10 de maio de 2018 poderá ser um dia histórico para o Direito do Trabalho

Coluna Valdete Souto Severo

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A chamada “reforma” trabalhista é resultado de um projeto de lei que iniciou com 11 artigos e retornou da comissão coordenada pelo Deputado Rogério Marinho, com mais de 100 dispositivos, alterando mais de 200 questões no texto da CLT. A tramitação, iniciada no dia 12 de abril de 2017, se encerrou em três meses, nas duas casas do Congresso Nacional. Enquanto a Câmara aceitou 850 emendas ao texto original, o Senado rejeitou todas as 193 emendas apresentadas.

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Aprovada pelo Congresso, a Lei 13.467/2017 foi sancionada por Temer, sem vetos, em 13 de julho. A MP prometida para sanar os problemas da lei veio três dias após a sua entrada em vigência (MP 808) e criou tamanha confusão que sequer foi submetida à votação para transformação em texto de lei.

Em seu relatório, o Senador Ricardo Ferraço refere:

“Quando afirmamos que respeitamos por óbvio a hierarquia das leis, é para responder à tola tese de que esta reforma trabalhista ataca direitos constitucionais. Fosse esta a intenção, ela seria um tiro no pé, uma vez que prontamente a Corte Constitucional julgaria procedente a profusão de ações diretas de inconstitucionalidade que seriam pugnadas contra a norma. Esta narrativa é tão verossímil quanto à batalha de Itararé, a batalha que nunca houve” (sem grifo no original).

Parecia um vaticínio. A “tola tese” de que a “reforma” ataca direitos constitucionais se revelou uma triste realidade, que vem, inclusive, impedindo concretamente trabalhadores e trabalhadoras de exercer seu direito fundamental de acesso à justiça. Tal como predisse o Senador Ferraço, 22 ADI’s já foram interpostas junto ao STF, questionando artigos da Lei 13.467/2017. Delas, talvez a ADI 5766 seja a mais importante, porque enfrenta justamente a questão do direito fundamental de acesso à justiça.

É interessante resgatar outra afirmação contida no relatório de Ricardo Ferraço:

“Não há e não poderia haver na proposta qualquer dispositivo contrário ao sagrado direito constitucional de acesso à Justiça, especialmente por parte dos mais pobres

Os dispositivos legais introduzidos na CLT e que são objeto da ADI 5766, movida pela Procuradoria Geral da República, dizem diretamente com a possibilidade real de exercício do direito de acesso à justiça.

A norma do art. 790-B, ao referir que a responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, “ainda que beneficiária da justiça gratuita”, esvazia o próprio conceito de gratuidade integral previsto na Constituição.

O limite de 15% estabelecido no art. 791-A revela-se completamente dissociado da prática atual, inferior inclusive aos percentuais fixados em tabela pela OAB e, certamente, se mantidos em decisão judicial, implicarão a cobrança de outros valores, a serem suportados diretamente pelo trabalhador ou pela trabalhadora, esvaziando ainda mais o conceito de gratuidade e comprometendo a percepção dos créditos alimentares.

A sucumbência recíproca é a antítese da razão de existência mesma de um processo do trabalho. A Justiça do Trabalho tem por pressuposto a facilitação do acesso à justiça, o que inclui a noção de jus postulandi e de assistência gratuita. Essa última, abrange todas as despesas do processo.

É grave também a disposição contida no § 4º do art. 791-A, quando menciona que o beneficiário da justiça gratuita terá as obrigações decorrentes de sua sucumbência “sob condição suspensiva de exigibilidade”, durante dois anos, nos quais o credor poderá provar que “deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade” estabelece uma contradição que não poderá ser resolvida, senão pela declaração de inconstitucionalidade dessa disposição legal.

É que a gratuidade se dá em razão da situação de quem demanda, no momento em que demanda. E se ela abrange, inclusive sobre a exegese do CPC que, repita-se, sequer tem por princípio a proteção a quem trabalha, todas as despesas do processo, não há como sustentar tal condição suspensiva sem negar, por via oblíqua, a gratuidade. O raciocínio dos “reformadores” em realidade penaliza quem ousa discutir direitos em juízo.

É importante aqui reproduzir um fato fundamental, desvelado pelo colega Jorge Souto Maior, acerca da consequência prática da aplicação dessas regras. O texto de lei acaba por tratar o direito fundamental de acesso à justiça como ato ilícito, pois a consequência do não acolhimento de alguma pretensão do trabalhador ou trabalhadora será a aplicação de uma penalidade: a devolução dos créditos alimentares que lhe foram reconhecidos pelo Estado a quem efetivamente praticou ato ilícito ou, de qualquer modo, nas hipóteses de demanda totalmente improcedente, o pagamento de uma penalidade pecuniária, pois na medida em que reconhecida a gratuidade da justiça, não há como compreender de modo diverso a exigência de pagamento de despesas decorrentes do processo.

A previsão legal de que é possível compensação com créditos obtidos em juízo, “ainda que em outro processo” evidencia isso, e esbarra na literalidade dos art. 1.707 do Código Civil e no art. 100 da Constituição. É que o crédito alimentar é insuscetível de renúncia, cessão, compensação ou penhora (Art. 1.707 do Código Civil), cuja aplicação subsidiária a Lei 13.467 exorta o juiz a fazer (nova redação do art. 8º). O fato de que os créditos trabalhistas são alimentares está consolidado na redação do art. 100 da Constituição, em seu § 1º, segundo o qual tem natureza alimentícia os créditos “decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez”. Logo, não podem ser compensados.

A ADI 5766 também enfrenta o problema da nova redação do art. 844, § 2º, segundo o qual “Na hipótese de ausência do reclamante, este será condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do art. 789 desta Consolidação, ainda que beneficiário da justiça gratuita, salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável”. Além de não dizer o que seria um motivo legalmente justificável, o dispositivo legal novamente penaliza o acesso à justiça, dificultando-o exatamente às pessoas para as quais o benefício da assistência judiciária gratuita foi direcionado para que pudessem exercer seus direitos.

A aposta na Justiça do Trabalho como ambiente ideal para “harmonizar os interesses em luta”, “em defesa da autoridade do Estado, que não pôde ser neutro, nem abstencionista, diante das perturbações coletivas, deixando as forças sociais entregues aos próprios impulsos”, conforme texto da exposição de motivos do Decreto 1.237, em 02 de maio de 1939, que a institui, é não apenas uma resposta às lutas da classe trabalhadora já organizada, como também efeito da necessidade de organização do próprio capital. E seu pressuposto é justamente a facilitação do acesso à justiça àqueles que não tem espaço para deduzir suas pretensões na chamada “justiça comum”.

A Lei 13.467/2017 consegue inverter de tal modo essa realidade que hoje é mais difícil o acesso à Justiça do Trabalho do que à justiça comum. As regras de gratuidade “onerosa” da justiça inseridas na CLT fazem com que o tratamento ao demandante seja mais rigoroso na justiça que só existe para que os pobres possam ter seus direitos discutidos e reconhecidos pelo Estado, do que nos demais âmbitos do Poder Judiciário.

A função da Justiça do Trabalho e, portanto, do processo do trabalho, é viabilizar o acesso à justiça, tendo pois na gratuidade uma de suas características fundamentais. Trata-se de elemento de cidadania e de contenção do conflito entre capital e trabalho que, se não for aí mediado, se apresentará de alguma outra forma no contexto das relações sociais.

Viver em um Estado Democrático de Direito significa ter direitos e deveres, mas também contar com uma estrutura forte que os faça valer, sempre que violados. A própria noção de monopólio da jurisdição pressupõe que todos os cidadãos e cidadãs tenham acesso ao Estado, terceiro cuja função é precisamente garantir a aplicação das “regras do jogo”. Do contrário, a própria democracia revela-se como uma farsa. Elegemos nossos representantes, aprovamos as normas jurídicas e concordamos em conceder ao Estado o monopólio da jurisdição. Em contrapartida, podemos (e devemos) exigir do Estado que garanta a realização dessa ordem de coisas, que aja quando nossos direitos forem violados.

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

A Justiça do Trabalho é a via de acesso de trabalhadores e trabalhadoras que, na maioria absoluta dos casos, só procuram o Poder Judiciário quando já perderam sua fonte de subsistência. Pessoas, portanto, que não tem garantia de fonte de subsistência, para as quais a cobrança da sucumbência ou mesmo a simples inserção de uma tal regra no texto da CLT, implicará razoável receio de ajuizamento de uma reclamatória trabalhista. Esse efeito simbólico, que impedirá o ajuizamento de demandas pelo temor do risco da sucumbência é, ao mesmo tempo, estímulo ao descumprimento da ordem jurídico-trabalhista. O empregador, ciente dos riscos que farão com que seus empregados temam e, portanto, evitem, o recurso ao Poder Judiciário, terá tranquilidade para burlar a legislação trabalhista.

A verdade é que no Brasil, em que não se reconhece garantia alguma contra a despedida, ajuizar uma demanda trabalhista é um ato de coragem, para quem muitas vezes não tem sequer o dinheiro para a passagem de ônibus que o conduzirá até a audiência trabalhista. Implica expor-se diante dos colegas que servirão como testemunhas. Implica a perda de um dia ou turno em que poderia estar trabalhando ou procurando por um novo posto de trabalho. Implica, ainda, a possibilidade concreta de prejuízos futuros, em razão da comunicação entre o empregador demandado e os possíveis futuros tomadores do seu trabalho, prática tão comum que tem até apelido: lista suja.

O que está em discussão na ADI 5766, portanto, não é meramente uma formalidade legal; um modo peculiar ou pessoal de ver determinada norma jurídica. O que está em jogo é a preservação do modelo de sociedade preconizado no pacto firmado por ocasião da elaboração da Constituição de 1988, que sequer, até hoje, foi completamente cumprido. O que está em jogo é a possibilidade real de acesso à justiça.

O STF já iniciou o julgamento dessa ação e tem em mãos a oportunidade histórica de reafirmar o pacto de cidadania e convívio humano que firmamos em 1988 e do qual o acesso à justiça, especialmente para quem não tem condições de suportar despesas processuais, é condição de possibilidade real.

 

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Valdete Souto Severo é Articulista do Estado de Direito – Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

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