Artigo veiculado na 27ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.
Belmiro Jorge Patto*
Desde Pitágoras a música é considerada como a maior das expressões artísticas e culturais da produção humana. Tendo como matéria prima os sons, a música tem o condão de nos remeter a algo primordial, mesmo inconsciente (para usar um termo mais recente), da linguagem. Sendo o humano justamente o ser capaz de linguagem, a expressão musical interessa-nos pelo fato de evocar uma antecedência com relação às palavras que estaria no registro daquilo que Gilles Deleuze e Félix Guattari chamam de intensidades.
O Direito, por sua vez, como expressão cultural das sociedades está diretamente relacionado com a linguagem por razões óbvias. Ocorre que em seu desenvolvimento e aprimoramento o mundo jurídico vem cada vez mais ficando mudo. Esta constatação é o nó que pretendemos estabelecer entre os problemas que podem ser suscitados e resolvidos pela música, bem como pelo Direito.
O referido mutismo jurídico se deve ao fato de que os avanços da escrita e suas peculiaridades utilitárias suplantaram a enunciação vocal da ordem jurídica. Isto se observa desde os pronunciamentos rituais que positivavam as normas das sociedades primevas, onde os sacerdotes solenemente enunciavam o Direito, bem como nas decisões por eles proferidas na solução dos conflitos que se apresentavam. A voz sempre fora o veículo do jurídico por excelência. Podemos aqui inclusive referir às teses de Rosenstock-Huessy sobre o nascimento da linguagem, como uma espécie de degeneração das “palavras-mágicas” proferidas em tais rituais.
Mas, uma vez surgida a escrita, essa técnica foi pouco a pouco suplantando a fala como o meio de pelo qual o Direito passou a ser enunciado e produzido. Disso resultou uma mudança mesma das características do próprio Direito, bem como da abordagem que se passou a fazer dos sujeitos envolvidos em sua produção/aplicação. Houve, nos parece, um empobrecimento da própria dimensão do humano, uma vez que se perdeu justamente aquela intensidade que era capaz de aproximar de forma direta o Direito de seus destinatários. Veja-se, por exemplo, o caso do teatro grego e sua função de fixação dos valores das sociedades de então.
Não se quer com isso dizer que a escrita deva ser abandonada e que não tenha seu valor. Muito ao contrário, o que se pretende aqui é um resgate dessa sonoridade esquecida que faz presente a dimensão humana nas intensidades da conversação vocal. Mas então, o que teria a música e, mais especificamente o jazz, a dizer sobre tais problemas? Nos parece que as características musicais do jazz podem ser aproveitadas de forma enriquecedora pelo Direito na solução de alguns de seus problemas.
Primeiramente, o uso do próprio som enquanto timbres e intensidades que ultrapassam os registros considerados normais da tessitura dos próprios instrumentos já indicam um poder criativo dos músicos que não podemos ignorar. Isto significa que a excessiva formalização do Direito pela escrita não possibilita ao humano seus sons primordiais como os gemidos e os gritos que expressam diretamente, sem a mediação das palavras, os afetos. Estamos imunizando a tal ponto os aspectos que nos caracterizam como humanos que corremos o risco de uma assepsia esterilizante e mesmo perigosa como nas doenças auto-imunes.
Em segundo lugar, a improvisação que é a característica fundamental do estilo jazzístico possibilita um espaço de invenção dentro da norma. O aleatório aqui não é no sentido de falta de regra, mas justamente de uma utilização intuitiva e sensitiva das regras melódicas, harmônicas e rítmicas. Ora, não seria possível pensar o Direito e, por exemplo, o problema dos princípios, que preferimos não caracterizar como caso de colisão, sob a mesma concepção?
Veja-se, por exemplo, o recente problema da chamada Lei da Ficha Limpa: de uma perspectiva dogmática ela seria considerada inconstitucional, pois fere o princípio da presunção de inocência. Mas o que queremos dizer com este fere? Queremos dizer que aqui há a ressonância de mais de um princípio e que se é necessário harmonizá-los. Ora, nos parece que é justamente disso que se trata, de uma percepção harmônica nos mesmos termos da música, do jazz. É possível a criação de outros critérios para a solução do problema.
Na música, uma mesma melodia pode ser submetida a inúmeros tratamentos harmônicos. Depende do músico e de sua criatividade. Quando dizemos que depende do músico dizemos também do seu aparato técnico, seu grau de conhecimento e domínio do instrumento. No direito se passa o mesmo. Seria possível pensar ainda o Direito desvinculado daqueles que os produzem? Sabemos das conseqüências de uma tal percepção (ou falta dela). Assim, os problemas práticos que se apresentam devem ser solucionados com criatividade, dentro da moldura jurídica do sistema posto.
No caso da Lei da Ficha Limpa, é possível pensar um acorde, ainda que dissonante de princípios, ou seja, ainda que dogmaticamente nos pareça inconstitucional, a complexidade da sociedade atual não permite mais raciocínios meramente formais. Assim, há outras notas que devem ser levadas em conta, tais como o grau de corrupção a que se chegou a vida pública no Brasil, as situações singulares de casa cada concreto a ser submetido aos critérios traçados na Lei.
Tome-se, por exemplo, um cidadão que esteja sendo acusado de homicídio de forma hedionda, digamos que tenha utilizado uma motosserra para cometer o suposto crime. Ora, em tais casos a situação é tão extrema que parece razoável a aplicação da referida Lei para que se preserve a moralidade da vida pública que caracteriza o modelo republicano. Assim como na música, no Direito também nos parece possível os acordes dissonantes.
Como se observa, não nos parece mais possível pensar o sistema jurídico a partir de textos escritos sem que se o vincule às intensidades das palavras ali enunciadas, justamente suas dimensões humanas. Tal interpretação criativa nos parece não só possível como necessária dentro da quadra histórica em que vivemos. Mas poderia se perguntar se isto não abriria as portas para um subjetivismo arbitrário. A resposta deve ser necessariamente negativa uma vez que não se está efetivamente negligenciando o sistema jurídico, mas apenas resgatando sua necessária dimensão humana, a intensidade dos afetos que somente a voz é capaz de expressar com todas as suas nuances sutis e primordiais.
* Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2000) e mestrado em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense. Professor da Universidade Estadual de Maringá.