Publicado na 44ª edição do Jornal Estado de Direito.
Recentemente, o STF começou a aplicar, de forma sistemática, as “salvaguardas” estabelecidas no julgamento “Raposa Serra do Sol” em casos envolvendo direitos indígenas. O precedente, que foi saudado por muitxs ativistas de direitos humanos como importante para a interpretação dos arts. 231 e 232 da CF, já apresentava, no voto condutor, diversos problemas conceituais, etnocêntricos e coloniais. O marco temporal em outubro de 1988, além de ignorar precedentes anteriores (um deles de 1961, sob a Constituição de 1946), partia do pressuposto de possibilidade de fraude, ignorando, pois, o direito de auto atribuição, previsto em diversos tratados internacionais, dentre eles a Convenção 169 da OIT e a de eliminação de discriminação racial.
As considerações sobre a “desnecessidade” de tratados internacionais para defesa de indígenas ignoraram não somente a discussão sobre a hierarquia de tratados internacionais, mas também o próprio desenvolvimento do sistema interamericano e internacional de defesa de direitos humanos. E que mesmo a Declaração da ONU sobre povos indígenas é de novo tipo: não pode ser considerada nem uma mera “declaração”, nem um “convênio” usual. Primeiro, porque houve participação não somente de Estados, mas também dos povos indígenas envolvidos. Segundo, porque toda a linguagem está no imperativo ou, quando não está, de forma explícita, indica que os Estados deverão prover tais direitos. Terceiro, porque os arts. 38 e 42 estabelecem formas de monitoramento não usuais para uma declaração.
Não à toa foram um prenúncio, em parte, do que se seguiu quando do julgamento da lei de anistia, a revelar tanto uma dificuldade do órgão máximo do Judiciário em internalizar parâmetros de direitos humanos, quanto de trabalhar em questões envolvendo diversidade cultural e direitos humanos que não sejam eurocentrados, brancos e heteronormativos.
O quadro complica-se quando se encontra prestes a ser retomado o julgamento da ADI 3239, envolvendo a constitucionalidade do Decreto 4887//2003, que estabelece parâmetros para a efetivação do direito das comunidades quilombolas. O único voto- condutor- partiu de uma visão “congelada”, sem qualquer correlação com a história do país, no sentido de entender como quilombos somente a reunião de escravos fugitivos, longe dos centros urbanos. Além da contestação fática de antropólogos e historiadores, passa ao largo de relações complexas de lutas contra escravidão dentro do país, da realidade distinta conforme os Estados brasileiros, dos processos de concentração fundiária e também da racialização da legislação brasileira. No caso deste julgamento, conjugado com a aplicação das “salvaguardas” em relação às terras indígenas, em momento em que o Congresso Nacional busca a “desconstitucionalização” dos direitos territoriais de comunidades indígenas e tradicionais, para manter o sistema de latifúndio e ainda de predominância de trabalho escravo- eufemisticamente considerado “em condição análoga à de escravo”- o STF pode vir a dar um recado justamente no sentido de reforçar esta ofensiva racista e eurocentrada. Uma visão que não reconhece que as comunidades são não somente “sujeitos de direitos”, mas também “sujeitos de conhecimento” e, pois, que a justiça social e histórica se faz juntamente com a justiça cognitiva.
Os tempos estão a colocar em xeque, ainda que não pareça, o papel ativista do STF como “guardião da Constituição” e como “Corte” (outra denominação colonial) protetora dos “direitos humanos”. Talvez seja a constatação, até hoje não desejada, de que ele foi e continua sendo um tribunal etnocêntrico, eurocentrado e colonial. A ver o que dirão os próximos meses.
César Augusto Baldi é mestre em Direito(ULBRA/RS), doutorando pela Universidad Pablo de Olavide ( Espanha), organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Rio de Janeiro: Renovar, 2004).