Coluna Latinitudes, por Olivia Ricarte*
Foi assim
No dia em que todas as pessoas
Do planeta inteiro
Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado em todo o planeta”
(Trecho da canção “O Dia em a terra Parou”, de Cláudio de Azeredo e Raul Seixas)
Wuhan, Província de Hubei, China. 31 de Dezembro de 2019. Foi do outro lado do mundo que, a partir da primeira notificação, a humanidade conheceu o vírus mais misterioso e devastador do XXI até então. Foi na passagem de ano, quando se costuma celebrar o encerramento de um ciclo o começo de outro, que intrigantemente adentramos no que parece realmente ser uma nova era.
Desde então, o surto localizado transformou-se em epidemia e, em três meses, alcançou o assustador status de pandemia. No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou oficialmente o denominado COVID-19 (SARS- CoV-2) como sendo de transmissão global e comunitária, num rastro já não mais possível de detectar – e de conter.
Num mundo tão conectado e globalizado, não demorou muito para a pandemia tocar solos Latino Americanos, tendo sido o primeiro caso oficialmente notificado nas Américas dia 21 de janeiro de 2020 nos Estados Unidos, 4 dias depois no Canadá e, na América Latina propriamente dita, no dia 26 de fevereiro, no Brasil, no auge do carnaval, justamente num dos períodos com mais aglomeração do ano, o que é um cenário bastante relevante, haja vista tratar-se de um vírus de alta transmissibilidade pelo contato com mucosas, gotículas e, como alguns estudos sugerem, pelo ar estático (aerossóis).
A partir daí, considerando a problemática pelas quais outros países já estavam passando em face da pandemia desenfreada e do colapso nos sistemas de saúde do mundo todo, inclusive de países detentores de sistemas de saúde melhores que os da América Latina, como França, Itália e Espanha, deu-se início a uma corrida contra o tempo, no sentido de, na falta de uma vacina a curto prazo ou de um tratamento eficaz de cura, diminuir a curva de contaminação, achando o pico e poupando o abarrotamento dos (poucos) leitos de UTI, para o que necessitariam.
A propaganda pela adesão voluntária da quarentena, no entanto, esbarrou no cenário de extrema desigualdade social da América Latina: afinal, como pedir para um chefe de família, que não possui uma renda estável tampouco suficiente para abastecer o seu lar por 15 dias, ficar em casa? O dilema entre ficar em casa e conseguir comida e pagar as contas então, nos países Latinos, escancarou o problema histórico da pobreza, da informalidade e da concentração de renda.
Isto, somado a demora, por parte dos governos, desabastecidos por anos e anos de desvio de dinheiro e corrupção, em dar suporte assistencial econômico para incentivar a quarentena – até então a única forma de conter a contaminação em massa – , resultou num baixo índice de isolamento social; no Brasil, especialmente, o maior país da região, até maio de 2020 não ultrapassou a casa dos 50%, distante da meta ideal de 70% recomendado pelas autoridades sanitárias internacionais e especialistas no assunto.
Num efeito dominó, o que mais se temia começou a acontecer: a curva crescente de infecções, de forma vertiginosa em muitos países, colapso nos sistemas de saúde locais e muitas, muitas mortes, mais e mais rápidas do que se imaginava.
O primeiro país da região a sofrer o colapso foi o Equador, registrando que 1/3 da população da cidade de Guayaquil, a segunda maior do país, chegou a contrair o vírus, num universo de 2,7 milhões de pessoas. Guayaquil é uma cidade portuária, o que explica a rota que o vírus tomou e porque foi uma das mais afetadas.
Presenciamos as cenas de horror que os Equatorianos viveram, registradas por vídeos amadores e pela imprensa local. Corpos empilhados nas ruas, pessoas agonizando na frente de hospitais superlotados, famílias sem conseguir enterrar seus entes queridos, por não haver mais vagas nos cemitérios e, o pior: corpos desaparecidos ou trocados, aumentando a angústia de perder um membro da família ou um amigo, não poder se despedir com um velório normal e nem poder ter a certeza se está enterrando o corpo certo. Um cenário que parece ter saído de um filme apocalíptico, mas que se repetiu em outros lugares da região, inclusive no Brasil, na cidade de Manaus, ao norte do país, no coração da Amazônia.
Diante do que ocorreu no Equador, e mesmo nos Estados Unidos que, com toda a estrutura chegou a registrar quase 5 mil mortes em um único dia (em 17/04/20), os outros países da região começaram a adotar medidas mais rígidas para frear o avanço da pandemia. Chile e Argentina, por exemplo, impuseram multa a quem desobedecesse a ordem de sair apenas para atividades essenciais. O Peru decretou rodízio de circulação entre homens e mulheres, considerando a vulnerabilidade e o aumento de índices de violência doméstica, índice este que também aumentou no Brasil e no México. A Colômbia chegou ao extremo de punir com prisão, em praça pública, os que insistiram em sair sem comprovação de necessidade.
Os auxílios econômicos, embora tardios e insuficientes, também foram implementados, uns mais robustos, como na Argentina, onde foi anunciada a ajuda de um salário mínimo, e uns bastante aquém de suprir necessidades básicas, como no Brasil, onde depois de muita discussão entre legislativo e executivo, chegou-se ao valor de R$600,00 (seiscentos reais), quando o salário mínimo vigente era de pouco mais de mil reais.
A economia também foi pauta durante os primeiros meses da pandemia na América Latina; e, em alguns lugares, tomou à frente nas prioridades de governo, inclusive. Embasados na teoria da imunização ativa coletiva (ou de rebanho), alguns líderes de Estado relutaram – alguns ainda relutam, em meio de 2020 – , em aplicar as medidas de contenção de circulação, alegando que a quarentena não seria a melhor forma de impedir o avanço da pandemia, mas apenas retardá-lo, e com sérios danos à economia. O México e o Brasil são os exemplos mais emblemáticos desta posição.
De um lado, o presidente Mexicano Lopez Obrador, de centro esquerda e, de outro, o Brasileiro Jair Bolsonaro, de centro direita; ambos comungam de políticas públicas que vão de encontro às recomendações da ciência e vão além, incentivando aglomerações. No México, felizmente, o presidente atentou-se para a conduta equivocada (porquanto não se consiga outra forma de conter a pandemia, frise-se) e recuou, quando o país começou apresentar uma curva crescente e desenfreada.
O Brasil então, segue nesta linha, mesmo sendo um dos únicos países do mundo com a curva ascendente quase numa linha vertical, com colapso em vários Estados, a exemplo de Rio de Janeiro, Amazonas e Ceará e, até a finalização deste artigo, com um número de quase 230 mil casos confirmados e mais de 15 mil mortes; isto em apenas 2 meses e meio desde a confirmação da 1ª notificação.
O caso do Brasil é bastante peculiar, haja vista que, além da crise da pandemia, comum a todo o mundo, e ao prenúncio de crise econômica, também comum a toda a comunidade internacional, enfrentamos uma terceira crise, de cunho político e institucional. O presidente e seus aliados da ala mais radical, além de irem na contramão do que a ciência neste momento recomenda, ainda flertam com atitudes antidemocráticas, estimulando uma polarização cada vez mais tensa. E, por ironia do destino, se aproxima cada vez mais com governos que julga como inimigos políticos, como por exemplo a Nicarágua, o único país da região que não adotou nenhuma medida de enfrentamento da pandemia e, curiosamente (ou não), registra os melhores dados, com até então apenas 8 óbitos, tal como a Coréia do Norte, que não registrou nenhum caso de COVID-19.
Neste primeiro contato com a pandemia, assim tem se comportado a América Latina; seguimos observando e torcendo para que, na próxima edição deste compêndio, possamos trazer dados evolutivos e políticas públicas de resultado positivos. Em verdade, esperamos que próxima edição deste compêndio dedicado à pandemia na América Latina seja a última, e que finalizemos com a notícia de cura.
Amicus autem protinus te videre*.
*Nos vemos em breve, amigos. (latim).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REPORTAGEM. Por RFI/G1. Um terço dos 2,7 milhões de moradores de Guayaquil, no Equador, contraiu a COVID-19. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/08/um-terco-dos-27-milhoes-de-moradores-de-guayaquil-no-equador-contraiu-a-covid-19.ghtml
REPORTAGEM. Por In Mundo. Cidadãos são presos pelos pés por desrespeito à quarentena na Colômbia. Disponível em: http://coronavirus.atarde.com.br/cidadaossaodetidospordesrespeitoaquarentena-na-colombia/
REPORTAGEM. Por G1. Coronavírus: taxa de isolamento social em SP se mantém em 50% nesta quarta; índice ideal é de 70%. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/16/coronavirus-taxa-de-isolamento-social-em-sp-se-mantem-em-50percent-nesta-quarta-indice-ideal-e-de-70percent.ghtml
REPORTAGEM. Por Uol Economia. Argentina anuncia mais medidas para assistência a empresas e trabalhadores. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadaoconteudo/2020/04/20/argentinaanuncia-mais-medidas-para-assistencia-a-empresas-e-trabalhadores.htm
REPORTAGEM. Por BBC. Mapa interativo que mostra as medidas e tipos de isolamento adotados na América Latina. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52248493
REPORTAGEM. Por Senado Notícias. Observatório alerta para riscos de aumento de violência doméstica na pandemia. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/05/observatorio-alerta-para-risco-de-aumento-da-violencia-domestica-na-pandemia.
REPORTAGEM. Por BBC. 4 pontos sobre o discurso de Bolsonaro em ato a favor de “intervenção militar”. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52353804.
*Olivia Ricarte é Articulista do Estado de Direito. Servidora pública em Boa Vista-RR. Bacharel em Direito pela UNIFENAS/MG, foi bolsista do CNPQ em programa de iniciação científica. Foi advogada, é ex membro da comissão da mulher da OAB/RR. É especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional e em Filosofia e Direitos Humanos pela PUC. Integrou a Câmara de mediação e arbitragem Sensatus/DF. É graduanda em ciências sociais pela UFRR, é presidente regional da Rede Internacional de Excelência Jurídica. É coautora da obra “juristas do mundo”, lançada em 2017 em Sevilha, Espanha. Foi condecorada com as medalhas de mérito pela contribuição a ciência pelas universidades de Bari, na Itália e Porto, de Portugal. |
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