Aonde estamos hoje?

Coluna Democracia e Política

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Estamos na contrarrevolução. Revolução é quando a esquerda toma o poder para ampliar direitos. Contrarrevolução é quando a direita toma o poder para reduzi-los. É sempre uma ruptura com violência. A direita voltou-se contra as mudanças democráticas porque colocaram em questão interesses oligárquicos. Como aponta o filósofo Wolfgang Leo Maar, a direita não quer uma sociedade, mas a semissociedade ”um ordenamento econômico válido para todos chamado mercado que faz as vezes de uma sociedade dotada de direitos e participação, mas só para uma restrita faixa da população”. É onde estamos.

Fim da solidariedade e êxtase do individualismo, esta é a situação dos sonhos dos neoliberais. Para estes, o capitalismo tornou-se incompatível com práticas democráticas. Agora, sequer uma esquerda adaptada ao poder serve a oligarquia. A consequência é o fim da inclusão pela educação, a tolerância a diversidade e o serviço público. Nasce a cultura protofascista capaz de acusar Marielle Franco nas redes sociais.

A oligarquia não agiu sozinha. Associou-se a interesses internacionais, contou com uma classe política atrasada e um judiciário submisso para impor o retrocesso democrático. Não estamos num estado de direito democrático: estamos num estado de direito oligárquico. O centro do poder deixa de ser o público para ser o mercado e o estado substitui suas políticas públicas pela violência de estado. Porquê? Porque todas as conquistas da democracia são vistas como ameaça a ordem mercantil. Fim da sociedade igualitária.

O crime perfeito da direita

A prisão de Lula vai ser o motivo para a volta as ruas? Espero que sim. O crime perfeito, ao contrário do que dizia Baudrillard, aconteceu. E no Brasil. A direita fez sua aparição e fez a esquerda de vítima com a prisão de Lula.

A esquerda não desaparece por banalização, mas por excesso de lucidez e a metástase é a melhor forma de descrever a decomposição da política atual “tudo desapareceria realmente por saturação, disseminação patológica, difusão virótica, proliferação excessiva e caótica, banalização, hiper-exposição, visibilidade exagerada e doentia. O excesso de luz faz desaparecer uma imagem”, diz Juremir Machado da Silva. Não é exatamente desta forma que está desaparecendo a esquerda, pelo seu excesso de exposição, pela disseminação patológica do ódio nas redes sociais, pela hiper-exposição dos tribunais, forma doentia de um sistema onde o excesso da política faz desaparecer a própria política?

A esquerda está, como os dinossauros, vivendo seu processo de extinção? Sim e não. Sim porque abandonou seu pensamento radical, exatamente como fizeram os demais partidos, voltando-se para a política corriqueira, cedendo aqui e acolá em nome do presidencialismo de coalizão. Não porque é uma força tão extraordinária que com a mesma velocidade que nasceu, vive sua agonia e renascerá, desde saiba se unir. Cadê a Frente de Esquerdas?

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A esquerda não foi capaz de perceber o esgotamento de suas estratégias, abandonou cedo demais o contato com as periferias urbanas e não sabe se unir. Pior: não foi capaz de combater a imbecilidade da direita, que com seus patos, panelas e discursos fascistas aprendidos na sala de estar ocuparam o espaço público. A esquerda pode ficar tranquila porque é a direita que tem razões para se preocupar: se a esquerda for extinta, o que farão depois do surto de conservadorismo, de reacionarismo, de retirada de direitos em todos os níveis, o que acontecerá?

Se Baudrillard dizia que “a guerra do Golfo não existiu”, podemos dizer também que a morte da esquerda também não. A derrota da esquerda no STF não sinaliza sua morte iminente simplesmente porque o antagonismo político não pode desaparecer, é parte da política, uma sociedade sem mal é tão impossível quanto uma sociedade sem bem.

Desmercadorizar as empresas

O principal dilema da esquerda é encontrar um modo eficiente de enfrentar o neoliberalismo, racionalidade que estrutura governantes e governados e reduz os trabalhadores a simples capital humano. Ela passa por desmercadorizar as empresas.

Pierre Dardot e Christian Laval defendem que é preciso instituir a empresa comum, isto é, torná-las uma instituição da sociedade democrática. Marc Sangnier, o pioneiro dos albergues da juventude, afirmava: “Não pode haver república na sociedade enquanto houver monarquia na empresa”. Empresários se tornam monarcas pelo seu poder e recusa a qualquer princípio eletivo na empresa, o que nega a democracia. Para Dardot e Laval isto “equivale dizer que a empresa está fora do Estado de Direito [mas] a empresa não pertence a ninguém porque ela é produtora de sociedade”.

O futuro não é da empresa capitalista mas da empresa comum, instituição com destinação social, capaz de dar voz aos assalariados que deliberam e decidem as suas orientações gerais. A empresa do futuro assimila o princípio da democracia representativa, já em prática em inúmeras cooperativas:  uma estrutura de decisões baseada em duas entidades, uma que representa os acionistas e outra que representa a empresa como entidade especifica. O que isso quer evitar? A lógica financeira que se move pelo critério do lucro e da mercadorização que decide pela extinção de empresas. O bicameralismo entre capitalistas e trabalhadores é a forma a criar o governo democrático da empresa que aceita o desafio de dividir a direção do processo produtivo com o trabalho.

Vai além, pois além de formas ativas de participação dos trabalhadores, a empresa do futuro terá a participação da sociedade, o controle cidadão. Atores sociais que tiverem interesse nas atividades das empresas participarão de seus conselhos de administração. A empresa do futuro irá resolver, de forma democrática, a questão do poder. No futuro, como no passado, só sobrevivem empresas capazes de se imaginar como uma instituição do comum e não como sistema de dominação do dinheiro e capazes de construir o mercado como instituição cívica, como parte da sociedade. Ou não sobreviverão.

Criança mimada que tudo quer, nossa classe empresarial ânsia pelo presente mais caro, mais generoso, mais vistoso, e o Prefeito, como bom “pai”, não mede esforços para abrir um sorriso largo na boca de seus filhos, transformando os bens coletivos em privilégios privados.

O patrimônio público como mercadoria

O problema é que tanto empresas quanto poder público seguem a mesma lógica da mercadoria. É só olhar a programação da semana de Porto Alegre. A prefeitura iniciou mais uma semana de Porto Alegre com uma redução de eventos, dos 400 do aniversário do ano passado para pouco mais de 100 no ano atual segundo o site da Prefeitura. Para os porto-alegrenses, nada há o que comemorar. Quando se faz aniversário, a primeira coisa a arrumar é a casa: para o prefeito, nem isso. As imagens são conhecidas: obras inacabadas, grama por fazer, descontentamento com a administração e desvalorização dos servidores.

Foto: Prefeitura de Porto Alegre

Foto: Prefeitura de Porto Alegre

Se os “cidadãos de bem, a Dona Maria e o seu José”, como dizia o candidato, não estão contentes, ao menos os empresários da cidade estão felizes. O Prefeito sempre lhes presta conta, seja em almoços ou jantares. E sempre com presentes que abrem os olhos da classe dominante: com a proposta de venda da Carris e do DMAE no atual governo, os bens públicos da administração se tornaram “o” presente, não para todos, mas para uma classe, a classe dominante.

Ao transformar a administração pública em “presente”, o Prefeito diz exatamente ao que veio. As políticas neoliberais são a racionalidade que transforma todos os bens públicos em mercadoria e os servidores em recursos humanos quando eles, ao contrário, são parte do comum, isto é, são patrimônio de todos. Privatizar a Carris não é salvá-la, é entregar bens públicos da capital construídos pelo investimento de todos os cidadãos à iniciativa privada, o presente dos deuses. Que empresário-criança não ficará feliz com tamanho presente? Tudo é mercadoria na gestão neoliberal do estado.

A data de 26 de março deveria ser de comemoração de todos os cidadãos, mas não é. Comemorar é de origem latina – commemorare – e significa trazer à memória. Mas também significa com-memorare, isto é, recordar com, recordar junto com o outro. Com mais de um ano de governo, neste aniversário, o Prefeito, com suas ações, não comemora com todos os cidadãos, mas apenas com uma parte. É, portanto, um aniversário triste para a cidade.

Curiosas ou cuidadosas?

Pior é que sequer a sociedade tem visão positiva do poder legislativo. Marcelo Gonzatto, em “É curioso, mas pode virar lei” (ZH 2/4), levanta iniciativas de vereadores da Câmara Municipal de Porto Alegre que são… curiosas. Das 385 iniciativas em tramitação, surpreende que o que chamou a atenção foram onze “medidas singulares ou com pouca aplicação prática”.

O vereador Rodrigo Maroni (Podemos) é o campeão de medidas “curiosas”, com 3 projetos, entre eles a entrada em campo de cachorros. A matéria lista outras iniciativas, como o Memorial do Orçamento, para a história do Orçamento Participativo, as concessões de títulos (27) e nome de ruas (29). Mas serão todas elas curiosas, como sugere a matéria, no sentido de… inúteis?

Tem o Maroni e sua pet agenda. Pois é… mesmo ela, tem seu sentido. A palavra curiosa tem a mesma raiz latina de cuidado, cura, no sentido de atenção e dedicação. Nesse sentido, curiosus significa meticuloso e abundante de interesse. É o caso dos projetos do vereador, você pode não concordar com seu conteúdo, achar ridículo, mas ele está sendo meticuloso com a agenda que escolheu para seu mandato e para o qual foi eleito.  É por isso que ele é um mal vereador?

Das iniciativas apontadas, o nome de ruas é uma agenda importante? Sim, pois serviços públicos essenciais são prestados dependendo do correto endereço do solicitante. Títulos honoríficos são importantes? Sim, pois são uma forma do parlamento em partilhar reconhecimento com órgãos e entidades da sociedade. Mesmo os projetos “curiosos” como o Memorial do Orçamento Participativo, é uma questão de opinião: não é importante resgatar uma experiência política que tornou a cidade atrativa, inclusive, para valorizar nosso potencial turístico?

Bater na política e nos políticos é uma agenda de mídia. Dá ibope aos jornais bater nos políticos. Mas o que é uma agenda para o poder público? O problema público é o objeto de trabalho do vereador. É identificar algo que pode melhorar. Enquanto os projetos identificados pela agenda da mídia envolvem a percepção da imprensa sobre aquilo que dá retorno ao jornal, a agenda política envolve o que a comunidade política considera importante para resolução. Essa é a diferença.

Não estamos na democracia, mas na “semidemocracia”, conclui Maar. Os bens públicos são substituídos pela exposição pública do que é partilhado passivamente e as redes sociais substituem o social e a luta. Os critérios mercantis tomam de assalto o Estado para impor privilégios econômicos para parcela da sociedade. Sequer as instituições políticas conseguem mudar sua imagem na sociedade enquanto os meios de comunicação mantiverem sua agenda contra o poder legislativo. Por isso, a volta as ruas é a oportunidade para aprofundar a recusa contra o ataque às instituições democráticas, luta contra o que está acontecendo e retomar para si práticas públicas, único antidoto contra a contrarrevolução antidemocrática oligárquica em andamento.

 

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Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

 

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