Retratos escritos

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

RETRATOS ESCRITOS. Homenagem a ANTÓNIO AVELÃS NUNES. Coordenadores: Augusto Monteiro, Fernando Martinho, Inês Seabra, José Vitória, Maria José Ribeiro, Rogério Leal. Coimbra: Editora Lápis de Memórias, 2019. 305 p.

 

            Que gosto poder apresentar neste Lido para Você, estes retratos escritos em homenagem a António José Avelãs Nunes. Comungo com os organizadores da obra o duplo sentimento de reconhecimento do percurso político e acadêmico; e de afeto, que é provocado pela cativante simpatia que a personalidade e o carisma de Avelãs Nunes provoca de imediato e cativa para a vida toda.

            Na nota breve que abre o livro é dito que “o Setor Intelectual do PCP\Coimbra e um grupo de amigos de António Avelãs Nunes resolveram juntar-se para celebrar com ele os seus oitenta anos. Logo decidimos que teria que haver um almoço, porque à mesa se sentam os Amigos nas ocasiões especiais. Mas pensámos também que seria correto oferecer ao António uma lembrança de aniversário condizente com o que tem sido a sua vida: um livro com estudos e\ou depoimentos em sua homenagem. E, perante as dificuldades de escolher temas e convidados em curto espaço de tempo, surgiu a ideia de aproveitar, para este efeito, os textos inseridos na página institucional do Prof. Doutor António José Avelãs Nunes, no sítio da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (https:\\www.fd.uc.pt\~anunes\)”.

            Estes Retratos Escritos – Homenagem a António Avelãs Nunes, diz a Nota, são a concretização desta ideia, devendo ser vistos como uma espécie de continuação de duas outras iniciativas do mesmo tipo e com o mesmo objetivo: 1) o Liber Amicorum. Homenagem ao Prof. Doutor António José Avelãs Nunes (Coimbra Editota, 2009), que um grupo de Colegas brasileiros organizou e publicou por ocasião da sua Jubilação como Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra; 2) os três Tomos do Volume LVII do Boletim de Ciências Económicas (Universidade de Coimbra, Faculdade de Direito, 2014), onde se publica um enorme conjunto de artigos (cerca de 3.500 páginas) em Homenagem ao Prof. Doutor António José Avelãs Nunes”.

            Disso trata a presente edição, conforme a Nota Breve de seus coordenadores, seguida de um prefácio de situação a cargo de José Pinheiro Lopes de Almeida. Logo depois, o rol de referências organizado conforme já indicado, por amigos, admiradores, interlocutores, que formam uma távola global a ela assentados para a homenagem devida: Manuel Costa Andrade, Luiz Edson Fachin, George Sarmento, Celso Furtado, Heleno Taveira Tôrres, Gilberto Bercovici, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Eros Grau, Fernando Seabra Santos, Rui de Figueiredo Marcos, Luís Pedro Cunha, António Santos Justo, Rui de Figueiredo Marcos, João Carlos Loureiro, Giuseppe Celi, Alfredo Calderale, Giuliano Volpe, Enoch Feitosa, Fábio Konder Comparato, António Almeida Santos, Sérgio de Andrea Ferreira, Fernando Facury Scaff, Franscisco Amaral, Fábio Corrêa Souza de Oliveira, Luís Roberto Barroso, José Paulo Netto, Martonio Barreto Lima, José Barata Moura, Associação Portuguesa de Juristas Democratas, Sérgio Ribeiro, Marcos Sacristán Represa, Antonio Cabrerizo, Sérgio Ribeiro, Aldacy Rachid Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, António Moreira Maués, Sérgio Fiúza de Mello Mendes, Sandro Alex de Sousa Simões.

            Fico externamente grato que os Amigos tenham incluído um texto meu na Coletânea, até por que o elaborei motivado pelo duplo sentimento a que aludi atrás. Trata-se do Discurso de elogio que proferi, na qualidade de Reitor (Universidade de Brasília, UnB) indicado por meus pares, na homenagem que o Grupo Coimbra de Universidades Brasileiras prestou ao Professor António José Avelãs Nunes em Maceió, durante reunião que ocorreu no período de 2 a 5 de novembro de 2011 (III Seminário Internacional e IV Assembleia Geral).

            O discurso vem na obra, p. 143-148, e aqui o transcrevo, tal como pronunciado para preservar pompa e circunstância:

 

“Senhor Presidente do Grupo Coimbra de Universidades Brasileiras,

Magnífico Reitor Carlos Alexandre Neto, e demais membros da Diretoria,

Senhoras e Senhores participantes da IV Assembleia Geral do GCUB (Grupo Coimbra de Universidades Brasileiras),

Senhoras e Senhores participantes do III Seminário Internacional promovido pelo GCUB,

“Magnífica Reitora Ana Dayse Rezende Dorea, da UFAL, anfitriã que tão fidalgamente acolhe essa dupla realização,

Senhor Professor Doutor António José Avelãs Nunes, conferencista da Sessão Solene de Abertura e homenageado,

 

            Inicio, conforme impõe o protocolo, por prefigurar, ainda que de forma muito simplificadora, o perfil acadêmico e biográfico do ilustre homenageado. A simplicidade, entretanto, não deslustrará o percurso cívico-epistemológico do insigne patrono deste evento. Mesmo de modo redutor, o retrato esboçado revelará nitidamente a face vigorosa do cidadão e do educador que tem o nosso respeito e que se mostra por inteiro como aquele modelo de protagonismo que Homero, pela boca de Fênix,  dirigindo-se a Aquiles, professou como a disposição necessária do homem bem formado: o saber dizer belas palavras, aptas à interpretação do mundo, mas ser capaz de agir nele, para transformá-lo. Não por acaso, Werner Jaeger retém essa mesma locução na Paidéia, obra monumental que sintetiza o programa de formação do homem grego, de modo a representá-la como ideal de educação.

            Assim é a biografia do homenageado, que percorreu todo o itinerário acadêmico, com rigorosa formação, em Portugal e em outros sítios universitários europeus, cumprindo o requisito doutoral com a defesa pública da dissertação intitulada “Industrialização e Desenvolvimento – A Economia Política do “Modelo Brasileiro de Desenvolvimento” e percorrendo os degraus da carreira docente até jubilar-se Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC).

            Em sua universidade, a vetusta Coimbra presidiu o Conselho Diretivo da Faculdade de Direito, ali onde simbolicamente estão encravadas “as portas férreas”, mas pontificou em todos as esferas dirigentes da Instituição, Conselhos, Assembléia Universitária, Senado, tendo ocupado o posto de alto reconhecimento de Vice-Reitor.

            Pensamento inserto na ação protagonista transformadora, que lhe trouxe alegrias mas também sofrimentos, se levamos em conta que seu percurso antecede e prossegue para além do 25 de abril, o Doutor Avelãs Nunes não se furtou ao exercício de ações cívicas,  tendo se incumbido de funções governamentais relevantes: Secretário de Estado (Vice-Ministro) de Desportos e Ação Social Escolar; Secretário de Estado (Vice-Ministro) de Ensino Superior e Investigação Científica; Membro do Conselho da Presidência do Conselho Português para a Paz e a Cooperação.

            No campo acadêmico, propriamente dito, desenvolveu uma epistemologia interdisciplinar. Jurista, tomou a economia como a matéria interpeladora de sua abordagem do Direito, construindo mediações que trouxeram para o seu processo de conhecimento as aproximações necessárias da filosofia, da sociologia e da literatura. Recuperou, assim, a dimensão política da Economia, reconhecendo como se fez desde Adam Smith, a necessidade de não se negligenciar sentimentos morais que perpassam esse campo ou, como acentuam economistas contemporâneos como Amartya Sem, não perder de vista ser impossível a consideração econômica alienada de pressupostos sociais ou de justiça. Em outras palavras, a Economia não pode desenvolver-se descolada de uma base de justiça e não se pode falar em Direito sem a preocupação de equilíbrio entre acumulação e distribuição equitativa.

            O percurso bibliográfico do Doutor Avelãs Nunes é muito forte, conforme atestam alguns dos livros que publicou entre muitos artigos e textos avulsos: Noção e Objeto da Economia Política; Uma Volta ao Mundo das Idéias Econômicas, Será a Economia uma Ciência?; Uma Introdução à Economia Política; Industrialização e Desenvolvimento; Estruturalismo, Monetarismo: Significado de uma Polêmica; e Neoliberalismo e Direitos Humanos.

            O último título denota o fio condutor ético de sua reflexão, vale dizer: a intenção de trazer para o centro de sua abordagem econômica a mediação interpelante dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Com efeito, em publicação de homenagem que seus colegas e admiradores brasileiros prepararam em 2010, no livro Líber Amicorum – Homenagem a António José Avelãs Nunes, mais de 50 juristas brasileiros rendem tributo ao estudioso dos direitos humanos, cujas inquietações se centram na análise da globalização neoliberal como projeto político, afim de oferecer-lhe crítica apoiada em aspectos não só econômicos, mas também filosóficos, ideológicos e culturais.

            Esse livro de homenagem revela os laços profundos que o Doutor Avelãs Nunes mantém com o Brasil e que a sua dissertação doutoral já revelava enquanto interesse acadêmico. Esses vínculos foram reconhecidos de muitos modos, sempre com expressões de alta qualificação. Assim, a Associação dos Advogados de Minas Gerais conferiu-lhe a distinção de “Personalidade de Destaque” e o Ministério das Relações Exteriores outorgou-lhe uma das mais destacadas condecorações brasileiras, a Ordem do Rio Branco.

            A convite do Ministério da Educação participou, em três ocasiões, dos trabalhos da Comissão de Avaliação Trienal da CAPES para os cursos de pós-graduação em Direito, na condição de observador estrangeiro.

            Conferencista e acadêmico visitante em universidades e instituições brasileiras, teve outorgados os títulos de Doutor Honoris Causa pelas Universidades Federais do Paraná (UFPR) e Alagoas (UFAL), comendas que mais ainda estreitam, para lembrar palavras de nosso homenageado, “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos”.

            Essas palavras, pronunciadas na saudação que fez aos participantes na abertura do Congresso Portugal-Brasil Ano 2000, em Coimbra, marcam a sua disposição de construir caminhos para a nossa história comum. Disposição, de resto, bem presente no ciclo de conferências que organizou entre 1999-2000, na Faculdade de Direito de Coimbra, colocando em franca interlocução, portugueses e brasileiros, cujas comunicações, incluindo a que apresentei na ocasião, estão reunidas no volume por ele organizado para o Boletim da Faculdade de Direito (STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000).

            Esses registros já seriam suficientes para conferir relevo à biografia do homenageado justificando iniciativas que procedessem de instituições universitárias ou culturais. Porém, para a homenagem que lhe atribui o Grupo Coimbra de Universidades Brasileiras (GCUB), uma nota de proximidade e de identidade mais ainda legitimam o tributo ora prestado.

               Como recordamos todos, ao tempo em que se desenvolveram as gestões para a formação do GCUB, no ano de 2008, sob inspiração e estímulo do Reitor Fernando Seabra Santos, era Vice-Reitor em Coimbra, onde se realizou a assembléia de criação do Grupo, o nosso homenageado. E a ele incumbiu, seja por indicação do Reitor Fernando SEABRA, seja por sua prestimosa solidariedade e vocação, oferecer valiosas sugestões que tornaram mais afeiçoáveis às tarefas de formalização do desenho institucional da proposta. Entre suas contribuições, merece relevo a elaboração do Estatuto da nova entidade, tão consistente quanto o que melhor recomendava a tradição de Coimbra, cujos estatutos serviram de modelo para os primeiros cursos superiores brasileiros e, ao mesmo tempo, tão acessível a melhor inteligência de sua aplicação, o que já o mostrou perfeitamente apto a dar conta de algumas interpelações que recebeu acerca de cumprimento dos fins sociais nele previstos.

            Entretanto, o que se pode evocar de mais notável nesta memória, não é a contribuição de ordem técnica que eventualmente resida na tarefa agora descrita. Refiro-me antes, a algo que soa mais a um legado que impressionou esse momento inaugural e que decorre da visão de mundo que o Doutor Avelãs trouxe para projetar o grupo emergente e que diz respeito a sua compreensão acerca do alcance simbólico das aproximações entre povos e da necessidade de construção dos processos de cooperação multilateral.

            Ali, naquelas conversações preparatórias, estavam presentes os mesmos valores e parâmetros que ele havia indicado, em 1985, quando proferiu na Sala dos Capelos, o discurso de saudação ao então Presidente eleito do Brasil, Tancredo Neves, por ocasião de seu doutoramento Honoris Causa, em Coimbra:

               “Dir-se-á, porventura, não ter sentido pretender eu que o Acto que aqui nos congregou é importante pela contribuição que pode dar para uma aproximação mais real entre o povo português e o povo brasileiro. E isto porque, mais do que próximos, os nossos dois povos são povos irmãos. E é verdade: somos povos irmãos. Mas também é verdade que a tão falada comunidade luso-brasileira tem sido em grande parte mera flor de retórica para enfeitar discursos de circunstância.

               A comunidade autêntica que gostaríamos de ver concretizada no dia a dia das nossas vidas colectivas dispensará o selo e a linguagem tebeliónica dos tratados. Ela existe no sentimento dos dois povos que o Atlântico une, ganha a sua autenticidade da própria história, nos laços de sangue, na matriz cultural comum…

               Mas é necessário que haja vontade política para traduzir em comportamentos racionais aquilo que vai nos corações de todos nós…”

Construir a aproximação e vontade política para traduzir em comportamentos racionais as nossas intenções, eis a referência ética que Avelãs Nunes emprestou aos diálogos do contexto de fundação do GCUB.

E numa antecipação prodigiosa, dir-se-ia quase um vaticínio, dirigido a orientar toda ação de cooperação e a assinalar, nesse processo, um papel para as universidades, pode-se extrair do mesmo discurso:

“…entre as missões mais nobres que cabem à Universidade se conta                           a de contribuir para a concretização desse ideal – sublime entre todos – de aproximação e entendimento entre os povos, no respeito pelos princípios da independência nacional, dos direitos do homem, dos direitos dos povos à autodeterminação e à independência, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, da cooperação entre todos os povos do mundo para a emancipação e o progresso da humanidade, para a abolição de todas as formas de imperialismo, colonialismo e agressão, pelo desarmamento geral, simultâneo e controlado, pela criação de uma ordem internacional que assegure a paz e a justiça nas relações entre os povos”.

            Pelo que ouvimos aqui hoje na magistral conferência de abertura do III Seminário Internacional e da IV Assembleia Geral do Grupo Coimbra de Universidades Brasileiras, e pelo que testemunhamos de seu modo de agir no mundo, as convicções e a firmeza de princípios do Doutor Avelãs Nunes permanecem íntegros e orientados pelos valores que o erigiram ao lugar de patrono desta efeméride e razão de nossa homenagem.

            Muito obrigado!”

                       Aproveito o ensejo deste Lido para Você para prorrogar anotações valiosas acerca do pensamento político-epistemológico de Avelãs Nunes, já lançadas por mim, aqui mesmo neste espaço do Jornal Estado de Direito, conforme http://estadodedireito.com.br/neoliberalismo-e-direitos-humanos/.

             O livro que comento nessa Coluna carrega intrinsecamente as marcas desse sentido de contribuição que um homem de universidade imprime a sua docência e ao movimento de espírito que busca oferecer disposição de entendimento para as questões que desafiam a compreensão das comunidades de inteligência.

            Por isso que, o livro, se inspira em diálogos inter-universitários, em atenção ao interesse acadêmico, para aferir o significado econômico da política de globalização que marca a fase atual do capitalismo em escala mundial. Isso se identifica bem ao analisar as relações entre neoliberalismo e direitos humanos, matéria de sua intervenção em workshop sobre políticas neoliberais e direitos fundamentais (Onãti, Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, julho de 2002), cujas notas se revelam nos textos que compõem a obra Neoliberalismo & Direitos Humanos.

            Essa linha condutora de seu pensamento define bem sua leitura da realidade. Em entrevista que me concedeu para o Observatório da Constituição e da Democracia – C & D (sobre o C & D conferir Coluna Lido para Você: http://bit.ly/2unYJIg), ele demarca esse ângulo forte de sua reflexão e, mais do que isso, expõe a sua visão de Justiça sobre a crítica ao que representa o capitalismo hegemônico. De fato, eu lhe propus a seguinte questão:  uma linha significativa de sua produção científica tem se orientado pela busca de interligação entre economia, globalização e direito. É possível falar-se em justiça social ou em estratégias aceitáveis de desenvolvimento pela mediação das instituições e de políticas forjadas nos parâmetros do capitalismo ainda hegemônico no mundo atual?

            Sua resposta não poderia ser mais contundente (C & D n. 21, abril de 2008, pp. 12-13):

            É verdade que, sendo jurista de formação (a minha tese de mestrado é sobre um tema de direito societário), fiz o meu doutoramento e toda a subseqüente carreira unviersitária na área das ciências económicas. E acredito que é importante que se faça investigação e ensino das ciências económicas nas Faculdades de Direito. Na minha Faculdade (a Faculdade de Direito de Coimbra) ensina-se Finanças Públicas e Economia Política desde 1837. Nos dias de hoje, é para mim indiscutível que um bom jurista não pode desconhecer as instituições e os mecanismos da vida económica.

 

            Nos últimos anos, tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática.

            Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.

            A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenómenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.

            É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim-da-história.

            Assim como esta globalização não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projecto político levado acabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, assim também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.

            Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.

            De resto, talvez a utopia de Marx esteja a confirmar-se: o desenvolvimento científico e tecnológico conseguido pela civilização burguesa proporcionou um aumento meteórico da produtividade do trabalho humano, criando condições novas no que toca à capacidade de produção. Este desenvolvimento das forças produtivas (entre as quais avulta o próprio homem enquanto produtor e utilizador do conhecimento e do saber) só carece de novas relações sociais de produção, de um novo modo de organizar a vida colectiva, para que a humanidade possa saltar do reino da necessidade para o reino da liberdade.

            Por tudo me sinto feliz por me sentar à mesa simbólica em que celebramos Avelãs Nunes. Há poucos dias, em Brasília, na Universidade de Brasília, fui convidado a proferir a CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO – “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”, por ocasião da 9ª CONFERÊNCIA DO FÓRUM DE GESTÃO DO ENSINO SUPERIOR NOS PAÍSES E REGIÕES DE LÍNGUA PORTUGUESA – FORGES, de 20 a 22 de Novembro – 2019 | Brasília, Brasil.

            Na ocasião, balizei a minha manifestação com a consideração da urgência de se promover Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória (referência à proposta de Boaventura de Sousa Santos).

            Iniciei a minha saudação aos participantes desta 9ª CONFERÊNCIA DO FÓRUM DE GESTÃO DO ENSINO SUPERIOR, com uma evocação, valendo-me da memória viva de uma exortação de Avelãs Nunes:

            “Presente em Coimbra, na Sala dos Capelos, da vetusta universidade, nos começos da década de 2000, para um Congresso Portugal-Brasil, guardo em mim até hoje o sentimento marcado pela disposição de todos ali presentes, de construir caminhos para a uma história comum: “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos” (Boletim da Faculdade de Direito –  STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000).

            Estas palavras, ditas, pelo aquela altura, Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, logo a seguir, seu vice-Reitor, o Professor António José Avelãs Nunes, assinalaram as distinções entre o Portugal português e o Brasil brasileiro, no que tange aos seus caminhos, nas condições daquele congresso. Mas se prestam também, para designar as distinções entre o Portugal português e os países que formam a comunidade de povos de língua portuguesa, presentes nesta 9ª Conferência (Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e certamente entre os participantes, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste) no que tange aos seus próprios e intercruzáveis caminhos, em que pese, lembra Eduardo Lourenço, “cada povo só o é por se conceber justamente como destino” (Portugal como Destino).

            Temos sim, os povos que se expressam em língua portuguesa, essa história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias. Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossos destinos?

            A direta atenção aos temas da Grande Conferência tangidos de modo aprofundado e interpelante nas conferências, painéis, sessões especiais, orais e de pôsteres, mesas-redondas, atividades culturais e assembleias, ao se discutir e confrontar experiências e reflexões: políticas de ensino, comunicação entre instituições e sociedade, impacto glocalizado do agir institucional, concertações entre alternativas pedagógicas, estratégias de gestão, revela já uma linha de orientação para atender à indagação do que há de comum a partir de nossa origem histórica, social, antropológica, cultural, espiritual e a possibilidade de um destino comum aqui vislumbrado desde a questão-geradora que nos mobiliza: O Ensino Superior e a Promoção do Desenvolvimento Humano: contextos e experiências nos países e regiões de língua portuguesa.

            Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções atuais do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.

            Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração, tal como se debateu aqui nesta 9ª Conferência. Retomo Avelãs Nunes: “Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.

            A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenómenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.

            É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim-da-história.

           Assim como esta globalização não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projecto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, assim também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.

           Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.

           De resto, talvez a utopia de Marx esteja a confirmar-se: o desenvolvimento científico e tecnológico conseguido pela civilização burguesa proporcionou um aumento meteórico da produtividade do trabalho humano, criando condições novas no que toca à capacidade de produção. Este desenvolvimento das forças produtivas (entre as quais avulta o próprio homem enquanto produtor e utilizador do conhecimento e do saber) só carece de novas relações sociais de produção, de um novo modo de organizar a vida colectiva, para que a humanidade possa saltar do reino da necessidade para o reino da liberdade.”

           Nesse diapasão, trata-se, pois, de indagar-se de que desenvolvimento se cuida, quando falamos em desenvolvimento. Essa é a questão proposta por Roberta Amanajás Monteiro, em tese defendida na Faculdade de Direito da UnB, sob minha orientação. (2018). Com o tema “Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? A Hidrelétrica de Belo Monte e seus impactos nos direitos humanos dos povos indígenas”, a pesquisadora apresenta exatamente a tensão entre o desenvolvimentismo e os direitos humanos a partir do estudo de caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e os seus impactos aos indígenas Arara da Terra Indígena Volta Grande e Juruna, da Paquiçamba. A pergunta central de sua tese interpela como ocorre a tensão entre projetos de desenvolvimentismo e os direitos humanos dos povos indígenas, e se os conflitos se inscrevem na matriz colonial de poder. Fundamentada na teoria da Colonialidade do Poder de Anibal Quijano e nos autores do pensamento decolonial, a metodologia eleita por Roberta Amanajás apoiada em investigação empírica, fornece os argumentos da constatação da incidência da ideia de raça no percurso do licenciamento ambiental do empreendimento. Para a autora, numa aproximação sociológico-jurídica, a compreensão de que é a partir da ideia de raça que é negada a condição de sujeito de direitos e de conhecimento aos povos indígenas, conseqüentemente dos seus direitos de território, natureza, modo de vida e direito à participação e consulta prévia, a conclusão leva, necessariamente, à expectativa militante de construção de elementos de desenvolvimento a partir dos próprios povos indígenas. Igual indagação coloca Erina Batista Gomes, em relação a exigência de consulta para salvaguardar direitos de comunidades tradicionais diante de grandes empreendimentos energéticos, oportunidade para movimentos sociais do campo, das florestas e das águas interpelarem as políticas desse setor com questões fundantes: desenvolvimento para quê e para quem? (SOMBRAS, BRECHAS E GRITOS: vozes silenciadas, consulta prévia e re-existência nas margens do rio Tapajós. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, Dissertação de Mestrado, 2018).

           Em Avelãs Nunes, a aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social  os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

           Abri essa linha de problematização exatamente com um autor português, até para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis.

           Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, A DESUMANIZAÇÃO NÃO É DESTINO. “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”

Salve e viva Professor António José Avelãs Nunes.

          

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

  1. Sirley Aparecida de Souza

    Uauuuu, que texto magnífico! Poético, político e densamente ensinante. Linda e honrada a homenagem.

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