Direitos Humanos: uma análise a partir de Kant e de Euclides da Cunha

Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

 

Vanderlei de Oliveira Farias*

O respeito aos direitos humanos tem como pressuposto o reconhecimento de deveres morais recíprocos. Nesse sentido, Kant na obra A Metafísica dos Costumes fala de deveres de virtude para consigo mesmo e para com os outros. Assim, todo ser humano tem o direito de ser tratado de forma igual e de forma fraterna; porém tais direitos humanos somente se consolidam quando a solidariedade e o respeito à dignidade forem vistos como uma obrigação moral.
Em 13 de dezembro de 1904, o escritor Euclides da Cunha, recém-nomeado chefe da Comissão do Alto Purus pelo Barão de Rio Branco, embarcou no vapor Alagoas rumando do Rio de Janeiro para Manaus. O objetivo maior era fixar a fronteira com o Peru, mas os escritos do autor se tornariam uma das principais fontes bibliográficas sobre a Amazônia, que só não ficou completa devido à sua morte em 1909.
Dos escritos dele sobre esse tema, destaca-se o texto Judas Ahsverus, o qual, além da beleza literária, apresenta uma profundidade filosófica e antropológica. Nesse texto, publicado na revista Kosmos em 1906, o autor afirma não ser o calor ou os mosquitos os principais problemas da Amazônia, embora esses tornassem muitas vezes sua vida lá um inferno, mas o estado de profunda miséria do seringueiro, que é forçado a perder sua dignidade ao trabalhar para se escravizar. O seringueiro é um expatriado dentro de sua pátria, é o cearense que teve de se aventurar no seringal para continuar a viver sonhando com a fortuna. O processo de trabalho no seringal degrada-o, posto que preso aos tentáculos do dono do seringal ele perde sua liberdade e vê sua vida degradar-se num trabalho fatigante, como aquele de Sísifo, solitário e estéril.
Assim para fugir de seus dias tristes, o seringueiro desforra-se no sábado de aleluia construindo no centro do terreiro, ao som dos gritos de alegria de seus filhos, um monstrengo de palha com um par de calças e camisa velhas. O boneco tem seus braços na horizontal e suas pernas em ângulo, mais acima uma bola representa a cabeça. Aos poucos, o boneco toma forma daquela que é, para ele, a expressão concreta de uma realidade dolorosa. Por fim, Euclides da Cunha descreve a ocorrência de algo comovedor: o seringueiro retira o seu próprio chapéu e coloca-o na cabeça do Judas. O sertanejo esculpiu-o à sua imagem e, assim, vinga-se de si mesmo, pune-se da ambição maldita que o levou àquela terra e pune-se da sua fraqueza moral. A sua credibilidade infantil o fez escravo e recalcou-o à escravidão, a um plano inferior de vida decaída. Não bastasse isso, Judas é pendurado a uma pequena jangada e empurrado rio abaixo, o qual é recebido pelos vizinhos com tiros de todos os lados, que o perfuram.

Foto: Marcello Casal Jr./ABR

Foto: Marcello Casal Jr./ABR

Ao descrever o ritual dos seringueiros no sábado de aleluia, o escritor quer relatar as condições de vida não humanas dos seringueiros. Solitários no meio da floresta e encarcerados numa prisão sem muros, eles vivem uma constante contradição, qual seja, trabalham para se escravizar.
A Metafísica dos Costumes pode ser usada para a análise dos pressupostos morais dos Direitos Huma-nos. Não há direitos sem deveres morais recíprocos, essa é a tese que julgo estar pressuposta no final dessa obra de Kant. A liberdade, a igualdade, a solidariedade e o respeito à dignidade são somente possíveis a partir do momento em que passam a ser são identificados como obrigações morais recíprocas. A esse tema o autor reserva um capítulo específico o qual denomina Deveres de virtude para com os outros.
Segundo Kant, todo ser humano tem um direito legítimo ao respeito de seus semelhantes e está, por sua vez, obrigado a respeitar todos os demais. A humanidade em si mesma caracteriza dignidade, pois o ser humano não pode ser usado meramente como meio por qualquer ser humano, mas deve sempre ser usado como um fim. Significativo ressaltar que, nesse mesmo parágrafo (número 38), Kant nega ainda a possibilidade de que eu mesmo me deixe utilizar como um meio para o que não seja digno. Dessa forma, eu não devo desprezar os outros, tão pouco deixar que me desprezem. Desprezar os outros significa negar-lhes o respeito devido aos seres humanos. O direito que um ser humano tem de ser respeitado é de igual forma ao dever que os outros têm em relação a ele. Trata-se de um direito que ele não pode deixar de reivindicar, posto que é indisponível, inerente ao seu próprio ser.
Portanto, a omissão no cumprimento de minha obrigação moral, e a omissão do reconhecimento de meu dever para comigo mesmo e para com os outros é denominada, por Kant, de falta de virtude. No parágrafo número 41 ele afirma que a omissão de dever de respeito infringe a pretensão legal de cada um. Da mesma forma, poderia se afirmar que infringe a pretensão legal pelo respeito aos direitos humanos, pois a negação de uma obrigação moral impossibilita a concretização desses direitos humanos.
Ao seringueiro eram negados os direitos humanos. Ele estava preso aos tentáculos do dono do seringal, que lhe escravizava e lhe amansava. Se de um lado estava a ausência da obrigação moral, de outro estava a ausência do respeito para consigo mesmo. Segundo Kant, através de uma mentira interna o ser humano realiza o que é pior do que uma mentira para outrem, a saber: ele se torna desprezível aos seus próprios olhos e viola a dignidade de toda a humanidade em sua própria pessoa (cf.§9).
Os direitos humanos, sejam eles pertencentes a qualquer uma de suas gerações, exigem a obrigação moral do reconhecimento dos direitos dos outros. Cada direito humano pressupõe o dever moral de respeitar o outro enquanto um fim em si mesmo, isto é, enquanto humanidade. Em Kant, os direitos humanos implicam em universalidade da dignidade humana.

* Professor e Pesquisador da Faculdade Meridional (IMED – Passo Fundo). Doutor em Filosofia pela Universidade de Kaiserslautern – Alemanha.

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