Propriedade Intelectual e Impressoras 3D
Quando Chuck Hull mostrou ao mundo, em meados dos anos 80, a primeira impressora 3D, criando a possibilidade de imprimir objetos em três dimensões, operou-se um verdadeiro alvoroço na indústria tradicional, ante a mera perspectiva de aumento da pirataria de produtos protegidos pela Propriedade Intelectual.
Através de um processo de fabricação relativamente simples, no qual um objeto tridimensional sólido de praticamente qualquer formato e tamanho pode ser reproduzido a partir de um modelo digital – frequentemente disponível de forma gratuita na web -, utilizando-se dos mais variados aditivos e materiais, as impressoras 3D passaram a permitir, dentre outros, a impressão de brinquedos, utensílios de cozinha, peças decorativas, móveis, bijuterias, próteses ortopédicas, entre inúmeras outras utilidades, por preços muito mais vantajosos do que os vendidos no varejo.
Atualmente, as possibilidades de criação com as impressoras 3D são quase infinitas, e vêm promovendo a expansão de uma inovação de cunho social, antes negligenciada pela Propriedade Intelectual. Cumpre lembrar que em sua concepção original, a Propriedade Intelectual cria uma escassez artificial e uma rivalidade de consumo para os bens imateriais – que são “bens livres”, em seu estado natural -, justamente para permitir sua apropriação, como se estivessem sujeitos à lei da escassez, e, desta forma, servir de incentivo à inovação [1].
Ao que tudo indica, conquanto, a “promessa” da Propriedade Intelectual de que o método de “apropriação” serviria como ferramenta de fomento à inovação, tem sido amplamente questionada [2]. Além disso, tem-se verificado que as melhores e mais eficazes ações para fomento da inovação, inclusive aquela de cunho social, têm passado ao largo da ideologia de “apropriação” instaurada pela Propriedade Intelectual.
Assim, por exemplo, para muito além do ideário protetivo da Propriedade Intelectual, tem sido a partir de modelos colaborativos, e frequentemente gratuitos e livres para uso, que diversas pessoas e empresas – como a Associação Garagem Fab Lab, em São Paulo, e.g. [3] – têm se empenhado em criar os ambientes de fabricação colaborativos adequados, bem como os modelos digitais de objetos que possam facilitar a vida daquelas pessoas que as necessitam, mas que não conseguem ter acesso a estes bens, por razões econômicas e sociais.
Por outro lado, entretanto, ofuscada pelas promessas da Propriedade Intelectual, a indústria tradicional ainda enxerga as impressoras 3D, exclusivamente como uma ameaça a seus Direitos, e, paradoxalmente, vêm lançando mão da mesma Propriedade Intelectual – que deveria ser o genuíno elemento de fomento à inventividade criativa – para frear a expansão das impressoras 3D, que, como visto, vem tendo fulcral importância, justamente, no fomento à inovação. Um das mais curiosas tentativas, neste sentido, é o caso da patente nº 8286236, requerida nos Estados Unidos da América, pela empresa Intellectual Ventures of Bellevue. Com esta tecnologia, a empresa pretende bloquear impressoras 3D de reproduzir arquivos protegidos por Direitos Autorais, utilizando de um mecanismo que se assemelha ao sistema DRM (digital rights management), largamente utilizado em CDs, DVDs, E-Books, etc., para impedir a cópia de arquivos digitais [4].
Inovação Social e a (R)Evolução das Impressoras 3D
A tensão acima, nos demonstra que repensar é preciso. Talvez, tenhamos chegado a um momento em que tanto pessoas como empresas precisarão rever seu modelo de negócio e sua forma de adquirir e de consumir produtos. E tão logo, que a própria Propriedade Intelectual se adapte a estas novas e iminentes formas de inovar, e se coloque como um meio de promover esse crescente influxo de movimentos colaborativos que, ao fim e ao cabo, buscam questionar a tradicional tutela de “apropriação”, em prol de uma maior liberdade para a criatividade.
Expandindo-se em diversas frentes, a shareconomy ou economia compartilhada, e junto a ela a colaborativa, estão sendo um meio de disseminação das tecnologias como as impressoras 3D. Uma tecnologia que agrega a função social às necessidades da sociedade – que o grande mercado não vê -, além de aquecer um mercado de produtos seriados, porém com produção por demanda, e tendo a possibilidade de desenvolver produtos únicos.
A shareconomy também surge, com força, para o consumidor final, como incentivo para a produção de seus próprios produtos. Este movimento específico da cultura do compartilhamento vem sendo chamado de Movimento Maker. Essa ideia de produção “em casa” já existia, de forma mais artesanal, em nossos avós e pais, e suas garagens cheias de ferramentas. A inovação, todavia, está alterando o nível de profissionalismo e diversidade de produtos que se pode criar em casa utilizando estas impressoras 3D.
Além de imitir o consumidor no poder para produzir seu próprio produto, cria-se a oportunidade de produção de tecnologias únicas e exclusivas, ou até mesmo inovando sobre uma necessidade que ninguém antes havia percebido.
Entre grandes empresas, que já possuem em mãos tecnologias mais avançadas neste processo, existe a busca pela inovação e descoberta de novos usos para a produção em 3D, em expertises diferenciadas. Neste sentido, podemos citar o exemplo da empresa francesa L’Oreal, que querendo eliminar os testes em animais, desenvolveu uma pele humana impressa em 3D. Neste mesmo influxo, a NASA financiou o desenvolvimento de uma impressora de alimentos para amenizar a fome ao redor do mundo, criando, consequentemente, uma nova alternativa para as viagens ao espaço.
No video Brasil Makers, retrato de uma nova geração de inovadores [5],podemos ver o quanto a cultura empreendedora dos jovens atualmente também está mudando a forma de fazer negócios, valendo-se destas novas tecnologias disponíveis para produção de produtos. Este movimento, que se tem chamado de Terceira Revolução Industrial, traz consigo uma característica que advém do primeiro sistema produtivo que existiu, antes mesmo do inicio da Primeira Revolução Industrial – que teve inicio no final do século XVIII [6], o artesanal.
Hoje, porém, com a utilização destas novas tecnologias, o fluxo de produção está sendo guiado pela demanda existente do consumidor, que tem a possibilidade de produzir o que precisa, ao contrário do sistema que nos vinha “empurrando”, desde o ápice da Revolução Industrial, no século XIX, produtos desenvolvidos com o único intuito de nos criar demandas, que não necessariamente são reais, além de uma produção/consumo excessiva e desordenada, comandada por grandes empresas detentoras de tecnologias produtivas.
Todos têm capacidade para a criatividade e inovação, se influenciados a tanto. Quem sabe a inovação irá surgir da mão de cidadãos comuns, que em suas casas entendem melhor suas necessidades, do que o mercado, em si, que muitas vezes nos cria necessidades que nunca tivemos.
A grande questão que se sobressai, neste cenário, é: será que ainda precisaremos de leis para gerir a propriedade de produtos criados em casa, para uso comum ou para uso coletivo? Ou, melhor, tem a Propriedade Intelectual condições de fomentar o avanço da inovação social?
Propriedade Intelectual no divã: repensar é preciso…
A pretensão deste artigo não é o de condenar a Propriedade Intelectual, mas, exclusivamente, fomentar a reflexão e a discussão acerca das reais condições que a Propriedade Intelectual (e seu ideário oitocentista) dispõe para cumprir com o compromisso de fomento à inovação assumido. Principalmente se considerarmos as gritantes desigualdades sociais que assolam o Brasil, é urgente e necessário que a Propriedade Intelectual não se reduza à simplicista posição de trazer um abstrato progresso econômico e social, justa e paradoxalmente, impedindo que o conhecimento e a tecnologia atinjam todas as camadas da população.
Com efeito, a Propriedade Intelectual precisa se reinventar, em sua mais profunda carga axiológica, em busca de uma inovação livre e colaborativa, além da necessária (re)democratização do acesso ao conhecimento e às novas tecnologias. A inovação, para além de sua função abstrata, deve servir de guia para o desenvolvimento de soluções novas e criativas que consigam promover a satisfação de necessidades humanas não satisfeitas e a promoção da inclusão social, além da capacitação de atores sociais que cumpram, efetivamente, com a sua condição de cidadão [7].
Se a Propriedade Intelectual não se reformular, em sua mais profunda raiz, para poder cumprir com as suas obrigações sociais inerentes, o almejado desenvolvimento econômico não passará de uma utopia.
NOTAS E BIBLIOGRAFIA:
[1] Conforme adverte Eduardo Loureiro, a “propriedade, sob a ótica econômica, é uma resposta à escassez. Quando são muitos os recursos, não há necessidade de se apropriar deles, que estão disponíveis em comum e para todos, gratuitamente. Quando se tornam escassos, nascem os conflitos e a necessidade de apropriação individual, para garantia da subsistência própria e para evitar o aniquilamento dos recursos”. (LOUREIRO, Francisco Eduardo. A Propriedade como Relação Jurídica Complexa. Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2003, P. 10). Por esta razão é que “os bens intelectuais só se tornam apropriáveis através de uma criação legal, i.e., de uma intervenção do Estado. É o Estado, através da Lei, quem transforma o bem intelectual em bem apropriável” (GRAU-KUNTZ, Karin. Jusnaturalismo e Propriedade Intelectual. Revista da ABPI – nº100 – Mai/Jun 2009. p. 09). Por esta razão, é que a intervenção estatal só se justifica, s.m.j., na promessa de a Propriedade Intelectual possa servir de ferramenta de fomento à inovação, originalidade, inventividade, etc.
[2] Neste sentido, conforme salienta Denis Barbosa, “cerca de 95% das patentes concedidas a estrangeiros em países em desenvolvimento não eram usadas para a produção local” (BARBOSA, Denis. Tratado da Propriedade Intelectual. Tomo II – Patentes. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro 2010. P; 1766). No mesmo contexto, Carol Proner afirma que “Dados da UNCTAD dos últimos 70 anos indicam que países periféricos, por intermédio de suas pessoas físicas ou jurídicas, seriam detentoras de apenas 16% das patentes concedidas internamente, enquanto 84% pertenceriam a cidadãos ou entidades de países centrais. Estudos apontam que, desse total 84%, apenas 5% dessas patentes passam a ser efetivamente exploradas, atuando, então, como um importante instrumento de bloqueio de mercado à livre entrada de novos concorrentes” (PRONER, Carol. Propriedade Intelectual: para outra ordem jurídica possível. – São Paulo: Cortez, 2007. P. 60).
[3] Associação Garagem Fab Lab é um laboratório de fabricação digital. Informações completas podem ser encontradas no website: http://garagemfablab.com.br/
[4] Vide: http://blogs.estadao.com.br/link/impressao-3d-pirata-esta-na-mira/
[5] Vide YouTube: Brasil Makers, retrato de uma nova geração de inovadores – https://www.youtube.com/watch?v=_TyyNaHM2DY
[6] Nesse sentido: “O artesanato, primeira forma de produção industrial, surgiu em fins da Idade Média com o renascimento comercial e urbano e definia-se pela produção independente; o produtor possuía os meios de produção: instalações, ferramentas e matéria-prima. Em casa, sozinho ou com a família, o artesão realizava todas as etapas da produção. A manufatura resultou da ampliação do consumo, que levou o artesão a aumentar a produção e o comerciante a dedicar-se à produção industrial.” – http://www.culturabrasil.pro.br/revolucaoindustrial.htm
[7] Neste sentido: “Assim, entendemos a inovação social como uma resposta nova e socialmente reconhecida que visa e gerar mudança social, ligando simultaneamente três atributos: (i) satisfação de necessidades humanas não satisfeitas por via do mercado; (ii) promoção da inclusão social; e (iii) capacitação de agentes ou actores sujeitos, potencial ou efectivamente, a processos de exclusão/marginalização social, desencadeando, por essa via, uma mudança, mais ou menos intensa, das relações de poder.” (ANDRÉ, Isabel; ABREU, Alexandre. Dimensões e Espaços da Inovação Social. Revista Finisterra. v. 41, n. 81 (2006)).
Maurício Brum Esteves é Articulista do Estado de Direito -Advogado. Mestrando em Direito na UNISINOS. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela FADERGS. Membro da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB/RS. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9536373205346420. E-mail: mauricio.esteves@silveiro.com.br
Daniella Ferst é Articulista do Estado de Direito graduada em Design de Produto, pela Uniritter, e proprietária do estúdio Polpa Curadoria, especializado na gestão de projetos de produtos com foco social e ambiental. Diretora de Projetos na ONG Net Impact POA. E-mail: polpacuradoria@gmail.com