A cidadania mal-tratada

Foto: ONU

Artigo veiculado na 27ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

Marcelo Figueiredo*

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O Estado Democrático de Direito demorou séculos para se estruturar e mesmo assim, não se pode dizer que seja um projeto acabado. É uma obra em constante construção. Como sabemos, basicamente para chegar até ele, passamos por no mínimo duas grandes fases. A primeira, do Estado Liberal, onde havia uma preocupação básica com a defesa dos direitos civis, com a segurança, interna e externa e com a propriedade privada. Era o Estado mínimo, protetor de alguns. Em uma segunda fase, passamos ao Estado Social de Direito que sem dúvida foi uma evolução conquistada após duas grandes guerras mundiais, após ideologias totalitárias e visões hegemônicas do mundo. A partir daí percebeu-se que o Estado além de defender direitos individuais tinha uma missão muito mais complexa que era a de prestar serviços públicos, atender a população, prestar saúde, educação, habitação, segurança social, etc.

Esse modelo de Estado perdurou assim caracterizado até meados da década de 80 ou 90 do século passado. A partir daí, inicia-se com mais força o movimento neoliberal (sobretudo a partir do modelo inglês e norte-americano) que, conjugado com a globalização econômica, acabou por desenvolver uma ideologia política e econômica onde o Estado deve não ser mais o produtor de bens e serviços básicos, mas deteria o papel de apenas “regular” tais relações. Interferências apenas pontuais para, tão somente preservar o interesse social e coletivo e garantir a “competição” entre os prestadores e concessionários de serviços públicos, por exemplo.

Dessa onda, o Brasil não escapou. Felizmente a Constituição de 1988, em sua redação original, escapou dessa visão simplista de Estado. Quando foi elaborada, ainda não ventavam por aqui em força total os furacões e as tsunamis do liberalismo econômico mais radical. Ele viria ao longo do tempo, com as reformas constitucionais liberalizantes.

Nesse contexto, o modelo da Constituição Federal de 1988 institui um Estado Democrático de Direito bem equilibrado, apostando muito em um pacto “cidadão”, colocando os direitos fundamentais como centro decisório e ponto de equilíbrio na estrutura do Estado. O Estado vem após os direitos fundamentais, os direitos humanos, em uma demonstração eloqüente que o Estado deve ser obediente aos direitos individuais, sociais, coletivos, difusos, e não o contrário.

Apesar de alguns exageros da Constituição de 1988, como sua prolixidade, sua pretensão de tudo regular- encurtando o espaço democrático que o legislador deveria ter- não há dúvida que, ao menos no que toca a tábua de valores e dos direitos e deveres fundamentais do cidadão, a Constituição de 1988 não está a dever a nenhuma outra Constituição do mundo ocidental. Ao contrário ela é uma referência obrigatória. Ela abriu-se inclusive ao movimento da internacionalização dos direitos humanos e a responsabilidade internacional.

Entretanto, apesar das promessas de participação da Constituição cidadã, apesar dos inúmeros dispositivos que indicavam que o cidadão, o povo, seria o protagonista maior na tomada das decisões mais sensíveis que o afetasse, isso não ocorreu. Em parte porque a matéria foi remetida à integração das leis (ordinárias, complementares), como a maior parte dos dispositivos constitucionais.

De outro lado, sobretudo porque a classe política, o Parlamento, responsáveis por dar concreção a tais dispositivos, covardemente frustraram a confiança do povo brasileiro. Não é novidade alguma que o Legislativo já teve o seu auge e prestígio no início do século XIX, vem perdendo força, legitimidade e prestígio ao longo do tempo. Mas também não luta para que essa realidade possa alterar-se, ao menos no Brasil. Afirma-se que o século XX foi o século do Executivo e o século XXI seria o do Judiciário. Mas é preciso entender esses prognósticos e análises genéricas com algum temperamento.

Todos os órgãos e poderes do Estado deveriam se esforçar mais para cumprir o projeto de cidadania da Constituição de 1988. Entretanto, por exemplo, neste episódio conhecido como “ficha limpa” mais uma vez, o Legislativo (principal responsável) e em certa medida até o Judiciário, frustraram a vontade do povo que, evidentemente quer lisura, ética e correção na política.

A Constituição contempla um modelo de democracia participativa e em alguns casos também de democracia direta. Mas são raríssimos os casos onde o povo consegue mobilizar-se para fazer valer diretamente a sua vontade, ou a vontade da maioria. Basta ver o baixo número de leis de iniciativa popular desde a implantação da Constituição de 1988, não obstante a relevantíssima importância das leis que vieram por esse instrumento constitucional, por essa via democrática.

Tivéssemos mais leis de iniciativa popular e mais respeito do Parlamento pela vontade popular as coisas estariam bem melhores na sociedade brasileira.

Tem sentido, por exemplo, que o Presidente da República faça uma aberta e desabrida campanha política, estando no cargo para a sua predileta? Trata-se, evidentemente de uma imoralidade administrativa flagrante.

Tem sentido, por exemplo, que o Poder Legislativo ignore solenemente a vontade popular e altere o tempo verbal da lei dos “ficha limpa” (para alcançar os “fichas –sujas”), para, em uma manobra bizarra e grotesca, acobertar os gatunos que assaltam a vida pública brasileira há dezenas de anos? E qual foi, então a reação dos parlamentares, “defensores do povo”? Nenhuma.

Até o Judiciário, nesse episódio também não está isento totalmente, porque se esperava uma decisão mais clara, mais objetiva a favor ou contra a lei, mas com argumentos materiais e não cobertos de tecnicalidades processuais.

O povo está cansado de ser maltratado por aqueles que deveriam defendê-lo. Já passa da hora de uma reforma política verdadeira e profunda, que possa passar a limpo as relações de poder na incipiente e frágil democracia brasileira.

 

* Advogado, consultor jurídico e Professor de Direito Constitucional e Diretor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, É Presidente da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas- ABCD e Membro do Comitê Executivo da IACL- AIDC.

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