Democracia e Justiça são tema de discurso do Dr. Newton De Lucca em Sessão Solene

Coluna Pensando Poeticamente Direito e Política

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*Discurso proferido no dia 1º de março de 2018, na Sessão Solene de Posse da nova administração do TRF3, no auditório da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

 

É com muita honra que assumo esta Tribuna para saudar a nova administração do nosso Tribunal, o maior tribunal regional federal do Brasil, como é sabido por todos.
Faço-o tomado pela mais viva emoção, como não podia deixar de ser, pois, desconsiderado o tempo em que exerci os cargos de Diretor da Escola da Magistratura, de Presidente do XIII Concurso de Ingresso e de Presidente da nossa Corte de Justiça, em meus mais de vinte anos de judicatura, pela vez primeira, assumo a responsabilidade de discursar em nome de meus eminentes pares…
Com efeito, a amável e generosa escolha deste que lhes fala não elide esta pesada carga de responsabilidade, pois sempre interpretei este ato solene, não apenas como mera saudação protocolar aos recipiendários dos cargos de Presidente, de Vice-Presidente e de Corregedor Geral, mas, muito mais do que isto, como autêntica afirmação de princípios éticos fundamentais da Corte, sem os quais uma Justiça jamais poderá ser considerada verdadeiramente digna deste nome…
É claro que eu e meus companheiros de lida, todos integrantes do nosso honrado areópago, iremos hipotecar-lhes todo tipo de apoio para a melhor condução dos destinos do Tribunal, máxime num momento difícil como este em que são praticadas contra o Poder Judiciário, de maneira cavilosa e insana, as mais diferentes formas de vilipêndio. A despeito de não ser esta a sede própria para fazer a defesa da dignidade do trabalho da nossa Justiça Federal, não cometerei a cinca de ficar calado diante da atitude irresponsável e impatriótica de alguns ataques injustamente desferidos contra ela…
Disse-lhes que a escolha deste que lhes fala, além de amável, terá sido igualmente generosa… Isto porque tantos outros poderiam fazer esta oração muito melhor do que eu… Mas, à quelque chose malheur est bon, já dizia um velho ditado gaulês… Existe sempre algo de bom na infelicidade, e a escolha infeliz poderá ter seu lado bom… Explico-me…
Por não ser o mais indicado a fazer tal pronunciamento, por certo, minha fala não terá a cultura, a erudição e a grandiloquência que dela se espera, pois mesmo sendo este um momento de festa para nós, não o é para o País, que atravessa uma grave crise moral sem precedentes ao longo de toda a sua história… E não se trata de mero cansaço, como já se disse algures…
Há menos de um mês, estive na solenidade de posse do Exmo. Sr. Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, durante a qual pude ouvir nada menos do que sete discursos, todos eles fazendo referência expressa aos tempos sombrios em que vivemos…
Com efeito, quando se orquestra um forte movimento, apoiado por meios de comunicação de massa, para denegrir sistematicamente a imagem do Poder Judiciário, um dos pilares do regime republicano, é porque algo de muito grave parece acontecer nos bastidores da República…

Tempos difíceis, tempos muito difíceis… Alguém mais jovem do que eu, alguém mais aguerrido do que eu, alguém mais fanático do que eu — que tanto detesto os fanáticos e todas as formas de fanatismo — talvez devesse ter sido o escolhido para falar sobre o estado de acrasia ética que grassa em nosso país e sobre essa singular inversão de valores em nossa sociedade, na qual gente corrupta e podre encontra mais espaço para viver do que aquele homem justo que apenas deseja o triunfo do Bem contra o Mal, pois, afinal de contas, é nisso que consiste a vida, segundo o velho diálogo de Sócrates e Glauco…

Ainda outro dia, sem saber o que dizer a um de nossos colegas, que acabara de perder o convívio de seu pai, ocorreu-me apenas relembrar esta comovente passagem do nosso Rui Barbosa, em seus Novos Discursos e Conferências: “Eu não conheço duas grandezas tão vizinhas pela sua altitude, tão semelhantes pelas suas lições, tão paralelas na sua eternidade como estas: a justiça e a morte. Ambas tristes e necessárias; ambas amargas e salvadoras, ambas suaves e terríveis, são como dois cimos de névoa e de luz que se contemplam nas alturas imaculadas no horizonte.”
Infelizmente, porém, são outras as passagens do nosso “Águia de Haia” que assaltam neste momento a nossa mente, talvez aquela mais conhecida de todos e que, tão própria na época de Rui, mais pertinente ainda parece tornar-se agora:

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”

Exma. Desembargadora Federal Therezinha Cazerta, Exmo. Desembargador Federal Nery Jr., Exmo. Desembargador Federal Carlos Muta: Vossas Excelências assumem, respectivamente, os cargos de Presidente, de Vice-Presidente e de Corregedor-Geral do nosso Tribunal. Fazem-no com o sufrágio, o beneplácito e o apoio da maioria incontestável de seus pares…
E é por isso que me permitirei quebrar uma das tradições de nosso protocolo, deixando de mencionar a louvável biografia de cada um, para me concentrar nas questões pelas quais deveremos incansavelmente lutar… E não são poucas, infelizmente, razão pela qual deveremos estar unidos, mais do que nunca, não para defender interesses meramente corporativistas, que não passam de questões “de lana caprina”, se comparadas com as mais despudoradas sonegações fiscais que vemos passar todos os dias pela Justiça Federal, mas para continuar dando o exemplo à sociedade brasileira de como deve agir uma verdadeira Corte de Justiça… Não queremos receber nenhum tipo de elogio pelo nosso trabalho — era escusado dizê-lo —, mas não podemos deixar de exigir o devido respeito pela forma com que combatemos nosso “bom combate”, no dizer de São Paulo…
Vivemos, atualmente, inseridos na chamada “civilização do espetáculo”, de que nos falam, entre tantos, Octavio Paz e Mario Vargas Llosa. O primeiro deles, indicando com arguta observação o caráter efêmero, volátil e imediatista dos políticos contemporâneos, assinalou, de forma sugestiva:
“Mas a civilização do espetáculo é cruel. Os espectadores não têm memória; por isso também não têm remorsos nem verdadeira consciência. Vivem presos à novidade, não importa qual, contanto que seja nova. Esquecem depressa e passam sem pestanejar das cenas de morte e destruição da guerra do Golfo Pérsico, às curvas, contorções e trêmulos de Madonna e Michael Jackson. Comandantes e bispos estão fadados à mesma sorte; também eles são aguardados pelo Grande Bocejo, anônimo e universal, que é o Apocalipse e o Juízo Final da sociedade do espetáculo.”
Já Vargas Llosa, na mesma linha de análise, após mostrar que, na civilização do espetáculo, a política banalizou os gestos e as formas, que passaram a importar muito mais do que valores, convicções e princípios, faz a seguinte curiosa observação:
“Cuidar de rugas, calvície, cabelos brancos, tamanho do nariz e brilhos dos dentes, assim como do modo de vestir, vale tanto (e às vezes mais) quanto explicar o que o político se propõe a fazer ou desfazer na hora de governar. A entrada da modelo e cantora Carla Bruni no Palácio do Eliseu como madame Sarkozy e a pirotecnia midiática que veio junto e não para de espocar mostram que nem a França, país que se gabava em manter viva a velha tradição da política como atividade intelectual, cotejo de doutrinas e ideias, conseguiu resistir, sucumbindo também à frivolidade universalmente reinante.”
Claro está que esses textos de Octavio Paz e de Vargas Llosa já se encontram defasados no tempo, mas não em sua impressionante atualidade… Sabemos que Michael Jackson já se foi, tendo sido colhido prematuramente pela morte, e madame Sarkozy já não mais ocupa o Palácio do Eliseu…
Nós, homens da Justiça, temos o dever moral de nos contrapor a essa frivolidade reinante. Seja-me permitido, então, voltar à paradigmática figura do nosso Rui Barbosa. Não obstante seu talento deveras invulgar, a seu respeito ele singelamente escreveu: “Estudante sou. Nada mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas. Muitas lendas se têm inventado, por aí, sobre excessos da minha vida laboriosa. Deram, nos meus progressos intelectuais, larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados n’água fria. Contos de imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca recorri a ele como a estimulante cerebral. Nem uma só vez na minha vida busquei num pedilúvio o espantalho do sono.”
Foram dele, também, as seguintes frases:
1ª) “a existência das repúblicas se mede pela existência da justiça”
2ª) “Maior que a tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado!”
E é fundado no sentido e alcance dessa última passagem, que me vejo obrigado a denunciar, de forma veemente e desassombrada, a tentativa existente em nosso país, feita por parlamentares axiologicamente cegos, por alguns detentores dos poderes midiáticos e até mesmo por um condenado a mais de dez anos pela Justiça Federal do Brasil, de difamá-la de forma aberrante e criminosa, como se nossas Cortes de Justiça pudessem ser confundidas com o imenso quintal de rocha estéril de um partido político qualquer…
Não se trata, evidentemente, de demonizar a política, um dos fundamentos da democracia representativa, própria da nossa República, mas não podemos compactuar com o embuste escancarado de certas catilinárias contra o Poder Judiciário, originárias de pessoas que fizeram e fazem do crime a marca registrada de suas atuações…

Foto: Portal Brasil

Foto: Portal Brasil

Nós, da Justiça, que juramos cumprir a Constituição da República, sabemos muito bem o quão importante é a observância da independência e da harmonia entre os Poderes da União, preconizada em seu art. 2º. Mas se essa independência que deve existir em cada um dos Poderes na República não for exercida de molde a preservar-se a harmonia, conspurcado estará sendo o sentido, o alcance e o verdadeiro espírito desse art. 2º da nossa Lei Maior. Daí que, pela fiel observância desse mesmo dispositivo constitucional, não poderemos ficar calados diante de aleivosias partidas de figuras caricatas e burlescas de nossa República, que procuram, de forma cavilosa, denegrir a atuação das nossas instituições que têm por função salvaguardar a lei e a ordem, como a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o Poder Judiciário Federal. Até parece que alguns integrantes do bando de corruptos, com muitas contas, ainda, a serem prestadas à Justiça brasileira, fazem questão de manifestar seu ensandecido desejo de dominá-la… Mas, como dizia Voltaire, a paixão de dominar é a mais terrível de todas as enfermidades do espírito humano…
Não podemos permitir que haja espaço na sociedade brasileira para o espandongado exercício do fanatismo. Norberto Bobbio, numa de suas maravilhosas passagens afirmou o seguinte:
“Da observação da irredutibilidade das crenças últimas extraí a maior lição de minha vida. Aprendi a respeitar as ideias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar. E porque estou com disposição para as confissões, faço mais uma ainda, talvez supérflua: detesto os fanáticos com todas as minhas forças.”
Sabemos muito bem que o homem brasileiro não se acha apenas cansado dos numerosos descaminhos dos nossos Poderes Públicos… Muito mais do que isso, na verdade, o cidadão brasileiro anda muito desiludido, assim como nós, do Poder Judiciário, também andamos desiludidos…
Descrente de quase tudo e de si mesmo, ele já não consegue encontrar testemunhas para seu desconsolo. Já não vislumbra no outro o eco de suas aflições mais íntimas… E, como dizia Sartre, no alto da sua sabedoria, em frase de arrepiar mesmo a medula mais insensível: “Começa para o homem a angústia, o abandono e os suores de sangue, quando não pode mais ter outra testemunha senão ele próprio…”
À míngua do necessário talento para fazer perorações, sempre recorri aos versos dos grandes poetas para fazê-las… Quais deles poderiam refletir um estado de alma dilacerado por ver a própria pátria seguindo caminhos diversos daqueles desejados por nós?…

Amargurado com a aventura insana de Dom Sebastião, assim se expressou Camões numa das oitavas de “Os Lusíadas”:
“Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho
destemperada e a voz enrouquecida
e não do canto, mas de ver que venho
cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se ascende o engenho
Não no dá a Pátria, não, que está metida
no gosto da cobiça e da rudeza
duma austera, apagada e vil tristeza…”
Passo do grande Camões ao grande Castro Alves. Diante da maior chaga existente na história brasileira — o absurdo completo da escravidão humana — assim exprimiu-se nosso poeta romântico condoreiro:

“Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!”

Muito obrigado!

 

Newton de Lucca.jpg]
Newton De Lucca é  Articulista do Estado de Direito – Mestre, Doutor, Livre-Docente, Adjunto e Titular pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde leciona nos cursos e graduação e pós-graduação; Desembargador Federal do TRF da 3a. Região – presidente no biênio 2012/2014; Membro da Academia Paulista de Magistrados. Membro da Academia Paulista de Direito. Presidente da Comissão de Proteção ao Consumidor no âmbito do comércio eletrônico do Ministério da Justiça. Vice-Presidente do Instituto Latino-americano de Derecho Privado.

 

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