Como uma notícia assim deve ser recebida: com resignação, raiva ou uma salva de palmas? A Emenda Constitucional que criou súmulas com superpoderes (vinculantes) constituiu uma verdadeira quebra no sistema democrático consolidado em 1988, em nome da previsibilidade e da celeridade impostas por metas que privilegiam números abstratos em detrimento de resultados concretos. O novo CPC, assim como a Lei 13.015/2014, que altera artigos da CLT, prestigiam o julgamento em conformidade com as súmulas dos tribunais superiores. Não apenas as vinculantes, mas todas as súmulas, que devem ser produzidas por tribunais regionais, a fim de pacificar matérias. Ao todo, já são 53 súmulas vinculantes.
No TST, existem 459 súmulas, algumas delas canceladas, é bem verdade. O TRT da 4ª Região tem 70 súmulas, entre vigentes e canceladas. Uma verdadeira legislação paralela, muitas vezes contrária à Constituição, como é o exemplo da súmula 331, que autoriza terceirização em serviços de limpeza, sem qualquer amparo legal. E tudo isso em nome da previsibilidade, como se um Poder Judiciário previsível (ainda que isso signifique a previsibilidade de que a Constituição será desrespeitada), efetivamente servisse a um Estado que se autoproclama Democrático de Direito. Mais: como se súmula desse realmente previsibilidade às decisões. Basta ver o caso da súmula vinculante 04 do STF, que proíbe a utilização do salário mínimo como base para pagamento de verba a empregado ou servidor, mas resultou a compreensão de que o salário mínimo deve continuar sendo a base para o pagamento do adicional de insalubridade (!). Ou as súmulas 327 do STF e 114 do TST, que dizem coisas opostas e estão, ambas, vigentes. Outros tantos exemplos seriam possíveis para demonstrar a falácia da previsibilidade.
O que realmente anima a criação desenfreada de súmulas é a possibilidade de o Poder Judiciário (de cúpula) criar por sua própria conta uma verdadeira legislação paralela, bem mais atenta às “necessidades” do capital do que aos ditames da Constituição. Nem mesmo a celeridade serve de argumento. Basta olhar os termos do novo CPC, para ver que o número excessivo de recursos ali previstos e a possibilidade, praticamente não limitada, de fazer o processo chegar até o STF, desmentem esse discurso. A uniformização de decisões por meio de súmulas, elimina a discussão sobre o caso concreto e desconsidera o olhar do juiz para o conflito entre pessoas reais, cuja singularidade não se enquadra em fórmulas preconcebidas. Trata-se, de certa forma, de um retorno ao positivismo jurídico mais retrógrado: no lugar do juiz “boca da lei”, coloca-se o juiz “aplicador da súmula”. O privilégio que o novo CPC empresta a decisões que sigam essas orientações sumuladas é impressionante. Até uma espécie de avocação, de nítido viés autoritário, transmutada em “incidente de assunção de competência”, é ali regulada. Uma verdadeira ode à uniformização, de cima para baixo. O sistema de súmulas, que em nada se confunde com o de precedentes, apesar da tentativa verdadeiramente esquizofrênica do CPC, de trazer para cá institutos que se amoldam a uma realidade absolutamente diversa, impossibilita que discussões recentes sejam maturadas. Esquece-se que democracia se faz com pluralidade, com respeito à diferença e, especialmente, com divergências.
Diante desse quadro, o sentimento que a notícia reproduzida no título deste artigo causa é de tristeza profunda. O Poder Judiciário, sustentando e reproduzindo a fetichização das súmulas, está se destruindo por dentro, como um câncer silencioso voluntariamente estimulado. Ao pretender-se dotado do superpoder de reconstruir (desfigurando) a Constituição, desconstrói-se, perdendo o poder-dever de efetivá-la e, com isso, sua própria razão de existência.
Valdete Souto Severo – Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Européia de Roma – UER (Itália), Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (UDELAR), Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS