Como é possível ser persa?

Foto: John Isaac/ONU

Artigo veiculado na 27ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

César Augusto Baldi*

Foto: John Isaac/ONU

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Em 1721, o Barão de Montesquieu publicou uma série de cartas fictícias, escritas não por supostos viajantes europeus na Pérsia, mas sim por viajantes persas na Europa. Na carta 30, Rica relata que os parisienses eram “tão curiosos que chegam à extravagância” e ficavam fascinados com a roupa “exótica” que usava, o que fez adotar, então, trajes europeus, pois “livre de todos os adornos estrangeiros, vi-me apreciado com justiça”. Com isto, passava muitas vezes despercebido, mas se alguém contava aos demais que era persa, a reação era: “Ah! O senhor é persa? Que coisa extraordinária! Como é possível ser persa?”

Pérsia foi o nome que os historiadores gregos deram ao território que sempre foi chamado, por seus habitantes, de Irã (o nome oficial data, contudo, de 1935, com o xá Reza Pahlavi). Em 2010, o país volta a ser notícia, com a condenação à morte, pela justiça iraniana, de Sakineh Ashitiani, pela acusação de manter relações extraconjugais e cumplicidade no assassinato do marido. O fundamento religioso da condenação, a pena de lapidação tida como cruel e a relutância do país em aceitar as reações internacionais colocam a mesma pergunta: “como é possível ser persa (iraniano)?”

O persa Al-Ghazali (1058-1111) procurou uma aproximação entre o islã ortodoxo e o sufismo (a chamada “corrente mística”), sendo considerado um dos pioneiros do ceticismo. Para ele, “kufr” (o não-crente) diz respeito apenas a uma não-aceitação da confiabilidade no profeta Maomé, nada “sobre a constituição pessoal ou moral da pessoa”, e, assim, a religião não é uma “categoria de exclusão”, devendo ser “definidas as fronteiras dentro das quais teologias distintas podem coexistir em mútuo reconhecimento”. Os pressupostos interpretativos são “historicamente determinados”, não se podendo confundir revelação e interpretação, nem devendo ser “invisibilizada a história da teologia”.

Como relembra a paquistanesa Asma Barlas, três argumentos são particularmente revolucionários: a) não há base alguma para “o monopólio de uma verdade com a exclusão de outras”; b) a diversidade religiosa no Islã não é problema, tendo em vista um núcleo central de crenças compartilhadas, e “ninguém que abrace alucinações estúpidas deve ser marcado como infiel, mesmo que suas crenças sejam claramente absurdas”; c) o questionamento da autoridade de religiosos e juristas em passar julgamento sobre “kufr”: “desafiar os outros é um instinto humano profundamente enraizado sobre o qual os ignorantes não são hábeis de exercer controle”. Uma crítica profunda da intolerância e do monopólio interpretativo.

Rumi (Mevlava) (1201-1273), nascido em província persa, hoje Tadjiquistão, foi conhecido como poeta e mestre sufi. Seus seguidores criaram a ordem dos “dervixes rodopiantes”, na Turquia, duramente perseguida por Ataturk, em nome da modernização e do laicismo de Estado. O que um poeta/ místico poderia ensinar para a luta de direitos humanos?

Segundo a indiana Radha d’Souza, “poetassantos” como ele nunca foram reconhecidos pelas representações coloniais como filósofos: somente os scholars do status quo eram representativos dos sujeitos coloniais, como forma de caracterizar as resistências populares, inclusive contra o colonialismo, como “loucura” sem fundamentos intelectuais.

Na tradição da qual faz parte, a linguagem deve unificar pensamento e sentimentos, intelecto e emoção, razão e paixão para as transformações no indivíduo e no mundo que o cerca: o conhecimento moderno, por sua vez, separou filosofia e ciência de arte e poesia. Suas parábolas, historietas e poemas vão partir da experiência cotidiana como forma de descrever, explicar e justificar as experiências humanas, mas também as iluminar, revelar e inspirar. A mística não é um espaço para “contemplação”, mas convite para ação e luta: o amor não existe como oposto ao conhecimento e à razão, mas como domínio da existência e forma mais avançada de conhecer. As capacidades de assombro, surpresa, medo e esperança devem ser experienciadas, não explicadas por palavras: viver significar-se abrir-se para o desconhecido. O não-método, a “loucura”, é um conhecimento superior, porque transcende o intelecto e se aproxima da intuição. As lutas são invariavelmente imprevisí- veis: os intelectuais têm dificuldade em lidar com o indeterminado, o desconhecido, o ausente, exceto em termos abstratos. Daí talvez a surpresa dos cientistas políticos com o protagonismo dos povos indígenas no constitucionalismo latino-americano.

Ao aceitar o Nobel da Paz de 2003, a iraniana Shirin Ebadi destacou que “desde o advento do Islã, a civilização e a cultura iraniana também têm se imbuído e têm sido tomadas pelo humanitarismo, o respeito à vida, à crença e à fé de outros, pela propagação da tolerância e o compromisso com evitar a violência, o derramamento de sangue e a guerra”. Frisou, contudo, que a sina discriminatória contra as mulheres “tem suas raízes na cultura patriarcal e dominada pelos homens, que prevalece nessas sociedades, e não no Islã”.

A cineasta e antropóloga iraniana Ziba Mir-Hosseini tem procurado revisar a jurisprudência islâmica dos distintos tipos de divórcio, incentivando o que denomina de “feminismo islâmico”, um discurso “de gênero que era e é feminista na aspiração e nas demandas, ainda que islâmico na linguagem e nas fontes de legitimidade”. É justamente a partir das fissuras no próprio sistema jurídico e nas distintas escolas de pensamento islâmico, que é possível estabelecer novas formas de rediscussão da tradição, novos parâmetros de luta e a revisão do pensamento eurocentrado. Afinal, afirma o paquistanês Ziauddin Sardar, “ se o Islã tem sido construído como problema, então o Islã é também o ingrediente essencial nessa solução”.

No momento em que se discute a sentença de morte de Sakineh, seria interessante recordar a condenação de Amina Lawal, por adultério e concepção fora do matrimônio, na Nigéria em 2002. Naquela ocasião, a Anistia Internacional iniciou uma grande campanha “Saving Amina”. A ONG nigeriana “BAOBAB for Women’s Human Rights”, responsável pela defesa da acusada, solicitou que as cartas de apoio fossem interrompidas: “quando cartas de protesto reproduzem estereótipos negativos do Islã e muçulmanos, elas inflamam sentimentos que podem colocar em perigo as vítimas nas mãos de extremistas, bem como os ativistas e advogados que as defendem”. Daí a necessidade de reforço do ativismo local, que, naquele momento, entendeu mais pertinente a luta pela via jurídica, nas cortes de sharia, na forma de argumentos jurídicos e religiosos, a partir de experiências comuns em países islâmicos. Foi a forma encontrada, dentro de um referencial islâmico, de resistência contra injustiça, empoderamento da sociedade e rediscussão dos parâmetros culturais. A sentença foi, afinal, revertida. É necessário, pois, reconhecer a diversidade de práticas sociais eficazes e libertadoras (a “artesania das práticas de Boa Santos), que se dá “a partir da interpelação cruzada dos limites e das possibilidades de cada um dos saberes em presença”. O reconhecimento de outros saberes deve vir acompanhado da diversidade de temporalidades e de resistências.

Respondendo à pergunta de Montesquieu: é possível ser persa, islâmico e defensor/a de visões alargadas de dignidade. Mas também é possível – e necessário – vencer o orientalismo, o colonialismo e o etnocentrismo que permeiam nossas concepções do outro, daquele que é o nosso persa contemporâneo.

 

*Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” publicado pela Editora Renovar.

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