Jorge Barcellos – Doutor em Educação, Chefe da Ação Educativa da Seção de Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre
No mês passado, dezenas de professores no estado do Paraná foram atingidos por balas de borracha na cidade do Curitiba. A ação foi tratada como massacre, como de fato foi, pela maioria dos meios de comunicação e o caso deve servir para reflexão pelos operadores de direito. Ele possui diversos aspectos. Primeiro, as balas. Criadas na Irlanda na década de 70 pelo exército britânico para serem atiradas no chão e assim rebaterem nas pernas de manifestantes ou agitadores, as balas de borracha são constituídas por uma esfera de borracha ou de metal coberta por borracha que produz ferimentos graves. Por isso deve ser disparada em direção aos pés e nunca em direção a cabeça das vítimas porque em alguns casos, pode ser fatal, razão pela qual o termo non–lethal ammunition (munição não letal) é equivalente a less lethal ammunition (munição menos letal, mas ainda assim, letal).
A justificativa para o uso das balas de borracha tem-se revelado extremamente ideológica. Os comandantes das operações frequentemente referem-se as vítimas como “danos colaterais” da necessidade de manutenção da ordem. Com a justificativa de que “não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos”, o Estado reconhece que tais casos são efeitos não pretendidos ou “imprevistos” das ações de repressão. O aspecto ideológico do problema é justamente que é o Estado que define tais efeitos como “colaterais” quando não o são. Com a definição, o Estado quer dizer duas coisas: ou a possibilidade de vítimas inocentes não foi levada em consideração quando as tropas foram postas em ação ou, o que é pior, que a possibilidade de feridos graves foi considerada “um risco válido” para a ação. A observação, de Zygmund Bauman, contida na obra “Danos Colaterais” (Zahar, 2013), se aplica como uma luva aos tempos que passam porque revela a visão do Estado “essa visão é muito mais fácil porque as pessoas que se decidiram pela validade de assumir o risco não são as mesmas que sofreriam suas conseqüências”(p.11).
Segundo, o Estado. A justificativa do Estado para o uso da balas de borracha encobre que sua a disposição de colocar em risco outras vidas. Poder de decidir dado somente ao Estado e que significa seu reconhecimento de uma desigualdade de direitos e oportunidades entre os manifestantes. Não há justificativa técnica possível – não intencionalidade, etc, etc – quando o Estado aponta sua arma diretamente para a cabeça de professores de bem porque a munição pode ser sim fatal se atingir determinados pontos da nuca, ou, se for disparada a uma distância menor do que vinte metros, pode até afundar o crânio. O que não é dito é que o Estado está submetendo ao mesmo risco manifestantes pacíficos e “desordeiros” pois as balas de borracha não fazem distinção das intenções.
O Estado diz que apenas os violentos estão em perigo mas a verdade é que todos da massa pacífica estão em risco. Agora, estar na massa pacifica é perigoso e ser vítima colateral na luta social é outra dimensão da desigualdade social. Ao aceitar vítimas colaterais, ao considerar tais “baixas” (o termo também é militar) como não importantes o suficiente para abandonar o seu uso, o Estado reconhece que elas são dignas de serem incluídas na preparação da ação, outra forma de submeter a população civil a mesma regra que adota em operações à traficantes de drogas em células criminosas. Ao deixarem os espaços do crime para serem adotadas nas ruas, as balas de borracha são nosso instrumento de batismo na era da Criminalização do Social.
Terceiro, um mundo de violência. Professors atingidos por balas de borracha, jovens recebendo bordoadas de policiais e violência praticada à cidadãos que sequer participavam dos movimentos são cenas vistas cada vez mais comuns de um cruel cenário de luta contra o capitalismo em busca de um sistema mais justo. Nada que lembre a frase de um manifestante durante o movimento Occupy Wall Street que, dirigindo-se à multidão, afirmou que “estamos aqui para passar momentos agradáveis”: o que foi vivido em Curitiba mostrou a intimidade do Estado com a violência em diversos graus.
De fato, uma das funções do Estado é estabelecer uma legislação e prescrever os castigos contra sua transgressão. Mas a violência contra manifestantes inocentes ultrapassa todo o direito do Estado ao uso da violência como previa Max Weber e confirma a tese de Walter Benjamin de que a violência está presente no próprio direito. As ações repressivas do estado mostram que ele tem um núcleo violento, mostram a relação da violência com a politica que mas é preciso lembrar que a política não pode desprezar a ter uma dimensão ética.
Pensávamos que vivíamos numa democracia pacifica, o que imaginariamente fazia desaparecer o direito do cidadão à rebelião. Os movimentos de norte a sul do pais indicam que a sociedade atingiu o seu limite, faz a pergunta por justiça e questiona a legitimidade dos governos que escolheu. As manifestações de professores querem perguntar ao Estado sobre a noção de justiça que defende: é justo o salário do professor? É justo o corte de direitos sociais? A greve é uma forma desesperada de resistência da sociedade mas a ação dos órgãos policiais nega o direito de resistência. Os movimentos são violentos porque a sociedade se sente abandonada pelo sistema político e econômico: o problema não é apenas a desvalorização do professor em si mas do sistema que obriga a população a aceitar isso como natural.
É claro que não queremos a violência, mas o problema justamente é saber aquilo que queremos. O espirito destes movimentos é de revolta e não de revolução, são movimentos de fúria autêntica sem um programa de mudança sociopolítica, rejeitam a violência, mas são movimentos que precisam de um programa maior, pois quando apenas contam com suas reivindicações corporativas o que vemos no dia seguinte é a repetição do dia anterior, o que leva a um estado de emergência permanente e o risco da suspensão da democracia politica. Para o Estado, a greve é uma forma de violência, mas se assim for, como dizia Gandhi, os manifestantes só foram violentos porque ”querem dar um basta ao modo de como as coisas funcionam” (Zizek), mas o que significa sua violência quando comparada a exercida pelo Estado que afirma existir liberdade mas não tolera a “liberdade de rebelião”?
Por isso, a repressão violenta aos professores aparenta ser uma forma de automutilação política e o governo Richa, o seu imolado. A comparação pode ajudar a ilustrar.
Por todo o mundo há pessoas que se cortam intencionalmente. Fenômeno do mundo underground, é um mecanismo de enfrentamento para quando sentem dores emocionais muito fortes e forma de rebelião contra a família, que faz com que seus praticantes se sintam melhor. Curiosamente, esta foi a imagem que me veio a mente quando a reação enlouquecida do governador a respeito do massacre dos professores: a razão é que o corpo político não é separado do corpo social, e de certa forma, são uma carne só, já que os políticos são eleitos pelos eleitores, jovens inclusive. Na minha forma de ver, a sua maneira, as autoridades que justificaram as ações contra os professores estavam mutilando a sí próprios, mutilando a democracia que a minha geração de professores ajudou a construir.
A literatura diz que as pessoas que se mutilam o fazem para expressar emoções opressivas como frustração, raiva, mal estar e desejo de libertação. Não é o que vemos nas ações dos governantes, essa frustração com a reação popular, essa reação a raiva que o povo sente dos políticos, mal estar produto da vida nas cidades carente de políticas públicas, não é a fonte do desejo de libertação dos politicos? Pois a representação política é também essa carne que faz parte de nós todos, inclusive dos professores, modo de fazer política que é parte de nossa sociedade e sem a qual seria impossível pensar as formas de fazer a vida social. Por isso os governantes nesses movimentos e os automutiladores tem muito em comum: exteriorizam seus sentimentos para exercer algum controle. Para Patricia e Peter Adler, autores de The Tender Cut : inside the hidden world of self-injury (O corte suave: dentro do mundo oculto do autoflagelo) os automutiladores “são incapazes de sentir, mas desejam sentir algo” da mesma forma que nossos professores em greve são incapazes de ver algum valor na política existente, mas desejam fazer politica. A literatura também mostra que há toda uma evolução dos instrumentos usados na mutilação que vão do uso dos clipes à facas, da mesma forma que os professores mostram a evolução de seus recursos: não basta apenas insultar a figura dos políticos na rua, com cartazes, ou discussões no espaço público, é preciso parar. Após, ambos falam de seus gestos violentos como os homens falam de seus cortes “tudo gira em torno delas mesmas” dizem as autoras.
Para mim esse gesto simbólico de cortar de sí mesmo todo o resquício de valor das instituições da democracia existente, esse desejo de eliminar e cortar de sí os pedaços da ideia de democracia representativa para substitui-la ação autoritária, essa violência contra os símbolos das instituições e o público é mutilação política, equivalente simbólico de um “suicídio político”. Não é a toa que já caíram parte do colegiado do estado responsável por aquela ação. Para Adler ”a automutilação é altamente contagiosa socialmente”, vaticino perfeito para estas ações dos governantes. Os automutiladores usam a policia para agir, mas ao contrário dos automutiladores clássicos, seres solitários, nossos automutiladores políticos querem estar juntos para fazer seu autoflagelo político, seu desprezo pelas democracia, seu desprezo pela política, seu desprezo pelos professores em luta. Mas como mecanismo de enfrentamento para lidar com a raiva e a chateação com a política, a automutilação política machuca os outros e é tão ruim quanto as drogas .
Só há uma resposta possível quando vemos as cenas de enfrentamento entre professores e policiais: estamos voltando a ser animais. Uma das primeiras lições que aprendi como estudante de história da UFRGS nos anos 80 era que o gênero homo, ao qual pertencemos, surgiu na África há cerca de 2,3 milhões de anos evoluindo do chamado homo habilis, ao homo erectus, homo neandertalenses até o homo sapiens sapiens, como ensinava o prof. Arno Kern. Quer dizer, nossa transformação em ser humano passou pela habilidade de usar e fabricar ferramentas e pelo convívio social que os primeiros homo desenvolveram. Homens, crianças e mulheres começam a ter intensa vida colaborativa.
Dos nossos parentes mais próximos, os neandertais parecem terem um senso moral porque enterravam seus mortos segundo padrões próprios. E ainda que estes nossos parentes próximos viessem a serem extintos, mostraram que adquiriram certo respeito pela morte até o surgimento do homo sapiens sapiens. A característica principal deste último é o raciocínio abstrato, a consciência de si mesmo, a autoconsciencia de seus atos, base de nossa humanidade. Adquirimos a capacidade de nos comunicar, de elaborar ideias e sentimentos. A autoconsciência é produto da capacidade de viver em sociedade.
Mas algo curioso então aconteceu. Falando sobre os efeitos do trabalho, Marx disse certa vez que o trabalhador no capitalismo só se sente ativo em funções animais como comer, beber e procriar e que cada vez mais está se tornando um animal em suas funções humanas, referindo-se aos efeitos da irracionalidade de um mundo marcado pela exploração. Não é exatamente isso que retorna, como recalcado (Freud), quando assistimos atônicos o espancamento de professores a luz do dia? Não se trata de uma “injustiça com as próprias mãos” como se ouviu dizer, é muito pior, se trata de uma “involução” porque a barbárie é expressão de nosso asselvajamento, é o inicio de nosso fim como espécie. Nossas ferramentas já não servem para perpetuar a vida mas para destruí-la; nossa sociabilidade não serve mais para respeitar o outro mas para transformarmo-nos em bandos; não há mais rituais para a morte porque já não há nenhum respeito pela vida e a falha pior, já não há consciência alguma para avaliar o significado dos nossos atos. No mundo do Facebook e da comunicação instantânea, é a perda total da capacidade de comunicação: afinal, os professores apenas não clamavam por justiça?
A máxima de Marx nunca esteve tão atual como nos tempos que correm: ”O animal se torna humano e o humano se torna animal”.