Artigo veiculado na 47ª edição do Jornal Estado de Direito
Marco Aurélio Mello1
O instituto da modulação temporal dos efeitos das decisões de inconstitucionalidade foi estabelecido, inicialmente, no artigo 27 da Lei nº 9.868, de 1999, a versar a ação direta de inconstitucionalidade e a declaratória de constitucionalidade, e repetido no artigo 11 da Lei nº 9.882, de 1999, considerada a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Uma vez assentada a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o Pleno, por maioria de dois terços, poderá restringir os efeitos da decisão, determinar a eficácia apenas depois do trânsito em julgado ou fixar outro momento futuro. No entanto, apenas se “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” assim exigirem. Apesar de previsto para o controle concentrado, o Tribunal já utilizou a modulação em processos subjetivos.
Sou contra a medida em qualquer hipótese. Ao manter a vigência de lei inconstitucional por determinado período de tempo, o Supremo torna a Constituição Federal um documento flexível. Ante o princípio da supremacia judicial, a inconstitucionalidade é um vício congênito, de nascimento da lei. Lei inconstitucional é natimorta. Na verdade, surge uma contradição em termos. Se for inconstitucional, não pode vigorar, porque não é válida, não cabendo sequer chamá-la de lei.
No mais, a prática estimula a edição de normas inconstitucionais e encoraja aqueles que acreditam na morosidade da Justiça e no famoso “jeitinho” brasileiro. Cria algo que, do ponto de vista da “moralidade constitucional”, é inaceitável: a figura da “inconstitucionalidade útil”. Governantes e legisladores não temem criar “leis inconstitucionais” porquanto, de algum modo, delas retirarão utilidade. Em vez de controlar e expurgar normas contrárias à Constituição, o Supremo incentiva a produção desses atos e acaba contradizendo a missão maior – o de guardião da legitimidade constitucional – que recebeu da Carta da República.
Mais recentemente, tem-se assistido a algo que foge à normalidade. O Tribunal vem implementando a modulação de forma alargada. No intuito de ser pragmática, a sempre ilustrada maioria olvida princípio caro à democracia: o do devido processo legal. O abuso da modulação tem transformado o Supremo em Congresso Nacional na tarefa de reescrever a Carta da República. Não é dado esquecer que, ao avançar e extravasar certos limites, lança um bumerangue. Duas decisões recentes demonstram isso.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.481/PR, da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, o Supremo assentou a invalidade de norma estadual por meio da qual foram concedidos benefícios fiscais sem convênio interestadual prévio – em síntese, lei que promoveu a chamada “guerra fiscal do ICMS” –, por afronta ao artigo 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, da Constituição. Apesar de a jurisprudência do Tribunal, há quase vinte e cinco anos, apontar para a inconstitucionalidade dessa prática legislativa, a maioria decidiu pela modulação sob o argumento de a lei já ter vigorado por oito anos! Votei vencido, lamentando estar “ficando muito fácil editar diplomas legais à margem da Constituição Federal, porque depois, em passo seguinte, há o concerto do Supremo; mas concerto não com ‘s’, o concerto com ‘c’. Dá-se, naquele período, o dito pelo não dito, salva-se a lei em detrimento da Carta da República, como se esta tivesse ficado em suspenso no período, não vigorasse no território nacional”.
Nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.357/DF e nº 4.425/DF, acórdãos redigidos pelo ministro Luiz Fux, a maioria decidiu pela modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 62, de 2009, versado o regime de pagamentos mediante precatórios, inclusive quanto ao fator de correção dos débitos. Na ocasião, adverti que a modulação, ao arrepio da isonomia, criaria credores diferentes: os que terão créditos corrigidos consoante cláusula proclamada inconstitucional, porque aquém da inflação, pelo Supremo e os que terão créditos corrigidos, como deve ser para que não haja a perda do poder aquisitivo, por indexador diverso.
A modulação hoje é a tônica. Deveria ser, se tanto, exceção, mas está barateada. Talvez a Constituição Federal não seja boa o suficiente para aqueles incumbidos de guardá-la. Não me canso de repetir: “vivemos uma quadra muito estranha, de abandono de parâmetros, de colocação de princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito em segundo plano, quadra em que o dito passa pelo não dito, o certo por errado e vice-versa. Não sei, com pureza d’alma, onde vamos parar com esse esgarçamento das instituições pátrias!”
1 Ministro do Supremo Tribunal Federal. Presidente do Supremo Tribunal Federal (maio de 2001 a maio de 2003) e do Tribunal Superior Eleitoral (maio de 1996 a junho de 1997, maio de 2006 a maio de 2008, novembro de 2013 a maio de 2014).