202 anos da Independência do Brasil: o liberalismo conservador pós-colonial

O período colonial brasileiro teve seu fim em 1815, com a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A elevação do Brasil a Reino deveu-se à recusa de países no Congresso de Viena em aceitar a representação portuguesa, que não teria voz, pois governava desde uma colônia. A saída, portanto, foi mudar o status.

Neste período é preciso assinalar que inúmeros foram os movimentos libertadores e antiabsolutistas que culminariam no Brasil Império e na outorga da primeira Constituição brasileira, em 1824. Também se verificou movimentos de cunho republicano no período.

Os intelectuais que pensavam a independência, afirma Capistrano de Abreu, pouco se importavam com questões práticas e concretas, divagavam sobre o que viria depois, a “conquistá-la por um modo qualquer, por uma série de sucessos imprevistos, como afinal sucedeu.”. [1]

Nesse sentido, compreende-se que os movimentos que eclodiram nesse início do século, e também no final do século XVIII, não se tratavam propriamente de movimentos unânimes, em busca e impulsionado por um movimento nacional uniforme. Mas existiram, sim, inúmeros movimentos que contestavam o poder da Coroa e queriam implementar uma nova ordem.

A grande questão é que esses movimentos e reivindicações que ocorreram – alguns mais radicais, outros mais moderados – foram sempre abafados com severa violência por parte do Estado e, seguidamente – como é o caso dessas primeiras décadas do século XIX – imposto ou dado uma Constituição, sob forma de conciliação. Em especial, precisamente neste momento da história – antes da independência do Brasil – destaca-se a Inconfidência Mineira (1789) e a Revolta Pernambucana (1817), movimentos eminentemente populares e com alta capacidade de se fazer implementar as ideias de uma nova ordem. Ambos, desmantelados com a atuação do Estado a partir de intensa violência.

Foi diante desse período conturbado que se recorda aqui as palavras de José Hipólito, editor do primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense, em Londres, que ao narrar as manifestações populares externa sua preocupação, ao escrever em seu editorial que “é preciso que se faça a revolução antes que o povo o faça”. [2] Essa ideia revela bem o pensamento conservador da época, de parte da elite e dos governantes. Quando de muita manifestação e insatisfação, é preciso que o Estado, se valendo do meio oficial, faça algo e ocupe um espaço tal antes que o povo o faça ou o ocupe. Se virão mudanças, que sejam pelas mãos oficiais para conter os avanços de cunho popular e conservar o que for possível das estruturas e dinâmicas políticas em vigor. De tal modo, revela um pensamento antidemocrático e usurpador das vontades e reivindicações a partir de um elemento popular – à época, latente no país.

Nesse sentido, registra-se que, pouco tempo depois da manifestação de Hipólito, a Constituição de 1824 foi outorgada por Dom Pedro I, vez que, reitera, a forma conciliatória, em que se concede possíveis avanços, a fim de que permaneçam alguns privilégios e estruturas imutáveis, no máximo reformadas.Tal lógica parece lembrar Giuseppe Tomasi di Lampedusa, em O Leopardo, o qual expressa que “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. [3] A Constituição de 1824 representaria a grande mudança, enquanto o cenário social e político brasileiro pouco ou quase nada se alteraria, mantendo a estrutura do Brasil colonial e o poder imperial. E tal mudança, serviu, em grande medida, para que as coisas permanecessem iguais.

Assim, afirma-se que a política no Brasil é conduzida de modo a dificultar o real desenvolvimento da democracia. Desde a Monarquia, a política é manejada por meio de conciliações, forma de apagar conflitos, de não enfrentamento das questões sociais e de grandes negociações entre forças políticas e econômicas, representando a dificuldade de um agir democraticamente. José de Alencar definia a conciliação como sendo “termo honesto e decente para qualificar a prostituição política de uma época”. [4] Porém, antes de adentrar propriamente à questão da Constituição de 1824 e traçar as críticas necessárias, é preciso compreender um pouco desse período anterior, em especial, a Independência do Brasil e o pensamento que rondava à época.

Dessa forma, conforme mencionado anteriormente, vozes de um liberalismo europeu chegaram em Portugal pela Revolução do Porto, em 1820, liderado pela nascente burguesia contra o regime de D. João VI, este que, por sua vez, se encontrava no Brasil. O referido movimento queria a promulgação de uma Constituição e a volta da Coroa à Portugal. Nesse período, recorda-se-se, Portugal encontrava-se sob regência dos britânicos.O referido movimento teve significativo reflexo e influência no Brasil. Primeiro porque as ideologias desse movimento com viés liberal ingressaram no Brasil Colônia a partir de sua elite colonial, a exemplo, menciona-se José Bonifácio. E foram essas ideias que culminariam na Independência Brasileira, em 1822, e na outorga da Constituição brasileira de 1824, instruída sob pequenos ventos liberais portugueses, mas – desenvolver-se-á adiante – com traços e marcas propriamente portuguesas, no intento de ocultar um Estado patrimonialista e legitimar uma Estado absolutista, sob vestes constitucionais.

Por outro lado, a Revolução do Porto levou a volta de D. João VI a Portugal em abril de 1821, incorrendo na promulgação da primeira Constituição portuguesa, em 1822 – fortemente influenciada pelo movimento constitucionalista espanhol – que instaurou uma monarquia constitucional em Portugal. D. João VI prometera uma Constituição mais liberal que a espanhola, tendo sido a solução encontrada para manter o sistema monárquico e acalmar a revolução que corria aos moldes da atuação política portuguesa. Nesse sentido, Gomes de Carvalho expressa que “uma vez que o monarca não dispunha de forças para reprimir a insurreição, importava pactuar com ela e prestar-lhe o concurso leal de sua experiência dos negócios públicos. Essa atitude lhe ganjearia a confiança da nação (…)”. [5]

D. Pedro I foi, então, coroado Imperador do Brasil em 1o de Dezembro de 1822. O cenário brasileiro já era de severas revoltas, influenciado por ideias liberais que advinham de Portugal, bem como ideias republicanas.

O sistema colonial estava em constante declínio. A mão-de-obra escrava passou a ser severamente tributada, encarecendo produtos de exportação e para conter as constantes insatisfações, a coroa intensificou e formou uma estrutura repressiva, com autoridades arbitrárias, sem limites e responsabilidades, voltadas à ordem na colônia e ao cumprimento dos deveres fiscais.

Sob esse cenário de declínio econômico e emprego de violência e arbitrariedades pelo Estado português, o período colonial foi de intensa inquietação e insatisfação de grande parte dos fazendeiros. Veja, de um lado a atuação violenta, antidemocrática e despótica do governo imperial e, de outro as múltiplas movimentações de cunho popular (por vezes, inclusive, republicanas, antimonárquicas e até federalistas), que se voltavam contra tal poder, estrutura e atuações.

Com a Revolução do Porto, houve representação colonial de várias províncias, podendo eleger, em Portugal, suas próprias juntas governamentais. Tal medida, acalmou parte das elites regionais, que via seus interesses representados na política de Portugal, e alguns, inclusive, tendo o controle político e econômico de determinada província. E essa era a intenção da Coroa, uma grande conciliação para evitar rupturas. No entanto, tais concessões não foram suficientes, pois parcela da elite continuava descontente com os excessos da Coroa, almejando um sistema republicano, em que o elemento regional fosse enaltecido e não houvesse tamanha centralização de poder. Ademais, o movimento constitucionalista brasileiro já se organizava fortemente desde 1820. M. Oliveira Lima analisa esse período como um embate entre um elemento nacional mais avançado e o elemento reacionário, representativo dos portugueses e de parte da elite colonial, que detinham vantagens no sistema político da metrópole:

A independência, tal como se operou, teve aliás o caráter de uma transação entre o elemento nacional mais avançado, que preferiria substituir a velha supremacia portuguesa por um regime republicano segundo o adotado nas outras antigas colônias americanas, por esse tempo emancipadas, e o elemento reacionário, que era o lusitano, contrário a um desfecho equivalente, no seu entender, a uma felonia da primitiva possessão e a um desastre financeiro e econômico da outrora metrópole. A referida transação estabeleceu-se sobre a base da permanência da dinastia de Bragança, personificada no seu rebento capital, a frente de um império constitucional e democrático, cujo soberano se dizia proclamado “pela graça de Deus e pela unânime aclamação dos povos”, a um tempo ungido do Senhor e escolhido pela vontade popular.

Mas o que se registra, nesse período, era o embate entre os que queriam permanecer sob jugo português e aqueles que queriam maior autonomia, contra o processo de recolonização que preconizavam Portugal e as elites portuguesas. Portanto é um período em que circulavam fortemente pela colônia ideias de liberdade, independência, constitucionalismo, monarquia constitucional, republicanismo, abolicionismo e até federalismo.

Representante, em partes, do pensamento da elite brasileira da época encontra-se José Bonifácio, o mais importante ministro de D. Pedro de janeiro de 1922 até julho de 1923. Era um defensor de um grande império luso-brasileiro, no qual o Brasil estaria em pé de igualdade com Portugal. Mas as ideias recolonizadores de Lisboa estavam fortes e bem definidas e, vendo não ser possível tal Império, diante das tentativas recolonizadoras, acabou se tornando um defensor da Independência, sendo um dos principais articuladores dela.

Um momento importante que impulsionou, a partir das ideias que vigoravam à época, à Independência, foi o pedido de retorno imediato, mediante o decreto de 21 de setembro de 1821, de D. Pedro I, príncipe regente, a Portugal, a fim de evitar que o Rio de Janeiro voltasse a condição de sede do Império. Aquela mesma elite que pressionara D. João VI a permanecer no Brasil, também pressionava, agora, D. Pedro I, que grande parte dela estava alinhada a Portugal, já nem obedecendo às ordens que vinham do Rio de Janeiro. No entanto, nesse período o movimento constitucionalista já estava forte e várias províncias já haviam se unido em torno do desejo de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. De tal modo, como avançado estava o movimento, D. Pedro aderiu.

Então, em 9 de janeiro de 1822, conhecido como o Dia do Fico, D. Pedro I comunica que não retornará a Portugal e ficará no Rio de Janeiro. E em 7 de setembro, com a intensificação do movimento constitucional, D. Pedro I proclama a independência do Brasil, já tendo, anteriormente, aderido ao movimento que propugnava uma Assembleia Nacional Constituinte, convocando-a em junho, tendo sido instalada quase um ano depois. Registra-se que seu coroamento deu-se em 1o de dezembro do mesmo ano.

Dentre os gritos de independência ou morte, consagrados no discurso da independência, também houve a expressa adesão ao movimento constitucional, ao afirmar que o Brasil e Eu devemos os bens, que gozamos, e esperamos gozar de uma Constituição liberal judiciosa.

Nesse sentido, em 3 de maio de 1823, instalou-se a primeira Assembleia Nacional Constituinte da história do Brasil, sob presidência do Bisco Capelião-Mor (D. José Caetano da Silva Coutinho). Na sessão de abertura, D. Pedro I deu uma prévia do que seria o constitucionalismo brasileiro, antecipando a ideia de um “liberalismo conservador” ou, podendo delimitá-lo, se possível, como um constitucionalismo absolutista, embora um contra-senso semântico cabal. Lembremos do discurso de abertura: Como imperador Constitucional, e mui principalmente como Defensor Perpétuo deste Império, Disse ao Povo no dia 1° de Dezembro do anno próximo passado, em que Fui Coroado, e Sagrado, Que com a Minha Espada Defenderia a Patria, a Nação, e a Constituição, se fosse digna do Brasil, e de mim.

Este foi o formato do liberalismo que informou o movimento de independência brasileiro, que atravessou o pensamento político e as instituições (ou, a ausência de um liberalismo clássico).

 

[1]ABREU, Capistrano de. Capítulos da História Colonial. Edição do Kindle. Disponível em: https://www.amazon.com.br/Cap%C3%ADtulos-Hist%C3%B3ria-Colonial-Capistrano-Abreu-ebook/dp/B071VDFVB2. Acesso em: 20 mar. 2024.

[2] Correio brasiliense. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/correio_braziliense/volume06.pdf. Acesso em: 12/02/2023.

[3] LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. O Leopardo. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[4] ALENCAR, José. Cartas ao Imperador: Cartas Políticas de Erasmo. 3 ed. Rio de Janeiro, 1866, p. 19. Em outro momento da obra, José de Alencar, que escreveu, de início, a partir de um pseudônimo, apontou que se “fez da conciliação uma política”.

[5] CARVALHO, Manuel Emílio Gomes de. Os Deputados Brasileiros nas Cortes Gerais de 1821. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 44.

[6] LIMA, M. Oliveira. O Movimento da Independência: 1821-1822. Edição do Kindle Disponível em:https://www.amazon.com.br/Movimento-Independ%C3%AAncia-1821-1822-Oliveira-Lima-ebook/dp/B07BV5VJHP. Acesso em: 20 mar. 2024.

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Jessica Fachin

Em Estágio Pós-Doutoral (UnB). Doutora em Direito Constitucional (PUCSP). Mestre em Ciência Jurídica (UENP). Graduada em Direito (PUCPR) e Licenciada em Letras (UEL). Professora Substituta na Universidade de Brasília (UnB) e professora Permanente no Programa de Mestrado em "Direito, Sociedade e Tecnologias" das Faculdades Londrina. Membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Advogada.

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