Coluna Processo Penal em foco
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O Conselho Nacional do Ministério Público determinou a abertura de uma Reclamação Disciplinar contra mim, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia (Processo CNMP nº. 0.00.000.000250/2016-15).
A Reclamação Disciplinar não contém a descrição dos fatos que supostamente constituiriam falta disciplinar ou ilícito penal por mim praticado, nos termos exigidos pelos arts. 36 e 75 do Regimento Interno do Conselho Nacional do Ministério Público, razão pela qual deveria ter sido o procedimento indeferido liminarmente, mesmo porque, impossibilitado estaria de defesa, pois não sei exatamente do que me defenderei. Por óbvio, não posso me defender de algo pelo qual não fui acusado formalmente. Coisas dos tempos atuais…
De toda maneira, resolvi manifestar-me, considerando o áudio anexado. Deduz-se que a Reclamação Disciplinar diz respeito a uma entrevista dada por mim em uma rádio local, no dia 09 de março de 2016, na qual, perguntado pelo radialista o que achava do meu entendimento não coincidir com 90% da opinião pública (a respeito do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº. 126292), eu ter respondido que achava a opinião da “opinião pública” (publicada, na verdade), “uma merda”.
A entrevista foi concedida por mim como Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador-UNIFACS, há mais de dezesseis anos, autor de diversas obras jurídicas e palestrante em diversos eventos locais e nacionais. A entrevista, portanto, não foi dada como representante do Ministério Público, mesmo porque, o meu entendimento acerca do assunto debatido não coincide com o do Ministério Público brasileiro, conforme notas já publicadas pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP e pela Associação Nacional de Procuradores da República – ANPR.
Integro os quadros do Ministério Público da Bahia há vinte e cinco anos, oito deles como Procurador de Justiça, sempre promovido na carreira por merecimento e tendo ocupado por mais de dez anos funções comissionadas, inclusive a de Procurador-Geral de Justiça Adjunto (sub-Procurador-Geral de Justiça, em alguns Estados) durante quatro anos (sem nunca ter solicitado tais funções, nem adentrado gabinetes para fazê-lo, como sói acontecer). Neste período de vinte e cinco anos, jamais respondi a qualquer sindicância, reclamação ou processo administrativo. O meu trabalho está rigorosamente em dia (o que não é nenhum mérito, tratando-se de um funcionário público muitíssimo bem pago, aliás).
Dispõe a Constituição Federal que é livre a manifestação do pensamento, é inviolável a liberdade de consciência, bem como é livre a expressão da atividade intelectual, independentemente de censura ou licença (art. 5º., IV, VI e IX).
Ademais, é importante atentar que o vocábulo “merda” indica, também, segundo o Dicionário Aurélio, coisa insignificante ou irritante, sem valor ou sem préstimo, bem como indica desprezo, repulsão ou desagrado. Foi exatamente neste sentido que a expressão foi utilizada, para mostrar que os membros do Ministério Público e os do Poder Judiciário não podem levar em consideração o clamor da opinião pública no momento de proferir as suas manifestações e decisões, quando indagado pelo entrevistador o que achava do fato de que o entendimento do entrevistado era contrário a 90% da opinião pública. Não ofendi a honra de ninguém!
Lembrei-me do Ministro Celso de Mello, ao negar provimento ao Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº. 705630: “no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão estatal ao pensamento, ainda mais quando a crítica – por mais dura que seja – revele-se inspirada pelo interesse coletivo e decorra da prática legítima de uma liberdade pública de extração eminentemente constitucional” (…) O interesse social, que legitima o direito de criticar, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar as pessoas públicas. (…) O direito de crítica encontra suporte legitimador no pluralismo político, que representa um dos fundamentos em que se apoia, constitucionalmente, o próprio Estado Democrático de Direito”.
Solicitei que fossem ouvidos todos os ex-Procuradores-Gerais de Justiça da Bahia, além da atual Procuradora-Geral de Justiça da Bahia, do Corregedor-Geral do Ministério Público da Bahia, das Presidentes da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP e da Associação do Ministério Público do Estado da Bahia.
Em um Estado Democrático de Direito é preciso aprender a conviver com a liberdade de expressão. Se houver exageros que atinjam a honra, a imagem, a vida privada e a intimidade alheias que se utilize (ainda que como ultima ratio) o Código Penal (arts. 138, 139 e 140 – calúnia, injúria e difamação), o Código Civil (arts. 11 a 21 do Código Civil) e a Constituição Federal (art. 5º., V e X – responsabilidade civil e direito de resposta).
Neste sentido, por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 130, relatada pelo então Ministro Carlos Ayres Britto, “ressaltou-se que o livre exercício das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação pressupõe a observância às garantias fundamentais da vedação ao anonimato, do direito da resposta, do direito à indenização por danos materiais ou morais, à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem das pessoas; o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, bem como o direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação”.
O Ministro Celso de Mello deferiu medida liminar na Reclamação nº. 15243, nos seguintes termos: “o STF pôs em destaque, de maneira muito expressiva, uma das mais relevantes franquias constitucionais: a liberdade de manifestação do pensamento, que representa um dos fundamentos em que se apoia a própria noção de Estado democrático de direito. A decisão ressalta que a Declaração de Chapultepec, adotada em março de 1994 pela Conferência Hemisférica sobre Liberdade de Expressão, consolidou princípios essenciais ao regime democrático e que devem ser permanentemente observados e respeitados pelo Estado e por suas autoridades e agentes, inclusive por magistrados e Tribunais judiciários. (…) Nada mais nocivo, nada mais perigoso do que a pretensão do Estado de regular a liberdade de expressão (ou de ilegitimamente interferir em seu exercício), pois o pensamento há de ser livre – permanentemente livre, essencialmente livre, sempre livre. (…) No contexto de uma sociedade democrática, portanto, é intolerável a repressão estatal ao pensamento. Nenhuma autoridade, mesmo a autoridade judiciária, pode estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento”.
O mesmo Ministro, agora no julgamento do Agravo de Instrumento nº. 690841, afirmou que a “manifestação do pensamento, tem conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes: o direito de informar, o direito de buscar a informação, o direito de opinar e o direito de criticar.
O Supremo Tribunal Federal tem destacado, de modo singular, em seu magistério jurisprudencial, a necessidade de preservar-se a prática da liberdade de informação, resguardando-se, inclusive, o exercício do direito de crítica que dela emana, verdadeira ‘garantia institucional da opinião pública’ (Vidal Serrano Nunes Júnior), por tratar-se de prerrogativa essencial que se qualifica como um dos suportes axiológicos que conferem legitimação material ao próprio regime democrático. Não induz responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgue observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicule opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa, a quem tais observações forem dirigidas, ostentar a condição de figura notória ou pública, investida, ou não, de autoridade governamental, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender”.
Apenas para relembrar aquele antigo caso de Gilberto Gil e uma suposta apologia ao uso de maconha, o então Procurador-Geral da República, Claudio Fonteles, mandou arquivar a representação formulada pela ONG Mensagem Subliminar contra o também então Ministro da Cultura Gilberto Gil. A ONG acusou o’ ministro de fazer apologia ao uso da maconha no videoclipe da música “Kaya N’Gan Daya” e nas capas do CD e DVD de mesmo título. A intenção da ONG era suspender a venda do CD e barrar a exibição do clipe da música em emissoras de televisão. A ONG Mensagem Subliminar afirmou ter constatado “imagens consideradas subliminares – e outras explícitas – de apologia ao uso de drogas” no videoclipe. De acordo com a ONG, “a palavra Kaya, na linguagem Rastafari, a mesma utilizada por Bob Marley, significa maconha.” (Processo nº. 1.00.000.003194/2004-81).
E para concluir:
“Na verdade a avalanche de pitos, reprimendas e agressões só me estimulam a combatividade” (Caetano Veloso – Jornal A Tarde, 13/10/2013, p. B9). “Os idealistas são tratados como cupins nas instituições: todos tentam matá-los, com veneno, mas eles não morrem, ao contrário, se organizam, olham um para a cara do outro e dizem: vamos roer! Um dia o todo poderoso senta na sua cadeira e cai porque a pata da cadeira está roída”. (Calmon de Passos – Congresso de Advogados, em 1992, em Porto Alegre).