“Quero trabalhar, mudar a minha vida e não voltar mais pra cá”. Preso há 4 anos por homicídio, Rodrigo Santos está na iminência de deixar a cadeia. Cabisbaixo, diante de duas Assistentes Sociais e de dois possíveis futuros empregadores, o jovem de 27 anos não tem palavras, apenas lágrimas para demonstrar como se sentia naquele momento. O encontro, que ocorreu na manhã desta sexta-feira (24/7), numa sala de pequenas dimensões do Presídio Central, em Porto Alegre, marca a chegada da Justiça Restaurativa no sistema prisional gaúcho. Trata-se dos círculos restaurativos, que, aos poucos, passam a ser adotados, em alguns casos, no lugar das tradicionais avaliações técnicas do apenado sobre a possibilidade de progressão de regime.
“Não sei o que falar, ‘tô’ nervoso”, resume Rodrigo, segurando a mandala usada no círculo como objeto da palavra. O rapaz, que cumpre pena por ter matado a vizinha em uma discussão, é monossilábico, mas se emociona com facilidade. Ele está sentado em círculo ao lado das Assistentes Sociais do Presídio, Milene Ribeiro e Simone Félix, e dos ex-apenados e hoje empresários Rodrigo Ramos e Renato Lourenço. A única cadeira vazia é a que está do lado de Rodrigo, reservada para a mãe dele, que não foi localizada. “Infelizmente, não conseguimos encontrá-la no único número de telefone que temos dela”, lamenta Milene, que também é facilitadora de Justiça Restaurativa, e coordena o grupo de atendimento a Rodrigo.
É ela quem explica do que se trata aquele momento: “Nosso objetivo aqui é sentar e pensar no futuro do Rodrigo”. Na prática, o Juiz Sidinei José Brzuska, da Vara de Execuções Criminais (VEC) da Capital, que exerce a fiscalização dos Presídios, encaminha para os grupos restaurativos aqueles casos em que considera que podem se encaixar no trabalho. Ao invés da tradicional entrevista com técnicos que farão a avaliação psicológica, os presos participam dos círculos restaurativos, que são encontros onde não só os agentes penitenciários, mas também pessoas ligadas ao apenado podem participar. No caso de Rodrigo, a ideia é orientá-lo para quando progredir de regime.
Justiça Restaurativa no presídio
Em maio passado, um grupo de agentes – entre policiais militares e servidores que atuam no Presídio Central – fez o curso de formação de facilitadores para a construção de círculos de paz do Programa Justiça Restaurativa para o Século 21 (JR21), do Poder Judiciário gaúcho.
A prática sempre foi adotada no Judiciário, especialmente na esfera da infância e juventude. Mas, no início deste ano, ao ampliar a Justiça Restaurativa no Rio Grande do Sul, com a criação de uma Coordenadoria Estadual, o TJ gaúcho estendeu essa atuação para outras áreas, com projetos-pilotos junto à unidades ligadas à violência doméstica, criminal e de família. No Estado, o programa é coordenado pelo Juiz de Direito Leoberto Narciso Bancher, referência nacional no assunto.
“A tua força de vontade é o teu maior apoio”
Rodrigo Ramos e Renato atuaram no círculo restaurativo desta manhã como apoiadores. Ambos já estiveram presos. O primeiro, por 3 anos. O segundo, por 8 anos. Ambos deixaram a prisão e foram trabalhar com reciclagem. Hoje, empregam outros homens na mesma situação em que eles estiveram. Seus depoimentos emocionam: “As oportunidades lá na rua vão ser poucas. Quando eu saí, fiz muitos planos. Fui para o semiaberto e fiquei com aquela ansiedade de trabalhar, de ficar com a minha família”, contou Ramos que, ao deixar o sistema prisional, recebeu a oportunidade de Renato na reciclagem. “Fiquei pensando: ‘A que ponto cheguei, eu, que sempre trabalhei em escritório, limpo e arrumado, vou trabalhar mexendo no lixo dos outros’. Mas passei quase 4 anos preso, ganhei uma oportunidade e vou abraçar isso”.
Filho de empregada doméstica e com outro irmão preso, na época, Ramos ficou por dois anos trabalhando na empresa de Renato até que surgiu a oportunidade dele e do irmão abrirem o seu próprio negócio, no mesmo ramo. “Fechamos contrato com a CEASA. Trabalhamos no relento, sob o sol e a chuva. Mas sabia que algo melhor ia brilhar”. Hoje, os irmãos têm o seu próprio galpão de reciclagem, no bairro Bom Jesus, zona leste da Capital. “Talvez tu não tenha um Renato para te dar apoio, mas a tua força de vontade é o teu maior apoio”, afirmou Ramos a Rodrigo.
As lembranças também bateram forte em Renato. “Eu estava quase desistindo de tudo, até que o Doutor Brzuska apareceu e me incentivou. O Doutor é uma pessoa diferenciada, é um juiz forte, que decide e condena, mas também tem um bom coração”, contou o ex-apenado. “Dando certo para ti, Rodrigo, vai dar certo para mim também”.
O círculo
A primeira etapa do círculo restaurativo foi a apresentação dos participantes. Em seguida, cada um, inclusive o detento, falou de como poderia ajudá-lo a deixar aquela situação. Depois, avaliaram se ele estava pronto para receber a progressão de regime. Por fim, uma cerimônia de encerramento selou o círculo restaurativo. Todos de pé, com o pé direito em direção ao centro do círculo (onde estava colocado mini-árvore artesanal, outro símbolo da prática restaurativa), cada um disse uma palavra que sintetizasse o momento. Milene e Simone falaram, respectivamente, em coragem e em liberdade. Ramos e Renato, em otimismo e responsabilidade. “Esperança”, resumiu o calado Rodrigo.
Esperança
O Judiciário Estadual mantém três salas no Presídio Central. Para que o projeto Justiça Restaurativa avance, os ambientes deverão ser reestruturados para que os encontros aconteçam em local adequado. Chefe do Setor Técnico da casa prisional – onde são realizadas as avaliações e acompanhamentos psicológicos dos detentos-, o Capital Miguel Godoy também fez o curso de facilitador da Justiça Restaurativa. Trabalhando há 4 anos no Presídio Central, o Oficial acredita que a técnica pode ser transformadora: “A verdade sobre a real situação do preso vem à tona. E ele tem a chance de restaurar vínculos familiares e de sair daqui com uma perspectiva de emprego”.
A Assistente Social Simone explica que se trata de uma maneira nova de intervenção técnica. “Os laudos para progressão de regime eram feitos em entrevistas de 20 minutos de duração. Nunca conseguimos, com isso, chegar no preso, efetivamente, saber do que se passa com ele e poder encaminhá-lo. Com os círculos restaurativos, o Juiz busca a verdade para o processo, o que os laudos não trazem mais”.
Não sabemos como a história de Rodrigo irá terminar. Nem juízes, nem facilitadores, nem apoiadores podem garantir se terá um final feliz. O primeiro passo foi dado: muitas mãos se estenderam para Rodrigo, que, em breve, terá a chance de recomeçar aqui fora.
Fonte: TJRS