Coluna Lido para Você
A Bioética no Estado Brasileiro. Situação Atual e Perspectivas Futuras, Swedenberger do Nascimento Barbosa. Brasília: Editora UnB, 2010, 188 pp.
Desde a sua consolidação como campo de conhecimento autônomo a Bioética vem recebendo o aporte de várias contribuições teóricas que lhe servem de base de fundamentação e de organização de seus discursos. A partir de diferentes critérios que servem à estruturação desses discursos, é possível designar os modelos que lhe correspondem e até identificar a especialização de correntes que se distinguem em suas propostas, localização, formas de intervenção e reconhecimento de seus principais formuladores.
Assim, é possível falar-se, hoje, de uma bioética latino-americana, com modelo epistemológico bem definido e com lugar de reconhecimento, a partir do âmbito de enunciação que lhe assegurou auditório e contexto argumentativo preciso. Fala-se, neste sentido, de uma bioética de intervenção, cujas reflexões, adensadas nas condições limite de armação dos dilemas morais num continente ainda imerso num quadro de profundas e injustas assimetrias, apelam a uma politização dos modos de interpretação dos conflitos morais inscritos nesses dilemas.
Aludo aqui à caracterização que propõem Volnei Garrafa e Jorge Cordón (organizadores, Pesquisa em Bioética no Brasil de Hoje, São Paulo, Gaia, 2006), reivindicando, inclusive, uma bioética constitutiva de uma escola brasileira, “como uma nova disciplina mais abrangente, mais comprometida com a realidade, mais inclusiva que exclusiva, mais ‘politizada’; como uma nova ferramenta teórico-metodológica que tem responsabilidades concretas em relação não somente ao estudo e interpretação das questões éticas, mas, principalmente, com a formulação das respostas possíveis e mais adequadas para os problemas constatados na totalidade complexa que nos cerca e da qual – queiramos ou não – fazemos parte” (pág. 12).
Dessa bioética de intervenção que vem sendo firmemente designada, notadamente pelo Professor Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília, em comunicações (1998, Mar del Plata, Argentina), congressos (2002, VI Congresso Mundial de Bioética, Brasília) e artigos (Garrafa, V., Porto D., Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics 2003; 17: 399-416;), institucionalizou-se na UnB, um adensado programa de estudos e pesquisas pós-graduados em Bioética, a partir do Núcleo de Estudos em Bioética, vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares e à Faculdade de Saúde, em que veio instalar-se a Cátedra UNESCO de Bioética da UnB e cujo principal eixo investigativo é, exatamente, a “Bioética de Intervenção”.
O livro A Bioética no Estado Brasileiro. Situação Atual e Perspectivas Futuras, de Swedenberger do Nascimento Barbosa, inscreve-se nessa linha de estudos e pesquisas e traz para o campo epistemológico dos estudos desenvolvidos na UnB, valiosas contribuições.
Uma primeira contribuição consiste em estabelecer uma relação cogente entre bioética e direitos humanos. Depois que a UNESCO, em 2005, aprovou o teor da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, operou-se, inevitavelmente, essa relação, passando o campo a incorporar, além dos aspectos biomédicos e biotecnológicos tradicionais nos estudos da área, os temas da bioética social com foco na universalização dos direitos e do acesso aos serviços públicos de saúde e outros que dão concretude aos direitos de cidadania.
O autor aprofunda no livro, uma abordagem interdisciplinar que já vinha fazendo ao reivindicar uma mais estreita aproximação entre Bioética e Direito. Refiro-me ao seu artigo “Bioética e Direito: uma aproximação necessária”, publicado em “Constituição & Democracia”, Faculdade de Direito da UnB, nº 19, jan/fev de 2008, págs. 06-07. Ali, ele começa a problematizar as questões que procura agora esclarecer no livro: “Como, por exemplo, avançar para que os direitos pessoais, morais, sociais sejam garantidos à luz das novas tecnologias biomédicas? Como gerar a interface entre os princípios constitucionais de cidadania e dignidade humana e as urgentes decisões que envolvem condutas e normas morais em sua dimensão bioética e que interferem na vida humana? Como a atual ordem jurídica e as decisões judiciais podem ser consideradas e atualizadas como ‘justas’ sob os aspectos dos princípios e fundamentos do direito e da bioética? Como lidar com recursos escassos em saúde e as decisões sobre a vida? Entendemos que estas e outras questões devam se constituir em uma agenda de discussões multidisciplinares, não restrita à Academia, em que estejam resguardados entre outros elementos, a dignidade humana e as liberdades fundamentais. Um importante instrumento para que se faça este estudo e debate é a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, avaliando-se a sua aplicação à realidade brasileira, sua relação com a legislação do país e eventuais contradições existentes, o que implica necessariamente numa profunda análise de nossa ordem jurídica e de nossas condutas éticas e morais”.
Aliás, nessa mesma edição de C & D, corroborando o sentido político da aproximação ao tema, enquanto atenção pertinência que a bioética deve estabelecer com os direitos humanos tal qual propõe Swedenberger Barbosa, são coligidas outras leituras já que se tratou de um numero temático, porém, sempre interdisciplinar como pretendiam os editores do tabloide – os Grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua – cabendo por em relevo a entrevista concedida pelas professoras Débora Diniz (antropóloga) e Tatiana Lionço (psicoóloga), sobre o tema Bioética, Gênero, Diversidade Sexual e Direitos Fundamentais: um Debate Necessário (pp 12-13), elas também trazendo em sua aproximação ao campo a preocupação de aferir mecanismos para a garantia da participação social, fundamentais em uma democracia.
Por isso que, uma outra importante contribuição presente no livro é a que deriva do seu próprio título. Com efeito, a realização dos direitos e da cidadania, numa sociedade complexa e desigual não é possível sem que se invente, construa e experimente novos paradigmas para a ação política transformadora, uma tarefa que, no estado de direito democrático passa pela sociedade organizada, mas que não pode prescindir da atuação dos agentes e das políticas públicas estatais. Esta dimensão, forte na abordagem de Swedenberger, vai aparecer depois no livro que ele organizou para o IPEA, com base em Seminário do qual decorre a obra: Bioética em debate – aqui e lá fora, organizador: Swedenberger do Nascimento Barbosa. Brasília: IPEA, 2011.
Também presente no Seminário vali-me do livro Bioética no Estado Brasileiro, para acentuar essa perspectiva. Com efeito, tal como salientei, o livro do professor Swedenberger Barbosa, editado pela Editora Universidade de Brasília, é resultado desse campo e dessa perspectiva de investigação. Assim, não é apenas um campo de conhecimento, mas são também linhas editoriais que são abertas no sentido de criar matéria crítica para a constituição epistemológica desse campo. A novidade do livro, aqui eu diria, está no fato de que, para além dos estudos de natureza filosófica, para além dos estudos de natureza científica, dos estudos ligados às dimensões próprias da abordagem das humanidades, um outro elemento é trazido a campo, que é a consideração da importância da bioética como uma dimensão das exigências de políticas públicas. O livro de Swedenberger Barbosa, ao se referir à bioética no Estado brasileiro, traz essa perspectiva de que não basta um pensamento crítico, não basta uma construção de campo de cientificidade, é preciso desenvolver ações de transformação da condição da existência humana, como tarefa da política, tarefa do Estado. E aqui, para além do estabelecimento dessa relação necessária, a identificação de mediações que têm sido construídas na experiência recente de organização do Estado Brasileiro, no plano legislativo, no plano das políticas públicas – propriamente, a cargo do sistema administrativo -, no campo do Judiciário, de análise dessas políticas. Cabe aqui referência às leis que estão sendo elaboradas, como a lei de Biosegurança e, sobretudo, a importantíssima agenda que se coloca com a expectativa e a criação, já com projeto de lei (PL) nesse sentido, de um Conselho Nacional de Bioética no Brasil.
Esta dimensão está presente também na Constituição brasileira ao prescrever os direitos sociais como bens coletivos cuja concretização é dever do Estado. Mas ela supõe um Estado garante de políticas de inclusão social, coordenador de ações redistributivistas, definidas de forma participativa em espaços públicos de deliberação democrática.
O autor examina as condições atuais de repolitização do estado brasileiro e a sua capacidade de coordenar políticas legislativas, judiciais e de gestão de interesses divergentes e até contraditórios como condição para a realização de uma democracia participativa e redistributiva.
No livro, como em seus outros escritos (ver, especialmente in Sousa Junior, José Geraldo de et al., orgs., O Direito Achado na Rua. Introdução Crítica ao Direito à Saúde, Brasília, CEAD/UnB, 2008, págs. 281-289: “Financiamento da Saúde: ferramenta de concretização do direito à saúde”), o autor chama a atenção para a responsabilidade do Estado e das instituições públicas em buscar soluções que conciliem escassez de meios e exigências de universalização. Soluções, a seu ver, que não percam de vista a igualdade como ponto de chegada da justiça social, o referencial dos direitos humanos e o reconhecimento da cidadania. Conforme igualmente, do autor,
Bioética y Derecho a La Salud: Dilemas (In Maria Célia Delduque, José Geraldo de Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa et al, orgs. Série El Derecho desde la Calle, vol. 6: Introducción Critica al Derecho a la Salud. Brasília: UnB/Opas/Fiocruz, 2012, pp. 268-279).
O livro de Swedenberger Barbosa traz para a bibliografia do campo bioético, num espaço acadêmico pioneiro e irradiador constituído na Universidade de Brasília, uma obra de referência, que abre perspectivas atuais e futuras para orientar políticas públicas de concretização de direitos. E serve de referencia para apontamentos posteriores do autor, expandindo o seu cuidado no sentido de não perder de vista a relação necessária entre bioética e direito à saúde e, a partir dessa relação identificar e confrontar os dilemas que se abrem para a discussão e a aplicação dos fundamentos éticos das ações e políticas de saúde pública.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |