Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.
Wambert Gomes Di Lorenzo*
O princípio do bem comum é o princípio personalista de justiça política, decorre imediatamente do princípio da dignidade da pessoa humana e é estranho tanto às doutrinas individualistas e liberais quanto às coletivistas e totalitárias. Numa brevíssima composição, podemos afirmá-lo como o conjunto das condições necessárias para que a pessoa humana realize sua dignidade.
É um princípio que reclama a democracia como condição para sua realização. Sendo a democracia não é apenas o regime mais favorável para sua efetivação, mas o único regime capaz de realizá-lo politicamente. Sua realização implica o princípio de subsidiariedade e o de solidariedade, sendo eles, o triplex instrumental da realização da dignidade da pessoa humana.
Para compreender a idéia de bem comum primeiro é necessário imergir no conceito de bem, uma categoria fundamental da filosofia prática e da ética clássica. Aristóteles ensina que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem e que o bem propriamente humano é o fim. Os fins que vão além das ações são desejados de per si, enquanto que os que estão na própria ação são desejados em razão dos outros que lhe são superiores. Àquele que é buscado por si, e não razão de outro, dá-se o nome de fim último, os demais poderão ser chamados de fins intermediários. Ao que é buscado por si mesmo, sem razão de nenhum outro, é chamado de bem, ou antes, sumo bem.
Mas, um bem único, universalmente predicável dos bens ou capaz de existência separada e independente, jamais poderia ser alcançado pelo homem. Portanto, o bem do qual trata a ética é um bem atingível, um bem prático. Não é dado a priori, mas descoberto pelo sujeito.
Entretanto, qual seria esse sumo bem, esse fim absoluto de cada pessoa que é desejado em razão de si mesmo e jamais em razão de outra coisa? Aristóteles propõe: Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos de felicidade. A felicidade é o outro nome da dignidade da pessoa humana. Não sendo apenas o fim último da pessoa, felicidade é o fim absoluto da própria política e é o fundamento do próprio princípio bem comum.
A felicidade é um estado de auto-suficiência, aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. Entretanto, Aristóteles não entende por auto-suficiente aquilo que é suficiente para um homem só, para um misantropo. Para ele, o suficiente passa pela vida comunitária resultante da natureza social da pessoa, não sendo possível à pessoa atingir seu sumo bem em uma vida apartada.
Não se compreenderá o bem comum, se este for assimilado como bens das pessoas consideradas individualmente. Ele não é a simples coleção de bens individuais. Tampouco pode ser compreendido como um estado de beatitude coletiva, um êxtase comunitário, uma felicidade geral, um bem de um todo que beneficia a si mesmo sacrificando as partes, porquanto não é o bem do todo, mas de todos. Não é a soma de bens individuais, mas é o bem de todos e de cada um. De natureza indivisível requer um esforço comum para sua realização e manutenção. Ele se realiza no tempo e no espaço e é o fim da vida social.
Não é um fim isolado, mas se funda nos fins últimos das pessoas, sendo um bem necessário para a realização dos fins últimos. Aliás, Jacques Maritain afirma que o bem comum deixa de ser o que é se não retorna às pessoas e se redistribui entre elas e, ainda, que não manterá sua natureza se não respeitar aquilo que é superior a ele: a dignidade da pessoa humana.
Só a partir da pessoa humana o bem comum torna-se inteligível. Se para o Estado ele é fim, em relação à pessoa, ele é o meio privilegiado de seu aperfeiçoamento e requer a realização de direitos e deveres sem os quais a dignidade da pessoa tornar-se-ia mera alegoria. Assim, não há de se afirmar uma plenitude humana isolada, a despeito da sociedade ou mesmo do corpo político. Sem o bem comum a plenitude humana tornar-se-ia uma fábula, uma utopia.
O bem comum não exige que os membros de uma comunidade tenham os mesmos valores e objetivos, ele é o lugar comum de bens próprios da natureza humana, bens individuais comuns a todas as pessoas.
Ele obriga a comunidade a garantir as condições para a realização dos valores pessoais, sem assumir como seus esse fins individuais. Tais bens correspondem a necessidades que revelam a insuficiência do indivíduo, da família, ou mesmo de comunidades, na realização ou subsídio dos meios de realização dos fins últimos.
Essa relação entre o bem individual e o bem comum é regida por um princípio secundário que, denominado de princípio de correlação, regula as relações entre o bem da pessoa e o bem comum. No plano ético, não há incompatibilidade entre o bem individual e o bem comum, porquanto, um pretenso bem individual que prejudique o bem comum nada mais é que um mero interesse. Ao prejudicá-lo a pessoa prejudica a si própria, já que o bem comum é condição de sua própria plenitude humana. Também o princípio de correlação afirma que o bem comum não pode existir a despeito do bem das pessoas, aliás, o bem comum é o bem das pessoas. A corrupção de tal princípio gera dois extremos: a subordinação do bem comum a um bem individual e o aniquilamento do bem da pessoa em face de um bem coletivo e total.
A realização do sumo bem de cada um, quer dizer, de sua felicidade ou dignidade depende da realização de fins intermediários os quais poderíamos chamar de meios, ou bens contingentes. Bem considerado como coisa necessária à satisfação das necessidades que aproximam a pessoa do seu estado ideal de auto-suficiência.
Alguns deles são básicos, fundamentais. Compõem o rol daquilo dos bens comuns, dos fins e coisas necessárias às exigências do bem viver de todas as pessoas humanas. Bens universais, portanto.
No plano político, o primeiro bem universal necessário é o bem-estar. Parte essencial do bem comum, ele é o primeiro bem a ser realizado pela sociedade política. De fato, a primeira conseqüência prática da idéia de auto-suficiência é o impulso de satisfazer as necessidades mais elementares, tanto aquelas que correspondem à vida biológica em si, quanto as demais que dizem respeito a vida integral da pessoa, mas todas com um conteúdo idealístico, teleológico. Numa breve lista: vida, alimentação, trabalho, roupa, habitação, educação, saúde, lazer, experiência estética, amizade, religiosidade, acesso à cultura, transporte, livre circulação das informações e liberdade (liberdade religiosa, de expressão, de pensamento, de escolher livremente o estado de vida e constituir família), direito à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo a norma reta de sua consciência, direito à proteção da vida particular.
Entretanto, há de se distinguir bens fundamentais de direitos fundamentais. Ainda que haja uma identidade no campo da hermenêutica, há uma distinção ontológica entre eles. Os direitos têm como objeto os bens que pretendem garantir ou efetivar e são, seu alicerce e objeto.
A partir da matriz antropológica elegida, a aplicação dos direitos fundamentais tem resultados práticos díspares. O individualismo fundamenta-os no poder que cada pessoa tem de apropriar-se individualmente dos bens naturais para poder fazer livremente o que quiser; o coletivismo fundamenta-os no poder de submeter os bens básicos ao comando coletivo do corpo social; e o personalismo fundamenta-os no poder de colocar esses mesmos bens a serviço da conquista comum de bens intrinsecamente humanos, morais e espirituais e da liberdade humana de autonomia. Os defensores de cada modelo sempre acusarão os demais de ignorar direitos essenciais do ser humano. Entretanto, Jacques Maritain adverte: é tão pouco necessário ser discípulo de Rousseau para reconhecer os direitos do indivíduo, como um marxista para reconhecer os direitos econômicos e sociais.
* Advogado. Professor na PUCRS. Autor do livro Teoria do Estado de Solidariedade: da dignidade da pessoa humana aos seus princípios corolários, publicado pela Editora Elsevier.
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