Um espírito obsessor ameaça a Prefeitura

Coluna Democracia e Política

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Fonte: wikimedia commons

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Educação municipal

A  Prefeitura da capital  precisa urgentemente de trabalhos de desobsessão. Um espírito maligno incorporou no corpo do Prefeito Municipal. Esse espírito estava no umbral, sofrendo muito por conta da raiva e da mágoa que sentia pelos avanços da democratização das escolas de Porto Alegre. Esse espírito atende pelo nome de alma da empresa, também chamado de espírito do mundo dos negócios, ele  invadiu a Prefeitura Municipal e no último dia 21 desferiu golpes contra a organização da educação municipal. É preciso detê-lo.

Esse espírito obsessor formula novas regras de boa conduta e boa prática profissional para os professores municipais e sente raiva dos processos de construção da democracia na escola. Ele recusa a lei do amor, procedimento básico da desobsessão clássica, ele não perdoa o fato de que professores e alunos das escolas municipais de Porto Alegre estabeleceram estruturas de gestão democráticas que valorizam o “ser” e não o “ter”, a “qualidade” e não a “quantidade” Como todo espírito incorporado, ele desconfia do desobsessor, o professor crítico,  recusa os ensinamentos da Escola Sem Partido e recusa os ensinamentos da pedagogia libertária.

Como espírito obsessor  que tomou conta do corpo do Prefeito, ele é cheio de armadilhas. O obsessor mostra em um documento de 60 páginas – não são na verdade páginas, é um power point destinado a apresentar didaticamente para os professores as reformas que pretende fazer  na educação de Porto Alegre (disponível em http://bit.ly/2lKTtMK ). Apesar de passar desapercebido pelos professores, ele é a peça simbólica mais significativa de toda a proposta. Ali, vemos uma criança chamada Gabriely. O documento diz taxativamente: “a quem servimos? Servimos a ela”. Simples assim. Essa simplicidade da redução do universo do ensino é comovente: ela reduz, de uma hora para outra, projetos, concepções pedagógicas, rotinas de trabalho e processos de democratização construídos historicamente a uma relação servil. Não há trocas. A razão é sempre o equivalente neoliberal: na filosofia de trabalho que agora toma conta da Secretaria de Educação, todo e qualquer cidadão, inclusive os alunos da rede municipal como Gabriely, são sempre um consumidor. O universo da escola é tomado como equivalente do universo capitalista como lugar da servidão. A primeira constatação é que na concepção da reforma proposta por Marchezan está a redução do universo das relações escolares à lógica da mercadoria, da relação de rendimento básica no capital. Nada mais nefasto.

 

Os professores

Esse mecanismo de transferência, lê-se em seguida, funciona com base numa chantagem: com o uso de dados estatísticos, afirma que Gabriely tem apenas 30% de chances de concluir a 5ª. série. Essa coação é sobre o professor, é a transferência de responsabilidade do fracasso escolar para o trabalho do professor e que  desconsidera as condições sociais, os contextos familiares e todo o universo de dramas que afetam as famílias brasileiras pobres e que independem da escola e que afetam a permanência dos alunos na escola. O professor, por esta razão, é/não é /responsável absoluto pelas chances de Gabriely. Mas Marchezan coloca o dado de forma que o professor veja seu trabalho como as razões do fracasso de Gabriely, ou de qualquer aluno.

Foto: Eduardo Beleske/ PMPA

Foto: Eduardo Beleske/ PMPA

O que está por detrás deste artifício: Marchezan transforma Gabriely – poderia ser qualquer aluno, aliás é qualquer aluno – como vítima de um processo do qual o professor é o causador. Marchezan elege o aluno como seu herói, mas não qualquer aluno: é o aluno com potencial de ser vítima da omissão de seu professor. O aluno vitima é o herói de Marchezan. É que ele sabe que as vítimas sempre ganham a atenção, imunizam seu discurso contra qualquer crítica, garantem inocência para sua argumentação e principalmente, garantem a conquista de espaços na mídia na manipulação da opinião pública “Como poderia a vitima ser culpada, ou melhor, ser responsável por alguma coisa” pergunta Danieli Giglioli em “Crítica da Vítima?”(Belo Horizonte, Editora AYNE, 2016). A astúcia da argumentação de Marchezan está no fato de que ela, que tem inclusive um  nome, Gabriely, o que revela desejo de proximidade, articula ao mesmo tempo ausência e reivindicação, fragilidade e pretensão. Ela é vítima de algo de que foi privada,  privada pelo descaso dos professores no entendimento de Machezan “Elas nos deram as mãos e pediram um futuro”, lê-se em seguida no power point com a mesma imagem sempre repetida ao longo do documento na melhor estratégia behaviorista e comportamental, tipica da propaganda de massas, repetitiva, e que persegue o discurso reformador: a força simbólica desta imagem está no fato de que corresponde ao significante vazio definido pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek: é a imagem ao qual o Prefeito pode atribuir os significados que quiser sem nada perguntar ao objeto fotografado. A força do discurso reformista educacional de Marchezan está em operar com um repertório de figuras  que tem como base a ideologia vitimaria.

Neste imaginário reformista, o aluno é apresentado não como vitima do sistema e suas contradições mas do professor, sofisma de base do argumento de Marchezan que despreza o esforço cotidiano de milhares de professores pela melhoria das condições de ensino. Neste discurso, a criança vitima é valor que cria uma fortificação no discurso de Marchezan:

“A vítima é irresponsável, não responde por nada, não deve se justificar: é o sonho de qualquer poder”(Giglioli, p.20)

 

Guerra com o magistério municipal

Reduzida a propriedade simbólica do seu discurso reformista, é objeto da guerra particular que o Prefeito deseja iniciar com o magistério municipal. O aluno-possível-vítima-do-professor é a liderança da guerra de Marchezan, é seu exército de comandantes. Quem lhe deu o direito de falar em seu nome? Que direito tem o Prefeito sobre eles, que direito ele tem de transformar sua pretensa impotência em fonte de seu poder? Esquecem-se, de uma hora para outra, processos construídos com a participação de alunos, culturas de trabalho escolares construídas entre alunos e professores em nome do quê? Do rendimento, esse é o eterno espírito obsessor que volta do umbral para atormentar o sistema escolar, e voilá, eis-nos de novo diante do espirito de empresa que a reforma propõe: aproveitamento máximo de tempo, transformação e uniformização das relações entre aluno e professor em termos de rentabilidade, exatamente o espirito reformista que quer igualar a alma da escola à alma da empresa. Como nos movimentos de julho de 2013, os professores repetem: “Não é por 15 minutos!”.

Para isso, o documento apresentado retraduz o discurso progressista dos educadores no interior da nova ideologia do rendimento que deseja ocupar espaço nas escolas municipais: agora, a performance e o rendimento são para alcançar a almejada “emancipação”, “autonomia”, “potencialidade” dos alunos, issto é, a ideologia do rendimento usa e abusa do jargão dos professores da rede. O que esse discurso do rendimento esconde é justamente que sua função é matar qualquer possibilidade de emancipação e autonomia: seu objetivo é formar cidadãos trabalhadores aptos a se submeterem aos ritmos de tempo das empresas: “Nós podemos entregar um futuro a elas”, assinala o documento de reformas mas o único futuro possível nesse processo de domesticação forçada aos ritmos do tempo é o futuro submisso a a lógica do tempo administrado pelo capital.

Foto: Aline Bisso/Divulgação PMPA

Foto: Aline Bisso/Divulgação PMPA

A reforma

O decreto de reforma, tal como é descrito pelo power point,  é um projeto que apresenta a contradição já na sua definição: ele quer “melhorar a qualidade do tempo da criança na escola” e “qualificar o tempo do aluno com o professor”, mas tudo nesta ideologia pós-moderna neoliberal se dá pela inversão dos conceitos: aqui, qualidade significa quantidade.  A estratégia é simples: dá-se pelo aumento do tempo do professor em sala de aula a custa do fim do dia de compensação de professores, opera dentro de uma lógica de menos tempo dos períodos e menos recreio = mais períodos.

Em termos gerais é assim: a estratégia reduz os períodos de 50 minutos para 45 minutos, reduz o recreio de 20 para 15 minutos, retira o apoio dos professores do convívio com alunos durante as refeições, o que resulta na ampliação em 15 minutos do tempo do professor na escola. Mas não se trata de tempo do professor, esse é o discurso enganador, porque o que o organograma faz ao  reduzir tempos já consolidados da organização escolar é retirar espaços de convívio entre alunos e professore em nome do aumento da rentabilidade do professor. É um projeto de reforma que revela desprezo pelas reuniões de professores, desprezo pelo espaço de convívio dos alunos (o recreio)  e retira o tempo do período escolar com o objetivo de retirar do professor um direito, o direito à compensação. Com o capital é assim: ele transfere sempre para o trabalhador o “prejuízo” (sic)  do processo produtivo. O secretário que planejou a reforma pode ser de educação, mas revela-se muito bom em matemática. Diz o anúncio da Prefeitura: “Como eles irão trabalhar 4h por dia, essa prorrogativa ( a da compensação) perde validade. E eles terão que cumprir os cinco dias”, diz Brito. Com um sorriso no rosto.

Essa equivalência mais tempo = melhor tempo é equivocada. A relação entre aluno e professor é delicada: ela depende fundamentalmente de ritmos de trabalho que são construídos ao longo do tempo por processo de construção coletiva. O que faz a SMED: desorganiza os tempos da escola estabelecidos, retira os tempos de convívio de alunos, retira tempo de períodos escolares e diz que amplia o tempo com qualidade!  Seu mote “cada coisa a seu tempo no tempo de cada coisa”, como se lê no power point, é a frase enigmática que pode significar: houve o tempo da democracia escolar e agora estamos no tempo da rentabilidade da fábrica. Ou pode significar: há um tempo para aprender a disciplina da rentabilidade, e esse tempo é o tempo da escola, não é exatamente o que diz  “cada coisa no seu tempo”?  Curiosamente, os dois únicos dos quatro tempos enunciados no processo (tempo de acolher, tempo de aprender, tempo de se divertir e tempo de se alimentar) que perderam “tempo” são justamente os tempos fins da escola (ensinar) e de sociabilidade (recreio) dos alunos: os demais seguem exatamente o mesmo destino da mão de obra fabril, mantém-se iguais para alimentar a reprodução da mão de obra, no caso, escolar. A proposta, é claro, utiliza tabelas e percentuais para demonstrar o aumento do “rendimento” (sic) escolar, em 27,8% do tempo. O documento, no entanto, não responde a questão fundamental: ao custo do quê? O projeto anuncia para a segunda quinzena de abril a aplicação de instrumento de avaliação “construído pela SMED com docentes da rede” – quais?, indicados democraticamente?

Foto: Luiz Eduardo Campesato/Divulgação PMPA

Foto: Luiz Eduardo Campesato/Divulgação PMPA

As direções das escolas da Rede Municipal de Ensino, a Associação dos Trabalhadores em Educação Municipal de Porto Alegre (Atempa) e o Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa) imediatamente publicaram Nota às mudanças impostas pelo prefeito Nelson Marchezan Jr no Regime Normal de Trabalho do Magistério.

A Nota informa que o novo decreto 19.685, de 21 de fevereiro de 2017 “implicará na redução do atendimento à jornada dos estudantes nas escolas municipais, ao contrário do que foi dito pelo secretário de Educação, Adriano Naves de Brito, na reunião com as direções de escola no dia 21/02, e do discurso do prefeito divulgado na imprensa”. A razão, informa a nota, é que os professores “estão sendo convocados a trabalhar quatro horas por turno, portanto os alunos ficarão sozinhos, das 7h30min às 8h, e, das 12h às 13h30min”. Quer dizer, a escola estará aberta à comunidade desde as 7h30min mas sem o acompanhamento dos professores, estratégia típica do modelo neoliberal em andamento que atinge agora a educação, com a precarização da educação vista como uma irresponsabilidade social da administração.  Para as entidades, “esse tempo na escola, sem professores, diminui a qualidade na educação e colocando os alunos em risco e em situação de vulnerabilidade.”

Como um espírito obsessor, a raiva que revela tal decreto  é porque o sistema que pretende reformar foi concebido de forma democrática e não autoritária.   Como espírito obsessor experiente, capitalista, esse nosso espírito de empresa ataca o professor em seu ponto fraco, a expectativa de permanência do aluno na escola, a culpa que sente o professor pelas dificuldades que vivencia no espaço escolar.  Ele chama o professor para fazer parte de uma transformação para o beneficio do aluno, mas na realidade, o que ele faz é pular no pescoço do professor. Para Marchezan, seu projeto é a salvação imediata para os problemas dos alunos, os verdadeiros sofredores, e é essa assunção do papel de “salvador “ que revela a sua característica autoritária, que desconhece os processos construídos ao longo do tempo pelas escolas.

As escolas municipais tem problemas? É claro que sim, mas reformar de cima para baixo nada mais é do que uma atitude autoritária e que fere a natureza da democracia escolar da rede pública municipal.  Se procuramos educar estudantes para viver em uma democracia, precisamos exercê-la desde cedo na escola. A ação de Marchezan não é ruim do ponto de vista administrativo, é ruim do ponto de vista da pedagogia.

Por isso, como nas boas desobsesões, sugiro uma terapia de choque para que a administração enxergue-se a si mesmo e pare de ver defeitos apenas nos professores. Os professores devem ir as ruas se manifestar. O Prefeito não é o salvador da educação e nem os alunos vitimas dos professores. Essas formas do orgulho matam a política: a construção democrática nas escolas foi feita porque os professores não se sentiam superiores a comunidade escolar, ao contrário, colocavam-se em relação de igualdade e construíam seus programas a partir de suas discussões. Se Marchezan desejar realmente administrar  a educação municipal terá de revisar o princípio do mundo dos negócios, a defesa da entrada na escola da alma da empresa que defende: ela não é a base para a criação de uma cultura escolar democrática, ela é, ao contrário, a forma de sua destruição. É, essa coisa de umbral as vezes tem caminhos tortuosos…

 

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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