Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.
Christian Nedel*
Recentemente, o Congresso Nacional aprovou Projeto de Lei que modifica o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8069/90), ao estabelecer o direito de a criança e o adolescente serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante.
A novel legislação, que aguarda sanção presidencial, vulgarmente conhecida como “Lei da Palmada”, modifica substancialmente o Capítulo II, do Título II, do Livro I, do ECA, que trata do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade dos menores de dezoito anos de idade, estabelecendo normas proibitivas, consistentes na punição dos pais ou responsáveis que submeterem crianças e adolescentes a castigos corporais e a tratamento degradante, para fins de correção, disciplina, educação, ou qualquer outro pretexto.
O próprio artigo 17-A, § único, do ECA, com a nova redação, em seus incisos I e II, disciplina o que seja castigo corporal e tratamento cruel ou degradante. O primeiro, segundo o projeto, consiste na ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso de força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente. O segundo, consiste na conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente.
Muito se tem discutido acerca da efetividade do projeto em questão, a uma pela crítica contundente que se faz ao chamado Estado Paternalista e Assistencialista, que acaba, de certa forma, por tolher o papel dos pais e da família como um todo (incluindo aqui as chamadas famílias extensas ou ampliadas), restringindo o poder familiar em relação aos limites que devem ser impostos pelos pais, tutores, curadores e responsáveis em relação aos filhos, pupilos, curatelados e crianças e adolescentes em geral; a duas, pela manifesta dificuldade de fiscalização e vigilância dos “castigos corporais e tratamentos cruéis e degradantes”, anteriormente descritos, que normalmente acontecem nos recantos dos lares, onde predomina a “lei do silêncio” e onde costumeiramente “não se mete a colher”.
Creio que a condição peculiar de crianças e adolescentes como pessoas em fase de amadurecimento e de desenvolvimento e a especificidade das relações intrafamiliares demandam que a decisão de o Estado estabelecer e submeter sanções aos pais, ou de interferir formalmente na família de outras maneiras, deva ser tomada com zelo, cuidado e cautela, sob pena de serem cometidas injustiças.
Não obstante tal circunstância, a meu ver, a previsão contemplada no presente projeto parece ser inócua e despicienda, em virtude de que, no nosso ordenamento jurídico, já existe a tipificação de condutas criminais específicas que visam a coibir espancamentos, agressões generalizadas e outros abusos praticados pelos pais e responsáveis em relação a crianças e adolescentes, principalmente nas relações familiares. Isto sem falar no crime de lesão corporal e na contravenção penal de vias de fato.
O primeiro tipo criminal específico que trata da questão está previsto no Código Penal, no seu artigo 136, dentro do Capítulo III, do Título I, de sua Parte Especial, relativo à Periclitação da Vida e da Saúde, dentro dos Crimes contra a Pessoa. É o delito de Maus-Tratos, assim tipificado em sua forma básica: “Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”. Trata-se de crime de perigo concreto, onde se faz necessária a prova da existência de risco para a vida ou saúde de alguém. Resultando lesão corporal de natureza grave na vítima, a pena é aumentada de dois (2) meses a um (1) ano de detenção para um (1) a quatro (4) anos de reclusão, Resultando morte, a pena é agravada para quatro (4) a doze (12) anos de reclusão. Outrossim, consoante previsão constante no § 3º do artigo 136, “aumenta-se a pena de 1/3 (um terço), se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos”.
O segundo tipo criminal específico que trata da questão está previsto no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu artigo 232. É o delito de Constrangimento Ilegal ou Situação Vexatória, assim tipificado: “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento”. Tal delito, que revogou o artigo 4º, alínea “b”, da Lei nº 4898/65 (Lei de Abuso de Autoridade), é próprio, isto é, só pode ser praticado por aqueles que têm autoridade, guarda ou poder de vigilância em relação à criança e ao adolescente.
Por fim, o terceiro tipo criminal específico que trata da questão está previsto na Lei nº 9455/97, que define os Crimes de Tortura. Segundo a Lei, o crime de Tortura, com emprego de violência ou grave ameaça, causando intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo a alguém que estiver sob a guarda, poder ou autoridade do torturador, conhecido como “Tortura-Castigo” (artigo 1º, II, da Lei), com pena de dois (2) a oito (8) anos de reclusão, poderá ser ainda especialmente agravado em um sexto (1/6), caso praticado contra criança ou adolescente, conforme previsão constante no artigo 1º, § 4º, II, da Lei 9455/97. A “Tortura-Castigo”, também conhecida como “Tortura-Abuso”, “Tortura-Maus-Tratos”, “Tortura-Corrigendi”, “Tortura-Punitiva”, “Tortura-Vindicativa”, ou “Tortura-Intimidatória”, exige o animus corrigendi, com a presença do elemento normativo do tipo: “sofrimento físico ou mental”, sob pena de incidir o crime de Maus-Tratos, previsto no artigo 136 do Código Penal. Ademais, tal espécie de tortura configura delito próprio, que somente pode ser praticado por aqueles que têm guarda, poder ou autoridade sobre a vítima.
*Delegado do Deca. Professor da Faculdade IDC.