A sociedade sempre tentou, sem sucesso, engessar a forma de as pessoas viverem e amarem. Esta resistência – historicamente e ainda hoje – é acompanhada pelo legislador, que tem enorme resistência em flexibilizar este naco do direito que diz com relações interpessoais, no âmbito privado.
Mas de nada adiantou várias Constituições proclamarem que o casamento era indissolúvel. Isto nunca foi verdadeiro. Apesar de, por décadas, a lei punir quem ousasse descumprir os deveres matrimoniais; se relacionasse com uma pessoa casada e até quem era fruto de um relacionamento extraconjugal. Tais interdições, mesmo produzindo severas injustiças, não dissuadiram ninguém de buscar a felicidade que não mais encontrava junto ao seu cônjuge. Afinal, não há mesmo motivo para alguém se submeter ao significado etimológico da expressão “cônjuge”, que vem do latim “cum jugo”: peça de madeira ou arreio que mantém juntos os bois que puxam uma carroça.
Não há – e nunca houve – como obrigar os noivos a cumprirem a promessa feita no altar de permanecerem juntos na pobreza, na tristeza e na doença, até que a morte os separe!
Antes do divórcio, havia o desquite, figura que mudou de nome, mas manteve o mesmo conceito. O desquite e a separação rompiam, mas não dissolviam o vínculo do casamento. Ambos desobrigavam o cumprimento dos deveres matrimoniais, sem, no entanto, permitir novo casamento. Sabe-se lá qual o significado da mantença desta distinção por tanto tempo, que, felizmente, acabou com a Emenda Constitucional 66/2010. Apesar de algumas resistências isoladas, a separação está mesmo sepultada e enterrada.
A rigidez legal e o conservadorismo social foram atropelados quando do avanço dos direitos humanos, que priorizaram a qualidade de vida das pessoas.
Ninguém duvida que o grande legado do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família foi desatrelar o conceito de família da instituição do casamento. É sua a responsabilidade pelo primado da afetividade como elemento identificador das relações interpessoais.
A estas mudanças foi sensível a Constituição da República de 1988, ao esgarçar o conceito de entidade familiar para além da tríade: casamento, sexo e reprodução. Não é demasia dizer que, ao equiparar casamento e união estável, reconhecendo ambos como merecedores da mesma e igual proteção, a Constituição viu o afeto.
O fenômeno que permitiu a valorização da subjetividade, a ponto de debelar o formalismo legalista, contou com o afluxo das ciências psicossociais, que emprestaram seu colorido multifacetário à forma de se perceber o direito.
As partes deixaram de ser vistas como ocupando posições opostas para serem percebidas como pessoas vulneráveis, que ainda mantém entre si vinculações subjetivas, encharcadas de ressentimentos, culpas, mágoas e, no mais das vezes, uma enorme sede de vingança, disfarçada em desejo de justiça.
A interdisciplinaridade chegou com tal vigor que ensejou o reconhecimento do afeto como princípio norteador também das relações parentais e fraternais.
A guarda compartilhada foi um dos primeiros frutos desta reviravolta. Deixou de ser uma forma de convívio estabelecida amigavelmente pelos pais, para se transformar em uma imposição, mesmo quando existe um estado de beligerância entre eles.
Esta conflituosidade permitiu que estudos psicológicos e avaliações sociais identificassem a presença do que se passou a chamar de alienação parental, a dar ensejo à edição de legislação especial sobre o tema.
Surgiu o conceito de filiação socioafetiva, descolada da verdade real, biológica, ou registral, já tendo sido reconhecida, de forma vinculante, pelo Superior Tribunal de Justiça como o vínculo parental prevalente.
Daí para o reconhecimento da multiparentalidade foi um passo. Afinal, se o amor não tem limites e mais pessoas assumem os deveres decorrentes do poder familiar, nada justifica deixar de impor obrigações a todos que desempenham tais funções.
Passou-se a falar em ética do afeto, transformando o dever de convívio em obrigação de cuidado. O reconhecimento do abandono afetivo como gerador de obrigação indenizatória foi outra das sequelas, mais do que positiva, deste casamento – este sim indissolúvel – entre a ciência jurídica, as ciências sociais e todos os demais ramos das ciências voltados aos aspectos psicológicos e laços de vivência interpessoal.
Não se pode ter medo de ver a realidade da vida, que merece ser abordada sob os mais diversos perfis, com olhares diversos, mas com a mesma e igual preocupação da ótica da ética.
Maria Berenice Dias
Advogada – Vice-Presidente do IBDFAM
Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB