Coluna Instante Jurídico
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Descaso com a população
Não me lembro exatamente quando comecei a assistir House of Cards. A magnífica série de drama político criada por Beau Willimon conseguiu segurar a minha atenção até poucos meses atrás, quando o Governo Federal brasileiro passou a anunciar um pacote de medidas destinadas a convencer o mercado financeiro e o empresariado a recuperar a confiança na economia ao tempo em que se dignou a equilibrar as contas públicas do país.
Nesse ínterim, acompanhamos, em tempo real, a nomeação de novos ministros, a suspensão da abertura de novas vagas aos programas de incentivo à educação e à profissionalização como o Pronatec, ProUni e FIES, o sancionamento da lei que autorizou o reajuste de 41,4% nos salários dos servidores do Poder Judiciário, e a apresentação de um Projeto de Emenda Constitucional que estabelece um teto para os gastos públicos com vistas a contornar a grave crise econômica que assola o Brasil.
Pois bem, a história nos ensina que “uma crise geralmente faz problemas se correlacionarem de maneiras nunca sonhadas em épocas mais tranquilas”[1]. Esse, aliás, talvez seja o motivo pelo qual as dimensões econômicas sociais e políticas de um país acabam se relacionando de maneiras tão destoantes.
Tentando fugir um pouco dessa saturação, optei, na última semana, me desconectar por um tempo. Ao retornar do Colóquio Internacional de Direito Literatura realizado na cidade de Uberaba – MG, confesso que tive dificuldade de processar alguns dos recentes acontecimentos: li em sites pela internet que a câmara dos deputados (e algumas várias de vereadores) aprovaram o aumento de salários dos servidores das suas respectivas esferas de governo.
É claro que em tempos em que se fala no congelamento de gastos com saúde e educação, a impopularidade dessas deliberações é manifesta, contudo, tais ocorrências, denotam, aparentemente, outra situação, notadamente, um descaso com a população.
Também somos responsáveis
Mas não quero que pensem que essa é uma característica exclusiva dos nossos representantes. Nós, os representados, também somos responsáveis por esse processo de desconsideração. Isso mesmo, e não estou aqui a falar nenhum absurdo. Se você, caro leitor, ainda duvida dessa afirmação, é só fazer o teste: Afinal, você se lembra em quem votou, por exemplo, para deputado federal na última eleição?
Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha no ano de 2010, cerca de um terço dos eleitores brasileiros não se lembrava em que havia votado para ocupar os cargos do Poder Legislativo nas últimas eleições.[2]
De acordo com o cientista político, Carlos Zanulfo, esse é um reflexo do pouco interesse que a política desperta em nossa população,[3] entretanto, tal afirmação é – ao menos para mim – no mínimo curiosa, pois nunca antes na história deste país a política foi tão instigante.
Veja-se, se de um lado a Operação Lava Jato fez com que os políticos brasileiros passassem a resignificar a noção de responsabilidade inerente à sua função, o mesmo não se pode dizer quanto ao processo de escolha por parte dos cidadãos. Todos sabem da importância do voto nas eleições, mas, aparentemente, poucos são os que realmente importam com o valor dessa obrigação. Vale dizer: com o advento da ordem democrática instituída pela Constituição de 1988, as eleições, no Brasil, se tornaram, em certo aspecto, um tipo de jogo onde o objetivo é obter a melhor governabilidade possível. Nesse caso, ganha o candidato mais dedicado, honesto, experiente e proativo (só que não).
Tal ocorrência, embora não seja difícil, é a prova de que o povo brasileiro ainda necessita de uma tomada de consciência, isto é, de algo que o faça exercer a cidadania em defesa da democracia e dos direitos previstos na Constituição.
Para isso, o próprio ordenamento jurídico coloca as ferramentas necessárias à nossa disposição – será que não as utilizamos por completa ignorância ou pela perda da nossa capacidade de indignação?
Zigmunt Bauman aponta que é natural sentir medo pela situação de insegurança gerada num mundo sem controle político sujeito aos caprichos de poderes econômicos desregulados.[4] A partir dessa premissa, talvez a solução para os problemas gerados a partir dos conflitos de interesse existentes entre os representantes e os representados deva se concentrar num objetivo mais concreto, de preferência, que seja visível, e ao alcance das mãos.
Notas e referências bibliográficas:
[1] EITEMAN, David K.; STONEHILL. Arthur I.; MOFFET, Michael H. Administração Financeira Internacional. Porto Alegre: Bookman Editora, 2012, p.212. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=LR04AgAAQBAJ&printsec=frontcover&dq=administração+financeira+internacional&hl=pt-BR&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q=administração%20financeira%20internacional&f=false>. Acesso em: 08 nov. 2016.
[2] ALESSANDRA, Karla. Um terço dos eleitores não se lembra em quem votou. Rádio Câmara. Brasília, 08 out. 2014. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/ULTIMAS-NOTICIAS/475625-UM-TERCO-DOS-ELEITORES-NAO-SE-LEMBRA-EM-QUEM-VOTOU.html>. Acesso em: 08 nov. 2016.
[3] Idem.
[4] BAUMAN, Zigmunt. As respostas aos demônios que nos perseguem. 29/07/2016. São Leopoldo. Entrevista concedida ao Instituto Humanista Unisinos. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/558288-as-respostas-aos-demonios-que-nos-perseguem-entrevista-com-zygmunt-bauman>. Acesso em: 08 nov. 2016.