Coluna Democracia e Política
O pânico que vem das estradas
“Quando me vem o medo invento uma imagem”, frase de Goethe lembrada pelo filósofo Paul Virilio na abertura do capitulo “Cidade-pânico”, da obra homônima, hoje, se atualizada, não exigiria a necessidade de inventar uma imagem, bastaria registrar o movimento dos supermercados do último dia 24 de maio. Naquela quinta-feira, as redes sociais mostraram a imagem do pesadelo da classe média que apoiou o golpe nas imagens do seu desespero nos supermercados na busca por mercadorias, nos seus carrinhos cheios até a borda e nas aterradoras filas que revelaram que o seu verdadeiro medo é viver num “estado de sítio”, psicose que, para alguns, fez cair a ficha de que tirar Dilma Rousseff da Presidência pode não ter sido um bom negócio.
A greve dos caminhoneiros é o nosso 11 de setembro, ela é capaz de canalizar todas as nossas emoções e medos, daí a expressão “refém” ter sido dominante na cobertura do jornalismo político. É só pensar na imagem do Presidente Michel Temer, reunião após reunião de negociação, notadamente incomodado quando confrontado com a imagem das estradas abarrotadas de caminhões. Por mais que a imprensa tentasse culpar os caminhoneiros pelos prejuízo da população, apontado para o medo do desabastecimento, ainda assim uma simpatia emergia de norte a sul do pais canalizando. Não é só medo, mas também raiva.
Mas é disto que se trata? De fato, os caminhoneiros usaram e abusaram não de armas de destruição em massa, mas de armas de comunicação em massa. Não foi Bin Laden que desapareceu, mas as lideranças dos movimentos que deixaram de existir: quem e de onde partiam as orientações para continuar o movimento? Quem orientou para apenas movimentar os caminhões? Em realidade, se trata de uma guerra onde as estradas se transformaram no novo “teatro de operações” e os supermercados, no “teatro de operações por subtração”: falta de produtos colocou em pânico setores mais, digamos assim, … “confortáveis” da sociedade.
Supermercado-pânico
Virilio criou o conceito de cidade-pânico para mostrar que a catástrofe do século 20 é a cidade; os caminhoneiros criaram o conceito de supermercado-pânico para mostrar que a catástrofe da classe média defensora do golpe está logo ali, no supermercado: tire-lhes a possibilidade de consumo que eles não terão um lugar, ficarão perdidos. Bobagem: não estamos sem mercadorias, o Brasil não é a Venezuela, nossas mercadorias estão nas estradas. “Mas que parece a Venezuela, parece”, diz o comprador com medo à minha frente com seus dois carrinhos cheios no supermercado. Eu, de minha parte, só levo o que preciso.
Os caminhoneiros provaram ao país que sua estratégia é mais forte que a da esquerda. Eles podem estar divididos, podem conter em seu interior reacionários e progressistas, alguns podem estar a serviço dos patrões, mas eles conseguiram sucesso em apontar duas coisas. A primeira é que temos um governo débil, fraco e incapaz de garantir as condições mínimas de vida ao cidadão. A segunda que para fazer política é preciso união e estratégia. Dividida, a esquerda não conseguiu nenhuma dessas coisas. Seus caminhões atingiram o governo Michel Temer como os aviões atingiram as Twin Towers, mostrando não só a fraqueza do governo, mas também da sociedade, em nosso consumismo exacerbado, que também somos o sustentáculo da ideologia que move o mundo capitalista, na verdade, nossa câmara de tortura. É isso que significam nossos supermercados, templo de nosso consumismo, mas também o lugar onde nascem todos os medos – daí que, José Simão, sem perder a piada, afirma “não quero perturbar, mas já está faltando limão siciliano”.
Então, exatamente do que se trata tudo isto que vimos nos últimos dias, em seus supermercados vazios, nos postos sem gasolina, nas ruas desertas e na ausência de transporte coletivo? Tudo isso mostrou nossos medos individuais e coletivos, nunca se tratou de administrar a crise econômica – quando as refinarias serão liberadas, quando os caminhões voltarão a abastecer os mercados, etc – mas sim da primeira crise da democracia de emoção em que nossas democracias estão se transformando. Não é disso que falamos quando vemos o populismo de nossas lideranças, a raiva presente nos debates das redes sociais, a midiatização e todas as formas na qual o debate de argumentos vem sendo substituído dia a dia pelo debate de emoção?
A classe média infantil
Ora, o que se revelou na classe média conservadora com medo que invadiu os supermercados foi seu infantilismo: parcela de nossa sociedade não conseguiu atingir a adultez, porque para ser adulto é preciso se libertar dos medos imaginários, das angústias que provêm das confusas concepções de mundo. O espirito reacionário que ocupa corações e mentes vive dessa confusão, vive desses medos, vivem da inversão dos valores capazes de fazer do medo um sentimento legítimo, desculpando seus atores: “sim, sintam medo porque efetivamente vamos tirar sua tranquilidade, a partir do que você ama, o supermercado”! Isto, é claro, é uma ilusão.
A esquerda ficou paralisada entre o apoio tácito e a rejeição: apoio porque tratava-se de um movimento contra o governo; rejeição pelo elemento reacionário que pedia intervenção militar. Ora, o que o movimento dos caminhoneiros teve de revolucionário foi não ser nem de direita e nem de esquerda, mas ser unitário na heterogeneidade; sua estratégia foi revolucionária porque transformou as estradas em espaço de sua britzkrieg (guerra relâmpago) e assim conseguiu debilitar o governo e mostrar que o rei está nu: a instituição que tradicionalmente tem o dever de proteger o indivíduo dos problemas da existência não é mais capaz de fazê-lo. Aqui eles revelaram que foram capazes de imitar o estado na administração do medo, o que significa que fizeram do medo, de sua difusão e gestão, uma… política! Mais: os caminhoneiros inverteram o postulado de Sun Tsé: agora, a essência da guerra não é a rapidez, a essência da guerra é estar parado. Quanto mais tempo parado, mais poder tem os caminhoneiros – “tempo é a essência do poder” (Virilio).
Os caminhoneiros deram à esquerda uma aula porque nos disseram que a crise é profunda e que é preciso que o Estado reconheça seus limites: não é mais possível realizar o desejo capitalista liberal, defender o lucro a todo custo para os acionistas como Pedro Parente fez no caso da Petrobrás a custa do sacrifício dos caminhoneiros e de toda a sociedade. Se há alguma esperança que os caminhoneiros deram para a política de esquerda é que esta deve reconhecer a situação real em que se vive: bastam de divisões! Precisamos de um projeto, eis a questão. E tem de ser agora.
Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.
Se você deseja acompanhar as notícias do Jornal Estado de Direito, envie seu nome e a mensagem “JED” para o número (51) 99913-1398, assim incluiremos seu contato na lista de transmissão de notícias.