Publicado na 44ª edição do Jornal Estado de Direito.
* Bruno Espiñeira Lemos – Advogado, procurador do Estado da Bahia, mestre em Direito (UFBA), pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal (IDP), ex-membro da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da OAB/DF, ex-membro da Comissão Nacional de Acesso à Justiça do Conselho Federal da OAB, membro efetivo do IADF e sócio do IBCCrim, ex-procurador federal. Autor da obra “Discussões atuais de direito penal – relato de uma breve experiência na Alemanha”.
O tema da criminalização das imigrações, a partir de nossa experiência, faz-se digna de proposição para debate.Isso ocorre diante do atual cenário bem delineado por Bauman em que “a expansão global da forma de vida moderna liberou e pôs em movimento quantidades enormes e crescentes de seres humanos destituídos de formas e meios de sobrevivência – até então adequados, no sentido tanto biológico quanto social/cultural dessa noção.
Evidencia-se um rápido irradiar do cenário norte-americano, com o seu exemplo absorvido na legislação e nas práticas dos demais países que recebem grande fluxo migratório e ao que se percebe o Brasil agora, acriticamente, busca seguir o mesmo roteiro criminalizador, no projeto de Código Penal, projeto esse que se deseja ver destinado aos estudos históricos de projetos que não foram convertidos em lei, por absoluta impropriedade do seu conteúdo.
O Brasil em sua Lei n. 6.815, de 1980, mais conhecida como Estatuto do Estrangeiro, prevê no seu art. 125, XII, que constitui crime, “introduzir estrangeiro clandestinamente ou ocultar clandestino ou irregular”, crime punível com pena privativa de liberdade de 1 (um) a 3 (três) anos, passível de ser substituída por pena restritiva de direitos e, se o infrator for estrangeiro, expulsão.
O Código Penal, no seu art. 310 tipifica a conduta de “Prestar-se a figurar como proprietário ou possuidor de ação, título ou valor pertencente a estrangeiro, nos casos em que a este é vedada por lei a propriedade ou a posse de tais bens”, Pena – detenção, de seis meses a três anos, e multa. O art. 457, do Projeto de Lei do Senado n 236, de 2012 (projeto do novo Código Penal), substitui de modo um pouco mais alargado o referido dispositivo do atual CP, majorando substancialmente a previsão de pena: 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
O que notamos com a nova previsão do PLS 236 é que a única exceção que poderia parecer aceitável é a redação do art. 455, diante da tentativa de se coibir o tráfico de pessoas ou de migrantes como atividade degradante ou de exploração daqueles e com finalidade econômica para as organizações, muitas vezes criminosas, que assim o fazem, nos moldes do Protocolo Adicional à Convenção de Palermo, contudo, parece-me que os efeitos buscados, neste caso, atingem a todos, indiscriminadamente, inclusive, o próprio migrante traficado quando é vítima e não criminoso.
Acredito pessoalmente que o tratamento da questão dos estrangeiros no PLS 236 não apenas representa um retrocesso, como atenta contra a dignidade humana, assumindo postura de um Direito Penal do Inimigo não acorde com a nossa Constituição Federal e muito menos com a história migratória brasileira.
A preocupante e incômoda consequência da leitura que se faz, nesse cenário de criminalização intensa dos elos fracos da sociedade, inseridos em um sistema penal, que atualmente adverte Bauman recordando-se de David Garland, que “na melhor das hipóteses, a intenção de “reabilitar”, “reformar”, “reeducar” e devolver a ovelha desgarrada ao rebanho é ocasionalmente louvada da boca para fora – e, quando isso acontece, se contrapõe ao coro raivoso clamando por sangue, com os principais tabloides no papel de maestros e a liderança política fazendo todos os solos. De forma explícita, o principal e talvez único propósito das prisões não é ser apenas um “depósito de lixo qualquer”, mas o depósito final, definitivo”.
Nesse estado de coisas, ao que parece irreversível, em que o risco é sobrevalorizado e o fato típico se torna cada vez mais aberto e antecipada a sua constatação e subsunção, as presunções ganham mais força do que as provas concretas, somos vigiados diariamente em locais públicos e privados, agravam-se penas, pretende-se a redução da maioridade penal, sonha-se com a pena capital, como se ela já não fosse aplicada sem pena, diariamente, aos elos fracos da sociedade de consumo, criminalizando-se cada vez mais condutas outrora indiferentes ao sistema penal, descortina-se forte já agora a feitura da justiça com as próprias mãos, com linchamentos em escala crescente e postes urbanos que nos fazem relembrar os pelourinhos de outrora, em um cenário que nos remete muitas vezes ao espetáculo, no qual o delito se transforma em circo julgado pelo povo e pela mídia, com o Judiciário não raras vezes concedendo-lhes eco. Atônito, inspirado mais uma vez em Nietzsche, em tão um pequeno intervalo entre linhas neste trabalho, temos como oportuna a indagação: Nos encontramos em um cenário de ascensão ou de esgotamento?