Fernanda Canofre
Em 2011, quando Carmela Grüne apresentou sua dissertação de mestrado em Direito, na Universidade de Santa Cruz do Sul, ela comemorou mais do que o fato de seu trabalho ter sido o único publicado naquele ano. Depois de anos de pesquisa, quando chegou diante da banca avaliadora com o trabalho intitulado “Perspectivas democrático-deliberativas da gestão pública: a experiência da Escola de Samba da Mangueira”, Carmela estava fazendo uma declaração. Ao transformar as experiências de democracia participativa empregadas por uma escola de samba, em uma dissertação, ela colocava em prática uma de suas grandes causas: a popularização do Direito.
Trazer o tema para dentro da academia não foi fácil, segundo ela. Mas a pesquisa com a Mangueira, do Rio de Janeiro, levou a publicação de um livro – Participação Cidadã na Gestão Pública: a experiência da Escola de Samba de Mangueira – e de uma coleção de artigos organizada por ela, seguindo na mesma linha – Samba no Pé & Direito na Cabeça. Carioca da gema, apesar de ter sido criada no Rio Grande do Sul, Carmela puxou o samba como ferramenta para se falar de direitos no país.
Advogada, ativista, escritora e jornalista, Carmela já recebeu diversos prêmios por seu trabalho junto a presos do Presídio Central de Porto Alegre, com o projeto Direito no Cárcere e com o jornal Estado de Direito. Mas em tempos de Carnaval, é para as escolas que ela volta os olhos nesta entrevista ao Sul21.
“Tem muitas pessoas que vivem aquele momento do Carnaval, mas muito além desse estereótipo de pão e circo, de confraternizar três, quatro dias de Carnaval, tem todo o trabalho da escola que é feito durante o ano de envolvimento da comunidade e de criar perspectivas profissionais e de vínculo para que se reduza a violência”, analisa ela.
Em ano em que desfiles, blocos e manifestações cantam “Fora, Temer”, uma escola de samba é atacada pelo agronegócio por debater agrotóxicos e direitos indígenas e marchinhas racistas e machistas são deixadas de lado, samba e política no Brasil, como há tempos não se via, voltaram a sair no mesmo bloco.
Sul21: Como começou teu interesse por estudar a ligação entre Direito e o Samba, através do Carnaval?
Carmela Grüne: Eu sempre me interessei pela cultura popular, desde que eu comecei a estudar o Direito, porque eu encontro ainda uma cultura judicializada dos direitos. As pessoas ainda confundem o acesso à Justiça ao acesso ao Judiciário. De que maneira eu poderia fazer as pessoas enxergar que o acesso à Justiça vai além do acesso ao Judiciário? É com acesso ao conhecimento. Para isso, a gente tem que poder utilizar essas linguagens universais como a música e o samba, que vem trabalhando toda uma questão de identidade democrática brasileira, para mostrar que ali se fala sobre o Direito. Ali eu posso falar sobre a violência doméstica, sobre o direito do trabalho, sobre o direito homoafetivo, sobra afrodescendência, sobre questão de territórios. Uma série de direitos e garantias que são violados. Às vezes, as pessoas ouvem, mas não escutam. As pessoas conhecem a lei, mas não aplicam. O que falta para criar uma cultura que as pessoas se empoderem e comecem a cobrar os seus direitos? Para que as pessoas tenham comportamentos diferentes? Precisam ser criados mecanismos de políticas públicas que geram novos comportamentos para que essa lei tenha uma aplicabilidade. Não uma aplicabilidade restritiva de direitos, mas de empoderamento positivo, mostrando que se ela souber que tem que ter uma postura mais ativa diante de um problema.
Sul21: Como o samba entra nisso?
Carmela: Eu sou carioca, apesar de ter vindo muito jovem para cá, sempre tive uma ligação afetiva muito forte com o Rio. Dentro da perspectiva do livro – da Participação da Gestão Cidadã, que fala sobre a [Estação Primeira de] Mangueira – a gente faz um histórico de dados do samba, mas a gente não se restringe à questão legal. Meu interesse surgiu da minha raiz mesmo. Nesse livro eu trato um pouco disso, do primeiro samba que foi gravado, quem eram os artistas, onde eles se reuniam. Com o Samba no Pé, nós nos preocupamos em trabalhar as questões temáticas, para apresentar para o público leitor que ele pode, a partir de uma letra de samba, conseguir enxergar a mulher, a identidade, a corrupção, nesse aspecto.
Sul21: Sempre existiu o samba com preocupação social.
Carmela: Eu acredito que sim, como em outras áreas da música, a gente tem músicas que são mais descompromissados com conteúdo social, de ativismo, mas ainda temos músicas que colaboram para que haja empoderamento das pessoas. Mesmo que seja num diálogo onde parece que [o personagem] está conversando com um “bandido”. Você roubou tanto dinheiro meu/ Agora vem querendo me prender/E eu te avisei você não se escondeu/ Deu no que deu e a gente tá aqui / Pedindo a Deus pro corpo resistir/ Será que Ele tá afim de ouvir? Eles estão mal, tomaram tiro, é o policial e o traficante discutindo sobre a situação. É que o Judiciário tá todo comprado / E o legislativo tá financiado / E o pobre operário que joga seu voto no lixo/ Não sei se por raiva ou só por capricho. São músicas muito fortes, mas talvez elas precisem ter um olhar mais atento.
Sul21: Este ano tem se discutido muito a questão do politicamente correto nas marchinhas do Carnaval, várias delas foram abandonadas pelos blocos por carregarem uma mensagem machista, racista. O que tu achas disso?
Carmela: Eu acredito que a gente está, graças a internet, vivendo um momento de afirmação de direitos e a mulher está conseguindo ganhar uma plataforma de expressão dos momentos e das situações que ela vive de discriminação. Seja dentro do Carnaval, seja dentro de casa, seja no trabalho, seja uma mulher negra, uma branca, uma mãe. A gente tem que cuidar muito, não digo que é o politicamente correto, mas que aquilo que a gente quer passar na nossa alegria tem que respeitar o direito do outro. Não é à toa que a gente ainda tem muitas mulheres vítimas de violência. A gente precisa reduzir essa cultura que mata muitas mulheres todos os dias e, com certeza, se a gente estimular que a mulher seja um objeto utilitário, um objeto de consumo, como fazem as propagandas de cerveja, a gente não está valorizando nosso papel enquanto membros de uma sociedade. A gente além de gerar uma criança, a gente cuida dessa criança, a gente trabalha, a gente tem que estudar e ainda ouve, nas seleções de doutorado, se tu vai conseguir dar conta de estudar. Como foi meu caso, em uma prova de doutorado que eu participei, enquanto estava grávida, que me perguntaram se eu conseguiria conciliar a atividade acadêmica com ser mãe. Essa pergunta se faz para um homem? Eu poderia ter anulado aquele concurso, mas na época, fiquei tão revoltada, que não assimilei isso. Hoje a gente tem mecanismos e precisamos nos empoderar mais da situação.
Sul21: Te pergunto também no sentido de que as mensagens que são passadas pelas marchinhas são, de alguma maneira, sempre políticas. Tu concordas? Tu conseguistes ver isso na tua pesquisa?
Carmela: Com certeza, eu elevo isso na pesquisa. Minha dissertação de mestrado eleva o papel do samba nesse processo de desencadear a participação espontânea dentro da democracia. Se a gente consegue desencadear movimentos não só para que as pessoas se contagiem pela alegria, mas para que elas tenham consciência de seus direitos, ela tem um fator fundamental. Eu nomeio o samba como elemento da identidade democrática brasileira. Ele é um instrumento capaz de gerar modificação de comportamento, de cultura, de valores, para isso, a gente tem essas manifestações que estão mais democráticas, estão nas ruas. As pessoas não esperam mais apenas o Carnaval das Escolas, mas estão fazendo um movimento próprio. Estão conseguindo colocar em prática de que eu posso ser um agente transformador da realidade.
Se eu falar do Samba no Pé, Direito na Cabeça, tem um samba-enredo, sobre Os Sertões, que fala muito sobre a questão do nordeste e a questão ambiental do nordeste. Esse livro não se restringe a marchas de Carnaval, por exemplo, se eu pegar um samba da Alcione em que ela fala: Comigo não violão/ na cara que mamãe beijou/ “Zé Ruela” nenhum bota a mão/ Se tentar me bater/ Vai se arrepender. Isso já é um samba sobre as consequências de o homem bater nela, “eu te passo a Maria da Penha” Ou o Samba da Mais-Valia, que não é tão conhecido, mas fala sobre o capitalismo selvagem. Síntese de muitas determinações/ A realidade social é feita de contradições. Todos eles têm algo a dizer.
Sul21: E o poder das escolas de samba de pautar debate com os temas que trazem para a avenida? Vimos isso este ano com a polêmica do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, sobre os povos do Xingú, e a reação do agronegócio e seus representantes.
Carmela: Eu acho que, infelizmente, as escolas de samba têm esse poder, mas elas não têm o poder financeiro para poder optar em dar foco apenas ao debate político. Justamente por essa questão de ter que depender de patrocinadores para manter toda uma questão estrutural que é muito cara. Se tivesse, por exemplo, um apoio do Estado, para que houvesse essa autonomia das escolas, ou fundo, a partir de impostos, que fosse destinado para que essas escolas tivessem um X mínimo para poder trabalhar, talvez elas tivessem mais autonomia hoje. Mas tudo que a escola de samba puder colocar de reivindicação, de contrariedade com o discurso do governo, com certeza vai ferir interesse daqueles que não estão preocupados com fim do desmatamento, com a privatização da água, isso sempre vai incomodar. E se o governo não for o principal agente para financiar esse tipo de ação, que deve ser uma ação pautada pela autonomia das escolas para tratar, justamente, das questões históricas, que marcaram essa trajetória, vai haver essa dependência do setor privado, para poder manter um sonho. A gente lamenta quando acontece esse tipo de situação, mas tem que estar atento, porque se não formos nós a reivindicar esses recursos, a pautar isso dentro das Assembleias, mostrar que que atrás de um período de Carnaval há toda uma estrutura de estudo do samba-enredo, há uma votação que acontece, que por várias semanas é discutido aquele samba dentro das escolas.
Sul21: Tu falastes agora sobre o papel das políticas públicas e do Estado. Porém, em época de crise, sempre são populares as medidas que anunciam corte no Carnaval pelo poder Executivo. Essa visão sobre o Carnaval sempre como algo supérfluo, que impacto tem isso no geral?
Carmela: O primeiro impacto é na cidadania fragilizada daquele indivíduo que mora na periferia e que, às vezes tem como lugar de lazer e sua segunda casa uma escola de samba. Então, aqui em Porto Alegre, eu visito a Estado Maior da Restinga, e a gente vê que ali eles têm uma baita estrutura e que se houvesse apoio para desenvolver atividades ali, toda uma população seria atendida. Então, em primeiro lugar, quando um governo pensa que a alternativa mais fácil é mexer no Carnaval, ele está mexendo com a fragilidade desses indivíduos, ele está desmerecendo todo o contexto histórico de onde surgiu o Carnaval, toda a voz que as pessoas tem a partir dessas canções que são manifestadas e está colaborando para a violência e para o aumento da criminalidade. Porque se tu não investe na cultura, não investe no Carnaval, o que essas pessoas que são da periferia, que veem esses centros comunitários, como são as escolas, como centros de cultura, de identidade e lazer, vão acabar fazendo? Outras alternativas que fogem da alçada lícita. Governo, prefeito, precisa olhar que se não trabalhar cultura, vai perder pra violência. No outro final de semana a gente teve 35 mortes, isso já é um dado concreto do quanto falta…São pessoas jovens que estão morrendo. O quanto falta o governo acreditar e fazer por essa população.
Sul21: Pode falar mais sobre a participação popular que existia na Estação Primeira de Mangueira e que foi o objeto do teu estudo?
Carmela: A gente pode ver como eles criaram grupos para melhorar a questão da deliberação dentro da escola. Depois disso, a partir dos projetos sociais, sejam eles “Mangueira do Amanhã”, a questão dos projetos ligados ao ballet, ao futebol, cursos de informática, é sempre muito no sentido de dar prioridade ao jovem que frequente o colégio, que comprove necessidade. Eles têm um consenso quando fazem a seleção, pelo menos na época, que priorizava esse estudante que era menos favorecido e que apresentava frequência na escola, para mostrar que ele não estava fazendo só uma atividade que iria trabalhar emoções, raciocínio lógico, concentração. Acho que a Mangueira conseguiu ser uma referência daquilo que outras escolas podem estar projetando para dentro do seu espaço social.
Sul21: No teu trabalho tu defendes também a criação de uma perspectiva diferente daquilo que tu chamas de “judicialização da vida”. Pode explicar melhor esse conceito?
Carmela: A judicialização da vida é criar um McDonald’s Feliz do Judiciário. Não sei se ainda fazem isso, mas teve um época que levavam crianças aos tribunais mostrando que o acesso à justiça é via Judiciário. Eu acho que o Judiciário tem muito mais recurso, poderia mostrar à população muito mais sobre direitos, para que ela não precisasse ir até os tribunais. Seja pelo Procon, seja por multa, seja por outros órgãos que podem fiscalizar, se a gente tivesse um apoio maior do Judiciário para essa cultura – que até podem alegar que não é competência deles – eu acho que se a gente trabalha com demandas que ficam muitos anos dentro do Judiciário, isso não está se proporcionando fazer a justiça num tempo razoável. As pessoas, às vezes, ficam presas durante anos, pagando por uma situação que poderia estar sendo resolvida de outro jeito. Eu acho que é toda uma junção: do papel do Estado, em proporcionar que a cultura popular seja um instrumento de levar o acesso à justiça de outras maneiras, o empoderamento dessa cultura e desses valores, como também o Judiciário de proporcionar que não se venda a ideia do acesso à justiça, como um McLanche Feliz, como uma solução total e mais rápida para se levar aos direitos. Nossa grande preocupação enquanto advogados, enquanto juristas é levar as pessoas a resolver conflitos de uma maneira menos judicializada possível.
Sul21: O que poderia ser feito para que isso começasse a mudar?
Carmela: Direito tem que ser trabalhado com políticas públicas. E as políticas públicas, primeira coisa que tem ser feita é dar visibilidade a essas populações. Não só a visibilidade em qualquer situação, mas dando suporte com professores, psicólogos, especialistas, para que essa juventude que está aí também possa conseguir expressar o que ela pensa. Porque se ela sofre violência dentro de casa, pode ser uma criança ou um adolescente mais quieto, porque não vai conseguir se expressar direito. A gente tem que, não digo desconstruir, nem fazer uma revolução, mas como diz um artista, tem que tentar resolver os problemas que a gente tem integrando setores, não trabalhando de forma isolada. Segurança pública está ligada ao espaço, se o espaço não tem utilidade, seja ele um presídio, um abrigo, uma comunidade, ele vai estar propenso a uma ociosidade ou atividade ilegal, que pode gerar renda e pode proporcionar aquele adolescente os produtos que ele sempre quis ter.
Sul21: O Carnaval sempre teve a possibilidade de ser algo político. No Uruguai, por exemplo, as apresentações das purgas carnavalescas sempre puxaram debates e críticas à classe política do país. Num momento político quente, como o que vivemos agora, isso pode ser reforçado por aqui?
Carmela: Eu acho que está servindo para isso. As pessoas querem “Fora, Temer”, elas não estão satisfeitas com a atual política de governo, nem com a anterior, com a questão da corrupção. Do jeito que está, não está bom. Estamos tendo muitos direitos humanos violados, estamos tendo projetos importantes de acesso à universidades, a questão do ensino médio, da História, como um adolescente vai fazer sem ter essa cadeira como obrigatória? Cada vez mais o funil de acesso ao ensino superior parece distante do jovem da periferia. Com certeza, o samba, ele não está na universidade, mas ele dá uma plataforma de expressão para essa pessoa reivindicar um direito e com a internet, isso viraliza nas redes sociais.
Fonte: Sul 21