A Educação Aprisionada

gaiola - Copia

Créditos: Rovena Rosa/ Agência Brasil

As amarras produzidas pelo espaço escolar

 ‘Há escolas que são gaiolas, e escolas que são asas’.

Rubem Alves.

Sinais sonoros que produzem movimentos condicionados, usos de uniformes, espaços de confinamento determinados, corredores longos com vigilância constante, muros imponentes e sólidos portões. Tais características poderiam descrever com exatidão uma prisão, mas também, podem ser utilizadas para descrever a maior parte de nossas escolas.

Esta foi a percepção que levou o estudante de Ciências da Computação da UFPE Victor Maristane a criar o premiado jogo “School or Prison”. No jogo são apresentadas fotografias e o jogador é desafiado a identificar se a imagem pertence a uma escola ou a uma prisão. Antecipo, para aqueles que se interessarem em jogar, que a probabilidade de acerto decorre muito mais da sorte do que da capacidade de reconhecimento dos aspectos mostrados nas imagens. Trata-se de um jogo simples, mas que provoca uma reflexão que todos nós deveríamos fazer – qual a razão para algumas escolas se parecerem tanto com prisões?

No presente artigo, pretendo responder este questionamento e relacionar algumas constatações, que ao mesmo tempo que me afligem, me garantem a esperança em um futuro melhor.

A escola e suas permanências

A escola, assim como, a prisão, são instituições criadas em uma mesma época. A escola foi concebida para moldar os cidadãos aos interesses do Estados, sobretudo, seus interesses políticos, que envolvem a construção de uma identidade nacional, e econômicos, com o preparo adequado dos indivíduos para atenderem aos ditames do mercado. Por outro lado, a prisão foi criada para os recalcitrantes, para aqueles que não se adequaram as normas e procedimentos que lhes foram impostas e que, por isso, precisarão serem reeducados e/ou aparatados do convívio social.

Invariavelmente, com o passar do tempo, a escola passou a desempenhar um papel antagônico ao das prisões, servindo para que seus frequentadores se adaptassem aos parâmetros sociais, evitando as transgressões e cumprindo com retidão suas funções na sociedade, evitando assim, que adentrassem os pátios prisionais. Foi por esta razão que se consolidou o hábito de enviarmos nossas crianças em tenras idades para as escolas. As enviamos para que possam se adaptar a vida social, habituá-las a permanecerem tranquilas e a cumprirem prontamente o que lhes é ordenado.

É justamente por esta função que a escola ocupa um lugar central entre nossas preocupações. Acreditamos, fielmente, que o melhor para nossas crianças reside na sua permanência no ambiente escolar. Passar mais tempo em uma instituição escolar é considerada como a melhor solução para a construção de um futuro próspero para nossos jovens. Ouvimos, e muitas vezes repetimos, que a solução de diversos questões sociais reside na ampliação do sistema escolar.

Ao longo do século XX, a escola alcançou a envergadura de uma megamáquina, construindo-se como um artefato capaz de dar sentido e garantias de bom funcionamento para as demais engrenagens sociais. Trata-se, portanto, de uma instituição alicerçada sobre um modo peculiar de ser e estar no mundo, que se ocupa por moldar o indivíduo desde o seu nascimento; assim, em seu desenvolvimento progressivo rumo à idade adulta, o indivíduo que passou pelos bancos escolares terá uma maior facilidade para transitar entre diversas instituições sociais. Nesta megamáquina as moldagens são mais importantes do que as individualidades e, neste ponto, reside os motivos de sua contestação e as origens de sua crise atual.

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Créditos: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A Crise do modelo escolar tradicional

Frente aos processos de disciplinarização e formatação cultural, a escola se tornou um espaço onde as crianças e jovens são obrigadas a estar, e onde, na maior parte dos casos, sua liberdade é restrita – mais restrita do que muitos adultos tolerariam em seus ambientes de trabalho. No entanto, obrigamos nossas crianças a passar cada vez mais tempo confinadas neste espaço.

Os resultados estão longe de serem os esperados e a frustração, o abandono e o insucesso se tornaram marcas do universo escolar. O modelo escolar tradicional vive uma crise sem precedentes. Vivemos uma transição entre modos de ser estar no mundo, os quais são muito incompatíveis com a linhagem escolar tradicional. As novas subjetividades que florescem manifestam uma flagrante desconformidade com as instituições tradicionais, ao passo que se encaixam alegremente em outros artefatos. O resultado deste desencaixe se manifesta na multiplicação de conflitos e na ampliação de jovens e professores infelizes com suas práticas cotidianas. No entanto, ao invés de se abrirem ao novo, de realizarem uma profunda reflexão de seus métodos, diversas instituições escolares têm se fechado, adotando procedimentos cada vez mais despóticos e repressivos e, em alguns casos, caminhado para a ampliação do tempo de confinamento como solução para o seu insucesso. Ao optarem por aumentar o tempo confinado na escola é como se estivéssemos aplicando em um doente um remédio que causará sua morte por envenenamento ou, utilizando a figura da epigrafe de Rubem Alves, cortando as asas de um pássaro que se encontra pronto para voar.

Tais soluções derivam de uma visão limitada da educação, uma visão que confunde educação com escolarização, que compreende o processo educativo como exclusividade das escolas e adstrito ao ambiente de uma sala de aula e a regência de um professor. Concordando com Claudio Naranjo, podemos afirmar que convivemos com um sistema que usa de forma fraudulenta a palavra educação, uma vez que a utilizamos para designar o que é apenas a transmissão de informações. Utilizamos o termo educação para designar procedimentos que se aproximam de uma lavagem cerebral, de uma constante robotização, que despreza as potencialidades intelectuais, amorosas, naturais e espontâneas de nossos jovens em nome de uma formatação, de um processo constante de imposição cultural e de construção de semi-humanos.

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Créditos: Roberto Parizotti/ Secom Cut

Por uma Educação Integral, flexível e sem muros

Da mesma forma que reduzimos o papel da educação ao ambiente escolar, reduzimos a ideia de uma educação integral a construção de uma escola em tempo integral. Educação integral é uma concepção que compreende o ser humano como um sujeito total, cujo conhecimento envolve diferentes habilidades que articulam valores éticos, culturais, estéticos, relacionais e emocionais. Valores que a escola, ao longo do tempo, negligenciou, e que, em nossos dias, não consegue estabelecer. Por isso, tornou-se fundamental pensar o escolar a partir do não escolar.

Atualmente, parte das aprendizagens mais significativas se realizam fora dos muros da escola, de modo informal e diverso, e será fecundo que a escola possa ser contaminada por essas práticas educativas. Para que isso ocorra é fundamental que retomemos as praças, físicas e virtuais, que a escola se abra para o mundo, para o diferente, que encare esses espaços como ambientes ricos de experiências, como espaços educativos. Não podemos mais continuar repetindo a grande fórmula do século XX, professores transmitindo um conhecimento rígido e básico, de caráter unidirecional e massivo.

Nossos jovens não querem mais o conhecimento pré-moldado, formatado e alijado da realidade, eles querem conectar saberes, espaços e redes existenciais. Eles exigem constantemente novas formas de aprender, ensinar e de ver o mundo. Professores e alunos, no seu conjunto, não podem continuar como prisioneiros das antigas moldagens, manifestando-se como vítimas cotidianas de um artefato disciplinar fadado ao insucesso. Precisamos quebrar estas correntes, e para tanto, torna-se fundamental, construirmos uma outra relação com o saber, por parte dos alunos, e de uma nova forma de viver a profissão, por parte dos professores. Herdamos um sistema que nos maltrata diariamente, que acostumamos a aceitar, mas que deve ser abandonado.

A escola foi construída historicamente, como requisito de uma sociedade cuja disciplinarização ocupava um lugar central, nela transformamos pessoas em alunos. Construir a escola do futuro supõe a adoção do procedimento inverso, precisamos transformar alunos em pessoas. Só nesta condição podemos construir uma escola mais democrática e livre, uma educação de fato integral e que seja capaz de promover a felicidade humana como um de seus princípios básicos.

Finalizo este artigo com uma citação do eterno educador Rubem Alves. Dela retirei o trecho que utilizei como epigrafe inicial. Faço isso para que a discussão não se encerre neste ponto.

Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.
Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo.
Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado”.

Rubem Alves

Referências

ARROYO, Miguel. Políticas Educacionais e Desigualdades: à procura de novos significados. In.: Educação e Sociedade. Campinas: Unicamp, v. 31, n. 113, outubro-dezembro. 2010. pp 1381-1416.
CANÁRIO, Rui. A escola: das promessas as incertezas. Revista Educação Unisinos. Porto Alegre, No 12, maio-agosto. 2008. pp 73-81.
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: Curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008-a. 572p.
____________. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008-b. 236p.
______________. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. 262p.
SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto. 2012. 222p.
LINK DO GAME: School or Prison – http://maristane.com/school-or-prison/
 Leonardo MarinoLeonardo Freire Marino é Articulista do Estado de Direito – Mestre e Doutor em Geografia. Professor Adjunto da UERJ  e Pesquisador do Grupo intitulado Geografia Brasileira: História e Política, localizado no Instituto de Geografia desta mesma Universidade. Tem experiência em diversos níveis de ensino e linhas de pesquisa, merecendo destaque os estudos que envolvem temas ligados as dinâmicas de ordenamento territorial urbano, os conflitos sociais emanados da violência e a promoção de Direitos Humanos.
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