamentais, consagrados em princípios  igualmente  fundamentais – ou, mesmo, “fundantes” –, a exemplo deste princípio de proporcionalidade.

Segundo Virgílio Afonso da Silva,[16] apesar de trazer grande contribuição no sentido de distinção entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, não interpreta corretamente a natureza jurídica do princípio da proporcionalidade, partindo de sua interpretação aos conceitos desenvolvidos por Robert Alexy, reiterando seu anterior posicionamento, exposto no texto “O proporcional e o razoável”, ao considerar ser regra a proporcionalidade, já que impõe um dever definitivo, sendo sua aplicação feita no todo, e não como os princípios, que exigem que algo seja realizado na maior medida possível diante das condições fáticas e jurídicas do caso concreto. Sustenta, portanto, a impossibilidade de se considerar a proporcionalidade como princípio, “pois não tem como produzir efeitos em variadas medidas, já que é aplicado de forma constante, sem variações”. [17] Conclui, então, que se trata de uma regra especial, uma regra de segundo nível, ou meta-regra, e neste ponto parece coincidir com o argumento utilizado por Humberto Ávila, embora este a qualifique como “postulado normativo aplicativo”, mas também considerando a proporcionalidade uma metanorma. Destarte, dispõe que a regra da proporcionalidade seria “empregada especialmente nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo”, ou seja, amplia o objeto de aplicação da proporcionalidade, para abarca não somente os direitos fundamentais, mas também em caso de interesse coletivo[18].

Outro ponto importante, é que Virgílio Afonso da Silva não concorda com a utilização, como sinônimo de proporcionalidade, da expressão “proibição de excesso”, embora em sua origem tais conceitos fossem intimamente ligados, afirmando que é assim considerado por Willis Santiago Guerra Filho, em uma interpretação, contudo, literal e equivocada[19], apesar de ser considerado como sinônimo de tal expressão igualmente por autores como J. J. Gomes Canotilho[20], por Gilmar Ferreira Mendes[21] e por Wilson Antônio Steinmetz, amparados na doutrina constitucional corrente em língua alemã[22]. Enquanto norma jurídica aquela que consagra a proporcionalidade deve apresentar algum funtor deôntico, a saber, proibido, obrigatório ou permitido. Daí que a proibição é aquela que corresponde a tal norma.

Na verdade, na esteira de Willis Santiago Guerra Filho entendemos que o princípio da proporcionalidade possui uma natureza tríplice – ou duplamente dúplice – por ser norma material de natureza dúplice, a de princípio e a de regra, mas também por não ser só norma material, pois é igualmente processual, ao consagrar um procedimento. E esta norma agasalha ou consagra uma garantia fundamental, derivada do devido processo legal. Além disso, dela deriva – ou a ela se relaciona – um cânone ou critério de interpretação constitucional, dito da concordância prática, da harmonização ou “cedência recíproca”. Enquanto o conflito de regras resulta em uma antinomia, a ser resolvida pela perda de validade de uma das regras em conflito, ainda que em um determinado caso concreto, as colisões entre princípios (no caso concreto) resultam apenas em que se privilegie o acatamento de um, sem que isso implique no desrespeito completo do outro. Não é suficiente, para caracterizá-la como mera regra – ou “metaregra”, o que em nada altera o argumento – caracterizar como sua hipótese normativa a situação inespecífica da colisão de princípios e direitos fundamentais, como também é de se repelir o esvaziamento de seu conteúdo normativo, de seu caráter deôntico, ao qualificá-la como um postulado, fundamento para um raciocínio, que se pode ou não realizar, mas não para a exigibilidade de uma conduta.

O princípio da proporcionalidade contribuiria, destarte, para uma análise filosófico-crítica do Direito, por ser possível lhe atribuir, através de um juízo filosófico-crítico-experimental, a natureza de verdadeira norma fundamental, permitindo, assim, uma melhor compreensão e maior efetividade do Direito, confrontando a norma hipotética fundamental postulada por H. Kelsen, como sendo fruto do pensamento, meramente pensada, e não, um ato de vontade, portanto, que não seria verdadeiramente uma norma, nos termo do próprio A., de onde se conclui que seria incapaz de preencher a função de norma fundamental, a fim de validar toda a sequência de normas dela dependente.

Por conseguinte, a correta aplicação e desenvolvimento do princípio da proporcionalidade, em especial pelo Poder Judiciário, mas também pela doutrina pátria e internacional, permitiria alcançar uma perspectiva de humanização do Direito, sendo muitas as disciplinas do Direito que se revelam carentes de sua correta aplicação, em terrenos onde se desenvolvem com cada vez mais velocidade a técnica e o pensamento cartesiano, de per si, ocasionando uma carência de elementos de justiça, de proporcionalidade e de equidade.

 

Neste sentido, vale lembrar, com Jan Broekman,[23] que “proporcionalidade”, “sopesamento”, equilibrium são ideias inerentes ao pensamento jurídico e a contrapartida necessária de uma “justiça poética”, necessária para se atingir a “beauté géométrique” do Direito enquanto uma arte”, aproximando-se, pelo reconhecimento da necessária interdisciplinaridade, Direito, Filosofia e Artes, permitindo-se uma fertilização mútua dos saberes, ao invés de um Direito tido como fechado em si mesmo, estéril, comprometendo-se sua autopoiese.[24]

O Direito demanda uma nova interpretação, e neste sentido, a importância da tese de doutorado em filosofia de Willis Santiago Guerra Filho, “O conhecimento imaginário do Direito”, [25] considerando-o como um produto do desejo, com mesmo estatuto dos sonhos, mas um sonho não individual e sim coletivo; é o Direito visto, percebido e concebido sempre in fieri, nunca já pronto e acabado, aproximando-se das artes, da criatividade, da poética e do erotismo (“Teoria poética do direito”, “Teoria Erótica do Direito”), daí o caráter autopoiético do Direito, o que se coaduna perfeitamente com a noção da Constituição Federal com sua natureza procedimental, e da necessidade de práticas que reforcem e permitam a concretização de seus valores, ideais e direitos, bem como se coaduna com o princípio da proporcionalidade, com a exigência de uma nova hermenêutica constitucional, e com as características de tal princípio, demandando todo um procedimento, objetivo, racional e específico para sua correta aplicação, evitando-se o arbítrio, o subjetivismo, decisões teratológicas, o denominado “proporcionalismo” e o desequilíbrio entre os Poderes. O “Proporcionalismo”, referido na doutrina alemã como “superexpansão” (Oberdehnung) é repelido também na seara teológica, como se observa da Carta Encíclica “Splendor Veritatis”, de 06.08.1993, do Papa João Paulo II. Trata-se do uso indiscriminado do princípio da proporcionalidade, sem qualquer critério e objetividade, como se observa de diversos julgados do STF, como por exemplo, a PET 3388, caso Raposa Terra do Sol, envolvendo a questão da demarcação de terras dos Yanomami, consagrando a tese inconstitucional do marco temporal. O princípio da proporcionalidade é citado apenas como uma forma de comparação.

Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF

Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF

Outra importante crítica aos acórdãos do Supremo Tribunal Federal,[26] em especial da lavra da relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, é a aplicação da fórmula matemática, típica do pensamento cartesiano, e pois, técnico, limitado e limitador, com fundamento na doutrina de Alexy, de todo inadequada, insuficiente e insubsistente, deixando de contribuir para o fortalecimento da jurisdição constitucional. Não raramente, a proporcionalidade vem sendo aplicada, contudo, sem qualquer critério ou congruência pelo Supremo Tribunal Federal, pois não há uma consistência nos diversos julgados, sendo aplicada ora como sinônimo de razoabilidade, adotando a fórmula de que é proporcional aquilo que não extrapola os limites da razoabilidade, ora como mero recurso a um topos, com caráter meramente retórico, e não sistemático, ora sendo apenas citada mas não fundamentada de forma adequada, por meio de seu procedimento e seus três sub-princípios.

Questiona-se, portanto, a aplicabilidade da fórmula matemática de Alexy, considerando-se esta ilegítima para o fim a que se destina, qual seja, promover a ponderação entre princípios e/ou direitos fundamentais envolvidos em conflito no caso concreto e dar uma fundamentação de racionalidade a tal ponderação, por resultar em uma escolha arbitrária, e subjetiva de valores a serem consignados nos algorítimos de tal fórmula, não contribuindo, neste ponto, para a necessária busca de um procedimento objetivo, racional e não discricionário, subjetivo e arbitrário. Com a fórmula matemática pressupõe-se de forma absoluta que ao se adotar a mesma os julgadores não incidiriam em qualquer subjetividade ou juízo de valor. Cabe lembrar, que a proporcionalidade, não garante por si só a objetividade do julgamento, já que esta objetividade não é garantia nem mesmo na aplicação de regras pelo método da subsunção, pois sempre há necessidade de se interpretar.  O problema, no entanto, está na atribuição dos valores contidos na fórmula, sendo questionável a possibilidade de atribuir valores hierárquicos abstratos a cada um dos valores ou princípios. De qualquer forma, parece estar excluída uma atribuição intersubjetiva inequívoca de números para as intensidades de realização. Não é possível inferir um resultado a partir de uma quantificação fixa. Assim, não gera certeza e segurança juridica tal fórmula já que para fixar o peso de cada fator envolvido basta que o jurista “manipule”, conforme seus interesses e ideologia, o peso de cada variável. Se o jurista for contra o aborto, basta que ele atribua um valor bem elevado para a vida do feto e um valor irrisório para a liberdade de escolha da mulher, ou o inverso.

Entre os diversos críticos à fórmula matemática de Alexy, tais como Daniel Sarmento, Nils Jansen, Kent Greenawalt, entre outros, é J. Habermas quem pode ser destacado como um dos mais fortes críticos, em seu livro “Direito e democracia. Entre Faticidade e Validade”[27]/[28].

Virgílio Afonso da Silva traz importante crítica à fórmula matemática de Robert Alexy,[29] entendendo que a mesma corresponderia à fórmula de otimização proposta por Vilfredo Pareto, conhecida por “eficiência de Pareto” e que Alexy “vem propondo a utilização de elementos numéricos para uma maior controlabilidade da argumentação nos casos de sopesamento”, mas que não seria possível alcançar uma exatidão matemática, nem substituir a argumentação jurídica por modelos matemáticos e geométricos, podendo servir tais modelos, quando muito, de ilustração, pois a decisão jurídica não é nem uma operação matemática, nem puro cálculo. Portanto, no seu entender, mais importante que buscar fórmulas matemáticas, é a busca de regras de argumentação, critérios de valoração ou a fundamentação de precedências condicionadas. E continua o A: “(…). Mesmo em um modelo simples como esse, não há, por razões óbvias, critérios matemáticos, que respondam a questões como: “que medida realiza melhor o objetivo?” Ou “que medida restringe menos o direito afetado?”. Perguntas como essas envolvem, necessariamente, uma valoração subjetiva por parte do juiz”. (…). Saber, em uma situação hipotética como essa – que, de resto, não parece difícil de ser encontrada em exemplos reais -, qual seria a medida necessária não é algo que possa ser mensurado de forma exata”[30].

Por sua vez, Luis Fernando Schuartz, de saudosa memória, com anterioridade, em seu livro “Norma, contingência e racionalidade. Estudos preparatórios para uma teoria da decisão jurídica”, [31] traz uma crítica original ao afirmar que a fórmula da ponderação não seria apta para modelar adequadamente o balanceamento de princípios, podendo ocasionar um “delírio racionalista”, em suas palavras: “como assegurar o acesso aos valores concretos das variáveis relevantes que servem de dados para efetuar os cálculos da maneira especificada na fórmula”.

Outrossim, questiona-se a interpretação equivocada da natureza jurídica do princípio da proporcionalidade, ora sendo considerado como simples regra, ora como uma pauta e/ou um valor, ora como sinônimo do princípio da razoabilidade, ou do princípio do devido processo legal. Observa-se o entendimento do Min. Eros Grau, na Adin 1040, considerando a proporcionalidade como sinônimo de equidade, não sendo, no seu entender, a proporcionalidade um princípio, mas uma pauta – assimilável à posição, tão difundida quanto equivocada, de Humberto Ávila, que atribui à proporcionalidade a natureza de um mero postulado, confundindo os planos do que é deôntico, da ordem do dever ser, como um princípio jurídico, com aquele gnosiológico, da ordem do conhecimento, ou ontognosiológio (Miguel Reale), isto é, da ordem do ser tal como se dá a conhecer -, um (mero) critério de interpretação, a ser empregado com base exclusivamente no subjetivo (e incerto) alvedrio do intérprete.

Defendemos que a correta interpretação do princípio da proporcionalidade deve se distanciar da posição relativista, adotada entre nós comumente na jurisprudência, bem como na doutrina, destacando-se a posição de Virgílio Afonso da Silva, na esteira de seu orientador de doutorado, Robert Alexy, sem a necessária, exigível, além, de correta observância também ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, estabelecendo-se uma correspondência entre o fim a ser alcançado e o meio empregado, que deve ser juridicamente a melhor possível, com respeito, ao “conteúdo essencial”  de todo direito fundamental, isto é, com o respeito à dignidade humana, ou seja, a aplicação do princípio da proporcionalidade como uma relação de subsidiariedade entre adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, no sentido de que “a finalidade pretendida com a restrição deve ser constitucionalmente legítima ou possível”.[32] Trata-se de posição absolutamente relativista, quando a que defendemos, na esteira de Willis Santiago Guerra Filho, ao contrário, seria relativamente absolutista, ao fincar como limite absoluto à relativização o respeito ao conteúdo mínimo de um qualquer princípio ou direito fundamental envolvido na colisão, onde se encontra entronizada a dignidade da pessoa humana.

Buscou-se, portanto, verificar se o princípio da proporcionalidade poderia ser considerado como um pharmakon, ora um veneno ora um bálsamo, um remédio, já que se bem utilizado, mediante a necessária observância de um procedimento racional, objetivo, a evitar excessiva subjetividade do julgador, ou arbítrio e falta de racionalidade, contribuiria para uma maior racionalidade do Direito, para a preservação dos direitos fundamentais e da dignidade humana, sendo esta sua função, bem como para a objetividade dos julgados, e portanto, para a segurança jurídica e fortalecimento do Estado Democrático de Direito e para o fortalecimento da jurisdição constitucional, já que tal princípio é mesmo uma exigência da racionalidade no Direito, relembrando-se da equivalência das expressões razão e proporção na matemática, por exemplo. Por outro lado, poderá ser um veneno, caso seja aplicado de forma irresponsável, sem critério, sem observância de todo o procedimento racional e objetivo necessário, analisando-se caso a caso os três subprincípios da proporcionalidade, quando então poderá ocasionar uma maior subjetividade e arbitrariedade dos julgados.

Por conseguinte, o princípio da proporcionalidade exige que seja observada sua reflexividade, sob pena de ocorrer o que é denominado pela doutrina germânica, de super-expansão, com seu uso de forma abusiva e excessiva, o que vem sendo também denominado de proporcionalismo, o qual é combatido até mesmo na seara teológica, como se observa da Encíclica Splendor Veritatis. Por derradeiro, devemos lembrar que não obstante tais conceitos aparentemente contrapostos, de doença e cura, que uma nova abordagem talvez se faça presente, ainda que resgatando uma antiga, como por exemplo na questão da cura para o célebre alquimista Paracelso, enquanto critério hermenêutico e um princípio de intervenção ativa frente ao mal, no sentido de que o que sana não é mais considerado como o princípio alopático do contrário, mas o homeopático do similar, ou seja, o que cura é o veneno mesmo.

O sistema imunitário apresenta-se assim constituído sob uma aporia, já que seu funcionamento implica a presença de um motor negativo, o antígeno, o qual não deve simplesmente eliminar, mas sim, o reconhecer e o incorporar, para poder neutralizá-lo, havendo, contudo, uma falha de tal sistema imunitário, pois o mesmo se volta contra si mesmo, pelo excesso de defesa do organismo.[33] Há uma desproporção, um excesso de proteção por parte do sistema imunitário, o que poderia ser resolvido mais uma vez com o recurso ao princípio da proporcionalidade, desde que na devida (pro)porção.

A partir da constatação do discurso do Direito como uma neurose, voltado à crença que trabalha para construir fetiches, servindo à mentalidade opressora, de um saber “que faz a lei transbordar efeitos doentios de amor”,  com reflexos na sua (auto)fundamentação única e exclusivamente na violência, algo que se mantém desde a sua origem até hoje, buscou-se verificar, a partir do reconhecimento da doença, qual a salvação, o remédio, o pharmakon, com vistas a contribuir para alternativas à atual crise autoimunitária do Direito. Neste sentido além da utilização correta do princípio da proporcionalidade verifica-se o resgate de um vínculo transcendental das instâncias sociais tal como no passado da modernidade – com a Religião e/ou com a magia, que originam, a exemplo da mitopoética presente em manifestações as mais diversas.

Assim sendo, é vital o resgate de tal fundamentação superior do Direito, que poderia se dar em termos sacramentais ou sacrificiais, considerando-se o termo “religião” também no sentido de re-colher, re-ligar, re-leituras, de re-articular diversos campos do saber. A legitimação do Direito não mais em uma forma superior mas em violência pura é vislumbrada com a transformação da biopolítica em tanatopolítica, em uma política não da vida, mas da morte, da exclusão, do isolamento, dos campos de extermínio, operando o viver de uns com a produção da morte dos (nos) outros.

Portanto, a aproximação do direito com a teologia ou de qualquer outra forma de saber com a mesma estrutura visa alcançar respostas às perguntas fundamentais, formuladas a partir de uma reflexão, relativas às inquietações maiores dos seres humanos, a respeito de sua origem, de sua essência, assim como de sua realidade e acerca do futuro, considerando-se a teologia como religião, uma “re-ligação” do ser humano e suas múltiplas formas de conhecer a si e entre si, resultando numa ressignificação de termos usualmente tidos como verdade absoluta ou dogmas.

Portanto, no passado a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências filosóficas, sendo explodidas as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens normativas no presente, com o predomínio do pensamento científico e o correlato processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere Max Weber.

A fim de que possamos portanto, construir novas bases há a necessidade da recuperação da nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência, sendo indispensável, outrossim, a aproximação entre as mais diversas formas de criações humanas, artes, mitologias, ciências, religiões, filosofias, permitindo-se uma compreensão aprofundada e renovada do Direito e do ser humano.

 

Referências:

[1] Cf. N. Luhmann, Sociologia do Direito, vol. I, trad. G. Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 110, pp. 104/105, passim.

[2] “Homo sacer I – O poder soberano e a vida nua”, UFMG, Minas Gerais. Editora UFMG, 2007, 2a. reimpressão, p. 59-60. P. 22.

[3] R. Esposito, Immunitas. Protección y negación de la vida. Buenos Aires: Amorrortu, 2009, p. 68-70.

[4] Ibidem, p. 75, p. 36-37.

[5] Paulo Bonavides refere-se ao princípio da proporcionalidade como “antiquíssimo”. Cf. Curso de Direito Constitucional, 5ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 362.

[6] Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1989 (2a. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, no prelo), pp. 69 ss.

[7] Cf., v.g., Marcelo  Neves, A Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 66 ss., texto e notas 71 e 78.

[8] Cf., v.g., “O Princípio Constitucional da Proporcionalidade”, in: Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de Teoria Constitucional, cit., pp. 69 ss., esp. pp. 84 ss.; Id., “Os Princípios da Isonomia e da Proporcionalidade como Direitos Fundamentais, in: Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (RPGE-CE), n. 13, Fortaleza: IOCE, 1994/1995, p. 36; Id., “Princípio da Proporcionalidade e Teoria do Direito”, in: Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides, Eros R. Grau, & Id.  (eds)., São Paulo: Malheiros, 2001.

[9] O Princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário, São Paulo: Dialética, 2000, pp. 54 a 56.

[10] Constitución, Jurisdición y Proceso, Madrid: Akal, 1990, p. 289.

[11] Luis Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 204 e também Dieter Medicus, “Der Grundsatz der Verhaltnismäbigkeit im Privatrecht”, in: Archiv für die Civilistische Praxis, n.  192, 1992, pp. 53 s., considera o princípio da proporcionalidade um meio de interpretar a Constituição, similar ao método teleológico, também ressaltando-se a proposta de Humberto B. Ávila, em “A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade”, in: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: FGV, n. 215, 1999, pp. 151 ss., de que se considere a proporcionalidade um dever derivado de um postulado. Em sentido semelhante ao postulado por Willis Santiago Guerra Filho o entendimento de Vitor Hugo N. Honesko, A Norma Jurídica e os Direitos Fundamentais. São Paulo: RCS, 2006, p. 129.

[12] Cf., por todos, Nelson Nery Jr., Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 5a. ed., São Paulo: RT, 1999, p. 153.

[13] Cf. Luís Virgílio Afonso da Silva, “O Proporcional e o Razoável”, in: Revista dos Tribunais, vol. 798, 2002, p. 26. Em apoio ao posicionamento aqui assumido v. Francisco Fernandes de Araújo, em Princípio da Proporcionalidade: significado e aplicação prática, Campinas: Copola, 2002; Marcel Mota, Pós-Positivismo e Restrições de Direitos Fundamentais, Fortaleza: Omni, 2006, pp. 127/130.

[14] Cf. Taking Rights Seriously, Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1978, p. 26 ss.

[15] O fato de Alexy, na famosa “página 100” da edição original da Theorie der Grundrechte, com apoio o professor de Direito Constitucional na Universidade de Heidelberg, Haverkate, referir à possibilidade dos “subprincípios da proporcionalidade” permitirem, tal como regras jurídicas, a subsunção, não implica, ipso facto, como pretende Luís Virgílio Afonso da Silva, loc. ult. cit., ser o princípio da proporcionalidade uma regra, pois o conteúdo de uma regra é a descrição (e previsão) de um fato, acompanhada da prescrição de sua consequência jurídica, e não outra regra. Também, pelo princípio lógico da “navalha de Ockham”, pelo qual não se deve multiplicar desnecessariamente os termos, sem que haja entes diversos a serem nomeados por eles, também não pensamos que deixe de haver sinonímia entre o princípio da proporcionalidade em sentido estrito e a proibição de excesso “de ação”, por implicar o princípio também em uma “proibição de (excesso) de omissão” (Untermabverbot).

[16]Direitos fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia”, cit., p. 167, 168. No mesmo sentido, esclarece ser a posição de Martin Borowski, “Grundrechte als Prinzipien”,  p. 115.

[17] “O proporcional e o razoável”, p. 03.

[18]  Ibidem, p. 02.

[19] Teoria processual da constituição, 3ª. ed.,  São Paulo: RCS, 2009, pp. 81-82.

[20] Direito constitucional e teoria da constituição, 2ª. ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 259.

[21] “O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras”, Bol. IOB 14 (2000), p. 372.

[22] Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 148.

[23] J. Broekman, “Poetic Justice and Perelman”, in: RECHTSTHEORIE, n. 23, Berlin: Duncker & Humblot, 1992, p. 178 ss.

[24] J. Commaille “Le droit comme science du politique”, in: VV. AA., L’art de la rechercheParis: La documentation Française, 1994, p. 35. De um modo geral, sobre a relação entre a poética e o direito, v. nossa Teoria Poética do Direito, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[25] Agora publicada com este título, Curitiba: Prismas, 2017.

[26] Mais extensamente em Paola Cantarini, Direito Comercial à luz do princípio da proporcionalidade – uma análise filosófico-poética, Saarbrücken: OmniScriptum, 2015. Id., Princípio da proporcionalidade como resposta à crise autoimunitária do Direito, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

[27] 2. Volumes, trad. Flávio B. Siebeneichler, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997.

[28] Daniel Sarmento, “Os princípios constitucionais e ponderação de bens”, in Ricardo Lobo Torres (Org), Teoria dos Direitos fundamentais, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001, p. 56-57); Nils Jansen, “Die Abwagung von Grundrechten”, in Der Staat, n. 36 (1997), p. 53;  Kent Greenawalt, Law and Objectivity, Oxforrd/New York: Oxford University Press, 1992, p. 204; Jan-Reinard Sieckmann, “Richtigkeit und Objektivität im Prinzipienmodell, in: ARSP, n. 83 (1997), p. 29. Sobre o tema em geral, da ponderação, cf. Karl Larenz, “Methodische Aspekte der Guterabwägung, in Fritz Hauss/Reimer Schmidt (orgs), Festschrift für Ernst Klingmüller, Karlsruhe: Verlag Versicherungswirtschaft, 1974, p. 247-248; Gerhard Struck, “Interessenabwagung als Methode”, in Roland Dubischar et al. (orgs), Dogmatik und Methode: Josef Esser zum 65.Geburtstag, Kronberg/Ts.: Scriptor, 1975, p. 172 e ss. e Ernst-Wolfgang Böckenförde, “Zur Kritik der Wertbegrundung des Rechts”, in Id., Recht, Staat, Freiheit: Studien zur Rechts-philosophie, Staatstheorie und Verfassungsgeschichte, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 85.

[29] Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, cit.,  p. 175-176; p. 177-178.

[30] Ibidem, p. 177-178.

[31] Cit., cap. 3 – nos limites do possível: balanceamento entre princípios jurídicos e o controle de sua adequação na teoria de Robert Alexy, p. 179 e ss; p. 218 e ss.

[32] De último, dentre aqueles de maior repercussão, tem-se o exemplo do voto-vista do Min. Luis Roberto Barroso, no Habeas Corpus 124.306 Rio de Janeiro, admitindo a interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre.

[33] Cf., mais extensamente, Willis Santiago Guerra Filho, Immunological Theory of Law, Saarbrücken: Lambert, 2014; Id., Autopoiese do Direito na Sociedade Informacional, 2a. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

 

 

*Paola Cantarini é advogada, professora universitária, artista plástica e poeta. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.

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