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Jurisprudência: Violação do Direito Humano de Acesso à Justiça

ACÓRDÃO

0021277-54.2019.5.04.0007 (PJe) RO                                                 

 DESEMBARGADOR MARCELO JOSÉ FERLIN D AMBROSO

Órgão Julgador: 8ª Turma

Polo Ativo:            

Polo Passivo:      

Origem:                  7ª Vara do Trabalho de Porto Alegre

Prolator da Sentença:              JUIZ(A) LUCIANA CARINGI XAVIER

Distribuição PJe:    25/06/2020 (2° Grau)

Distribuição PJe:    18/12/2019 (1° Grau)

E M E N T A

NULIDADE DA SENTENÇA. ARQUIVAMENTO DO FEITO. IMPOSIÇÃO INDEVIDA DE CUSTAS RELACIONADAS A PROCESSO ANTERIOR COMO CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE, COM BASE EM NORMA REPUTADA INCONSTITUCIONAL E INCONVENCIONAL. VIOLAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA. POSTERIOR BLOQUEIO INDEVIDO DE VALORES EM CONTA DA TRABALHADORA. INFRAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DIRETORES SOBRE EMPRESAS E DIREITOS HUMANOS PELO ESTADO BRASILEIRO (JUSTIÇA DO TRABALHO) E DECRETO 9571/18. DESCULPAS PÚBLICAS DEVIDAS PELO PODER JUDICIÁRIO. 1. O comando que atribui à parte autora o ônus de pagamento das custas como condição de procedibilidade em ajuizamento de nova demanda, mesmo quando beneficiária da justiça gratuita, viola o o direito humano de acesso à justiça, previsto no art. 14 do Pacto   Internacional   dos   Direitos   Civis   e   Políticos (Decreto nº 592/92) e no art. 25.1, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica – Decreto nº 678/92), que foram fundamentalizados na Constituição da República de 1988 nos princípios da assistência judiciária integral e gratuita e do acesso ao judiciário (art. 5º, XXXV e LXXIV). 2. Cassação liminar do bloqueio de valores efetivado na conta da trabalhadora com determinação de devolução imediata da quantia à demandante. Grave violação de Direito Humano perpetrada pelo próprio Estado via Poder Judiciário, na forma do PIDCP (art.14), CADH (art. 25.1) e Decreto n.º 9.571/18 (art. 3º, inciso I, alíneas “a” e “b”, inciso II, inciso IV, alínea “b” e inciso IX). 3. Decreto n.º 9.571/2018, que estabelece a responsabilidade social do Estado no que concerne à adoção de medidas de reparação à violação de direitos humanos, sendo devidas desculpas públicas à trabalhadora, com base nos arts. 13, VII, b, e 15, I, do Decreto em epígrafe, ante o constrangimento decorrente da violação do direito humano de acesso à justiça e bloqueio indevido de valores realizado por esta Justiça do Trabalho. 5. O Direito do Trabalho deve ser aplicado como instrumento de garantia de promoção da dignidade humana e não ao revés, sendo que a ação que o acompanha deve estar acessível de forma gratuita a todas as pessoas, não podendo obstáculos opostos por lei manifestamente inconstitucional e inconvencional ser transformados em barreiras que, mais além de impedirem o acesso à justiça, o inibem, inviabilizando por completo a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais e a possibilidade de realização de uma vida digna por parte das pessoas que integram a classe despossuída, a classe trabalhadora. Recurso provido para decretar a nulidade da sentença e o regular processamento do feito.

 

A C Ó R D Ã O

 Vistos, relatados e discutidos os autos.

ACORDAM os Magistrados integrantes da 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região: por unanimidade, CONFIRMAR A DECISÃO LIMINAR que determinou a cassação da ordem de bloqueio da conta bancária da trabalhadora e o consequente cancelamento da ordem de emissão do alvará de ID. 45dd37f proferida na demanda (0020489- 40.2019.5.04.0007), devendo o valor bloqueado ser restituído à parte autora. Por unanimidade, DAR PROVIMENTO AO RECURSO DA PARTE AUTORA para reconhecer a nulidade da decisão proferida pelo juízo da origem, na qual determinado o arquivamento do feito, determinando-se a baixa do processo para regular processamento, observada a necessária celeridade processual, mediante inclusão em pauta preferencial. Isenta-se a autora de custas, ficando vetada a imposição, a ela, de despesas processuais. Por unanimidade, ainda, DECLARAR, INCIDENTALMENTE, A INCONSTITUCIONALIDADE DA COISA JULGADA NOS AUTOS DO PROCESSO 0020489-40.2019.5.04.0007, tornando-a sem efeitos em relação à condenação da autora em despesas processuais, proibindo-se sua cobrança. Registram-se desculpas públicas à parte autora pelo constrangimento sofrido pelo impedimento do acesso à justiça e bloqueio indevido de valores atinente às custas ilegalmente impostas. Sem valor da condenação.

Intime-se.

Porto Alegre, 26 de outubro de 2020 (segunda-feira).

 

R E L A T Ó R I O

 Inconformada com a sentença que extinguiu o processo sem resolução de mérito (ID. b0d5a8e), prolatada pela MMª. Juíza, Dra. Luciana Caringi Xavier, recorre a parte autora (ID. 311bfe6).

O recurso ordinário da demandante versa sobre nulidade da sentença.

Com contrarrazões da ré (ID. 4fe7599), vêm os autos a este Tribunal para julgamento.

Em 22/10/2020, foi proferida liminar referente ao processo de n.º 0020489- 40.2019.5.04.0007, que apresenta conexão com a presente ação trabalhista.

Processo não submetido à análise prévia do Ministério Público do Trabalho.

É o relatório.

 

V O T O

DESEMBARGADOR     MARCELO     JOSÉ     FERLIN     D     AMBROSO (RELATOR):

Relação de emprego: A autora foi admitida em 17/09/2018 para exercer a função de empacotadora (ID. 720505a – pág. 03). Valor atribuído à causa: R$ 69.091,90.

 

1.LIMINAR DEFERIDA NOS AUTOS DO PROCESSO 0020489- 40.2019.5.04.0007.

Inicialmente, registro que este Relator, em decisão liminar proferida em 22/10/2020, determinou a cassação da ordem de bloqueio da conta bancária da trabalhadora e, por conseguinte, o cancelamento da ordem de emissão do alvará de ID. 45dd37f, em favor da Fazenda Nacional, relativa ao processo trabalhista de n.º 0020489-40.2019.5.04.0007, que apresenta conexão com a presente ação, distribuída por prevenção à Vara de origem.

Eis a referida ordem liminar proferida no ID. f5fe6ec:

“(…) A ação trabalhista nº 0020489-40.2019.5.04.0007 foi ajuizada sob a égide da Lei 13.467/17.

Dentre as várias alterações promovidas pelo legislador na chamada “Reforma Trabalhista”, destaca-se o novo dispositivo processual, art. 844 da CLT, parágrafos 2º e 3º, que assim dispõe:

“Artigo 844 da CLT: O não-comparecimento do reclamante à audiência importa o arquivamento da reclamação, e o não- comparecimento do reclamado importa revelia, além de confissão quanto à matéria de fato.

[…]

 §2o Na hipótese de ausência do reclamante, este será condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do art. 789 desta Consolidação, ainda que beneficiário da justiça gratuita, salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável.

§3o O pagamento das custas a que se refere o § 2o é condição para a propositura de nova demanda.”

Sem adentrar, neste momento, na manifesta inconstitucionalidade (art. 5º, XXXVI) e inconvencionalidade da reforma    (violação   da    Convenção    Americana    de    Direitos Humanos, PIDCP, PIDESC e outros tratados internacionais), ao realizar      consulta      no      sítio      eletrônico      deste      Tribunal (https://pje.trt4.jus.br/consultaprocessual/detalhe- processo/00204894020195040007), verifica-se que na anterior ação, a Julgadora de origem fixou as custas no valor de R$ 1.181,84, ante a ausência injustificada da parte autora à audiência inicial, ocasionando o  arquivamento da ação trabalhista.

Entretanto, a autora, ao propor a presente demanda, referiu que não possuía condições de arcar com as custas do processo. Ademais, registre-se que na ação trabalhista ajuizada anteriormente a demandante também apresentou declaração de pobreza.

Como se não bastasse a declaração de pobreza firmada pela demandante, observa-se que a Magistrada de origem determinou a “citação da autora para pagamento das custas”, por Oficial de Justiça, pasme-se, além de ter determinado o bloqueio de valores da conta bancária da autora nos dias 19/05/2020 e 05/06/2020, oportunidades em que foram localizadas e penhoradas as quantias de R$166,47 e R$421,51, respectivamente. Por fim, foi determinada a expedição de alvará à Fazenda Nacional em 21/10/2020, no valor de R$587,98.

Ora, a autora apresentou declaração de pobreza e a sua CTPS demonstra que foi contratada para receber salário de R$937,00 para exercer a função de empacotadora. 

Nesse aspecto, de forma objetiva, pode-se afirmar que realizar o bloqueio de R$587,98 da conta bancária de uma trabalhadora humilde, com repasse à Fazenda Nacional é uma ato de desrespeito à dignidade da pessoa humana e aos preceitos constitucionais expressos na Constituição da República. É mais, prima facie constata-se lesão grave ao direito humano de acesso à justiça, conforme previsto no PIDCP (Decreto n.º 592/92):

Art. 2.1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.

 3.Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a:

 a)Garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetrada por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais;

b)Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão; e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;

No mesmo sentido, o art. 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o art. 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto 678/92):

  1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
  2. Os Estados Partes comprometem-se:

 a.a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

b.a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

c.a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

Como se não bastasse, a autora foi dispensada da parte ré em 17/09/2018, conforme TRCT juntado no processo que deu origem à cobrança de custas. Logo, considerando que o país enfrenta uma das maiores crises econômicas e sanitárias das últimas décadas, é possível (e bastante provável) que tenha sido retirado dessa trabalhadora quantia essencial ao seu sustento familiar.

Nesse sentido, a Jurisdição ao exercer a interpretação das alterações realizadas pela Lei n.º 13.467/2017, lei da Reforma Trabalhista, não pode ignorar os princípios que norteiam o Direito do Trabalho, nem muito menos os Direitos Humanos. Afinal, não se pode negar que o Direito, como ciência, é formado por regras e princípios, e a lei se submete ao controle de legalidade (constitucionalidade e convencionalidade) e legitimidade. A interpretação literal da lei sem reflexão quanto ao conteúdo e efeitos sociais, pode ofender a dignidade da pessoa humana.

Não em demasia, registro que o presente caso nem sequer envolve conflitos de princípios, pois houve violação direta ao direito da trabalhadora quanto ao livre acesso ao Judiciário, conforme inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República.

Nestes termos, a aplicação “a ferro e fogo” do previsto no art. 844 da Lei n.º 13.467/2017, a fim de cobrar da trabalhadora beneficiária da Justiça Gratuita as custas processuais, e ainda condicionar o ajuizamento de nova ação ao preenchimento de tal requisito, cria obstáculo ao livre acesso à justiça, justamente para quem não tem condições financeiras e que ainda postula nesta justiça especializada o reconhecimento de créditos de natureza indisponível e irrenunciável, que são os créditos de natureza alimentar, objeto das suas demandas, cuja tramitação segue frustrada, mais de ano após o primeiro ajuizamento.

Portanto, a aplicação da reforma trabalhista deve passar por crivo de valoração de legalidade e legitimidade que impeçam seja oposta à classe trabalhadora como embaraço formal ao sagrado Direito Humano de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CR), que para violações a direitos fundamentais (como os direitos trabalhistas) e para pessoas que não tem recursos, deve ser sempre gratuito.

O processo deve servir como meio de instrumentalização do direito material, sendo absolutamente contrária aos Tratados Internacionais versando sobre Direitos Humanos a interpretação que obsta ou dificulta o acesso da pessoa trabalhadora ao Judiciário e inviabiliza a efetivação do bem da vida vindicado e a reparação ao direito violado (lembrando que direitos trabalhistas são Direitos Humanos, na forma do art. 11 da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – Decreto 4377/02).

Nesse sentido, retirar a quantia de R$587,98 de uma trabalhadora, que apenas exerceu seu direito constitucional de livre acesso ao Judiciário, para buscar reparação a Direitos Humanos do Trabalho violados, principalmente durante o período em que o Brasil e o Estado do Rio Grande do Sul encontram-se em estado de calamidade pública, também viola muitos aspectos jurídicos relacionados à própria constituição do Estado Democrático de Direito.

(…)

 Assim, considerando que a análise da presente  demanda possui vinculação direta com o decidido nos autos do processo 0020489-40.2019.5.04.0007, tendo havido inclusive a distribuição por dependência à presente ação, com o intuito de evitar maiores danos aos direitos da demandante, com base no poder geral de cautela previsto no art. 798 do CPC, determino a cassação da ordem de bloqueio da conta bancária da trabalhadora e o consequente cancelamento da ordem de emissão do alvará de ID. 45dd37f proferida na referida demanda (0020489-40.2019.5.04.0007), devendo o valor bloqueado ser restituído à parte autora, com urgência. Caso tenha havido recolhimento dos valores a contas da Fazenda Nacional, a Vara de origem deverá envidar todos os esforços necessários para a reversão e restituição do dinheiro à autora, no menor tempo possível.

Intime-se e notifique-se a Magistrada de origem do inteiro teor desta decisão, COM URGÊNCIA.

Determino a reunião dos processos 0020489-40.2019.5.04.0007 e 0021277-54.2019.5.04.0007 para apreciação conjunta dos fatos.

A matéria objeto do recurso ordinário interposto pela parte no presente feito será objeto de julgamento em sessão colegiada já aprazada para 26/10/2020.”

Frisa-se que o processo de n.º 0020489-40.2019.5.04.0007, no qual realizada a cobrança irregular de custas, tem conexão direta com a presente ação (que repete aquela, arquivada, gerando, inclusive, distribuição por prevenção de juízo,  reconhecida no primeiro grau), originando a imposição ilegal de custas como condição de procedibilidade neste feito.

Assim, considerando que a decisão que fundamentou a cobrança ilegal de custas da trabalhadora teve por fundamento o art. 844, §§2º e 3º, da CLT, este último dispositivo declarado inconstitucional pelo Tribunal Pleno deste Regional, em sessão do dia 12/12/2018, não há falar em coisa julgada, eis que a decisão mostra-se inconstitucional e contrária ao efeito erga omnes que emana da decisão desta Corte, retirando eficácia à referida norma.

Portanto, se a coisa julgada acoberta decisão inconstitucional e que viola o já decidido com efeito erga omnes por esta Corte, não há falar em sua validade, uma vez que não se sustenta a ofensa nela contida aos princípios constitucionais da moralidade e legalidade, em nome de uma suposta segurança jurídica. Ao contrário, a segurança jurídica se estabelece pelo respeito ao julgado por este Tribunal com efeito erga omnes.

Por adequado, citam-se as palavras do processualista Cândido Rangel Dinamarco, que ensina o seguinte, em relação à coisa julgada inconstitucional e a excepcionalidade de avaliação de tais decisões viciadas:

“(…)   a   ordem   constitucional   não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios (…). Propõe-se apenas um trato extraordinário destinado a situações extraordinárias com o objetivo de que providências destinadas a esse objetivo devem ser tão excepcionais quanto é a ocorrência desses graves inconvenientes. (…).” (Relativizar a Coisa Julgada Inconstitucional. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (org.). Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, pág. 72). (grifou-se)

Na mesma linha, destaca-se outra passagem do referido jurista, na obra “Instituições de Direito Processual Civil“:

“A coisa julgada material tem, acima de tudo, o significado político-institucional de assegurar a firmeza das situações jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional. (…) Pelo que significa na vida das pessoas em suas relações com os bens da vida ou com outras pessoas, a coisa julgada tem por substrato ético-político o valor da segurança jurídica, que universalmente se proclama como indispensável à paz entre os homens ou grupos. Esse valor de primeira grandeza, alçado à dignidade constitucional mediante a garantia do respeito à coisa julgada, só não pode prevalecer quando a estabilidade do julgado significar imutabilidade de situações de contrariedade a outros valores humanos, éticos ou políticos de igual ou maior porte. (…)” (São Paulo, Editora Malheiros, 2005, pág. 300) (grifou-se)

Nesse aspecto, por oportuno, citam-se, ainda, as palavras do Exmo. Min. Ricardo Lewandowski sobre a relativização dos efeitos da coisa julgada, tema amplamemente debatido pela Suprema Corte nos últimos anos, principalmente com a vigência do CPC de 2015, o qual passou a estabelecer, de forma expressa, diversos mecanismos de revisão da coisa julgada material:

“(…) A coisa julgada não pode ser encarada como um valor absoluto, pois às vezes deriva de decisões teratológicas ou encontra fundamento em falhas ou fraudes grosseiras (STF. Revista Consultor Jurídico, Anuário da Justiça Brasil, 2011: O Poder da última palavra. São Paulo: Conjur Editorial, p. 51).

Diante do exposto, como a decisão relacionada ao processo de n.º 0020489-40.2019.5.04.0007, proferida pela Magistrada de origem, adotou, como razões de decidir, o dispositivo 844, §§2º e 3º, especialmente norma declarada inconstitucional pelo Tribunal Pleno deste Regional, reconhece- se, de forma incidental, a coisa julgada inconstitucional do processo em epígrafe, por haver violação direta ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), e por desrespeito aos demais alicerces principiológicos estabelecidos na Constituição da República relativos à justiça social, combate à desigualdade e discriminação. Não há falar, portanto, em coisa julgada material no que refere à demanda supracitada, nos termos do art. 5º, XXXV e XXXVI, da Constituição da República, c/c arts. 4º, 5º, 6º e 502 do CPC.

Isto posto, confirmo a decisão liminar proferida na qual restou determinada a cassação da ordem de bloqueio da conta bancária da trabalhadora e o consequente cancelamento da ordem de emissão do alvará de ID. 45dd37f proferida na demanda (0020489-40.2019.5.04.0007), devendo eventual valor remanescente bloqueado ser restituído à parte autora, com urgência, vetando-se novas cobranças.

 

2.NULIDADE DA SENTENÇA. ARQUIVAMENTO DO FEITO. IMPOSSIBILIDADE DE PAGAMENTO DE CUSTAS RELACIONADAS A PROCESSO ANTERIORMENTE EXTINTO POR AUSÊNCIA DA AUTORA À AUDIÊNCIA.

Insurge-se a autora contra a decisão de origem que extinguiu o processo, sem resolução de mérito, tendo em vista a ausência de comprovação referente ao recolhimento de custas a si atribuídas no que diz respeito ao processo nº 0020489-40.2019.5.04.0007, considerando-se, no caso, a sua ausência injustificada à audiência inicial designada para o processo supracitado, que ocorreu em 16/10/2019.

Ao exame.

A ação trabalhista ajuizada anteriormente, processo de nº 0020489- 40.2019.5.04.0007, fora ajuizada sob a égide da Lei n.º 13.467/17, também chamada “reforma trabalhista”.

Dentre as várias alterações promovidas na chamada “reforma trabalhista”, destaca-se o dispositivo processual contido no art. 844 da CLT, §§ 2º e 3º, que dispõe o seguinte:

Art. 844 CLT: O não-comparecimento do reclamante à audiência importa o arquivamento da reclamação, e o não- comparecimento do reclamado importa revelia, além de confissão quanto à matéria de fato.

[…]

 § 2o Na hipótese de ausência do reclamante, este será condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do art. 789 desta Consolidação, ainda que beneficiário da justiça gratuita, salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável.

§ 3o O pagamento das custas a que se refere o § 2o é condição para a propositura de nova demanda. ” (grifei)

Inicialmente,   ao    realizar   consulta   no   sítio eletrônico deste Tribunal (https://pje.trt4.jus.br/consultaprocessual/detalhe- processo/00204894020195040007), verifica-se que, na anterior ação, a autora deste feito, ao propor aquela demanda trabalhista (assim como a atual), referiu que não possuía condições de arcar com as custas do processo, inclusive apresentou declaração de pobreza.

A Julgadora de origem fixou as custas no valor de R$1.181,84, ante a ausência injustificada da parte autora, arquivando a ação trabalhista anterior e, não obstante tenha reconhecido a hipossuficiência da autora, não se absteve de cobrar, nestes autos, a quantia imposta a título de custas.

Ocorre que este Tribunal, em sua composição plenária, declarou, na sessão do dia 12/12/2018, a inconstitucionalidade do §2º do art. 844 da CLT quanto à expressão “ainda que beneficiário da justiça gratuita”, bem como do §3º do mesmo dispositivo, quando dispõe que “o pagamento das custas a que se refere o §2º é condição para a propositura de nova demanda”. Segue ementa:

INCONSTITUCIONALIDADE DOS PARÁGRAFOS 2º E 3º DO ARTIGO 844 DA CLT. O comando que atribui à parte reclamante, ainda que beneficiária da justiça gratuita, o ônus de pagamento  das  custas  como  condição  para  a  propositura de nova demanda, repercute como violação aos princípios da assistência judiciária integral e gratuita e do acesso ao judiciário, traduzidos nos incisos e LXXIV e XXXV da Constituição Federal. Declara-se a inconstitucionalidade do parágrafo 2º do artigo 844 da CLT quanto à expressão ainda que beneficiário da justiça gratuita, bem como do parágrafo 3º do mesmo dispositivo, quando prevê que o pagamento das custas a que se refere o § 2º é condição para a propositura de nova demanda.Nesse aspecto, a aplicação do art. 844 da Lei n.º 13.467/2017, a fim de cobrar do trabalhador beneficiário da Justiça Gratuita as custas processuais, e ainda condicionar a propositura de nova ação ao preenchimento de tal requisito, cria obstáculo ao livre acesso à justiça, justamente para quem não tem condições financeiras e que ainda pleiteia nesta justiça especializada o reconhecimento de créditos de natureza indisponível e irrenunciável, que são os créditos de natureza alimentar, objeto da ação.

Como se sabe, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade realizada por controle difuso de constitucionalidade pelos juízos e tribunais retiram a eficácia da norma viciada. Assim, a Magistrada da origem não poderia ter aplicado as referidas normas, revestindo-se o ato de exigência de pagamento de custas como condição de procedibilidade deste feito, e posterior cobrança com bloqueio judicial de valores em conta bancária, de absoluta ilegalidade e desrespeito à decisão desta Corte.

Não bastasse, o regramento da dita “reforma trabalhista” deve ser interpretado de forma sistemática e não se pode admitir nenhuma possibilidade de embaraço formal ao direito humano de acesso à justiça, sob pena do processo de trabalho não cumprir sua função instrumental de concretização/efetividade de direito material, sobretudo quando se trata de Direitos Humanos do Trabalho ditos violados no curso de relação de trabalho que motivam a demanda. A obstaculização do acesso à justiça à pessoa trabalhadora é prática totalmente contrária ao art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592/92), e ao art. 25.1, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica – Decreto nº 678/92), o qual estabelece que:

“Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízos ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercícios de suas funções oficiais”.

E segundo o art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos, não há espaço para nenhum tipo de interpretação restritiva do amplo acesso à justiça.

Com efeito, os direitos econômicos, sociais e culturais estão fundamentalizados como cláusula pétrea nos arts. 6º a 11 da Constituição da República, cujo art. 5º, XXXV, também contempla o princípio do amplo acesso à justiça como garantia fundamental (direito humano), revestindo-se a ação trabalhista e o processo do trabalho como instrumentos de concretização dos Direitos Humanos do Trabalho.

O direito ao acesso à justiça para o fim de vindicar direitos trabalhistas é, portanto, um Direito Humano duplamente fundamentalizado, tanto no art. 5º, XXXV, quanto no art. 7º, XXVIII, da Constituição da República e, nesta condição, recebe o tratamento dedicado previsto na proteção jurídica da CADH, que o amplia para conferir simplificação, efetividade e celeridade, características incompatíveis  com as normas impostas pela reforma trabalhista e com a conduta adotada pela Magistrada de 1º grau ao aplicar a legislação doméstica sem considerar o indispensável e prévio controle de constitucionalidade e convencionalidade da Lei 13467/17.

Assim, por qualquer prisma que se observe o caso, a decisão da origem reveste-se da mais absoluta ilegalidade, ferindo de morte o direito humano de acesso à justiça, impossibilitando que a trabalhadora, de humildes condições, obtenha do Estado a proteção necessária para a reparação dos seus direitos humanos ditos violados no curso da relação de trabalho.

Nessa esteira, também foi desrespeitado pelo Estado o teor do Decreto n.º 9.571/18, o qual estabelece as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, determinando a aplicação, dentre outros instrumentos, dos Princípios Diretores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, estabelecidos no tripé respeitar, preservar e reparar. Neste norte, cabe aos Estados, além de respeitar os Direitos Humanos, protegê-los, fazendo com que sejam observados pelas empresas, e devidamente reparados quando violados. Na espécie, no entanto, o Estado, via Poder Judiciário (Justiça do Trabalho), até o presente momento falhou com todos os princípios, negando o acesso à justiça (direito humano fundamental) e impedindo a reparação de direitos econômicos e sociais apontados como violados na relação de trabalho com a empresa acionada.

Destacam-se os dispositivos do Decreto 9571/18 aplicáveis ao caso:

“(…)

Art. 3º A responsabilidade do Estado com a proteção dos direitos humanos em atividades empresariais será pautada pelas seguintes diretrizes:

I – capacitação de servidores públicos sobre a temática de direitos humanos e empresas, com foco nas responsabilidades da administração pública e das empresas, de acordo com os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, principalmente ações de:

a) sensibilização e promoção da educação contínua dos recursos humanos da administração pública para o fortalecimento da cultura em direitos humanos; e

b)capacitação dos recursos humanos da administração pública para o tratamento das violações aos direitos humanos em contexto empresarial, de seus riscos e de seus impactos;

II- fortalecimento da consonância entre políticas públicas e proteção dos direitos humanos;

(…)

 VI – desenvolvimento de políticas públicas e realização de alterações no ordenamento jurídico, a fim de:

(…)

 b)estimular a criação de medidas adicionais de proteção e a elaboração de matriz de priorização de reparações e indenizações para grupos em situação de vulnerabilidade; (…)

IX – criação de plataformas e fortalecimento de mecanismos de diálogo entre a administração pública, as empresas e a sociedade civil;

(…).” (grifou-se).

Ademais, nos termos do Decreto n.º 9.571/2018, verifica-se responsabilidade social do Estado no que concerne à adoção de medidas de reparação à violação de direitos humanos. Neste sentido o disposto nos arts. 13, inciso VII, alínea “b”, e 15, inciso I, do Decreto em epígrafe:

Art. 13. O Estado manterá mecanismos de denúncia e reparação judiciais e não judiciais existentes e seus obstáculos e lacunas legais, práticos e outros que possam dificultar o acesso aos mecanismos de reparação, de modo a produzir levantamento técnico sobre mecanismos estatais de reparação das violações de direitos humanos relacionadas com empresas, como:

(…)

VII – incentivar a adoção por parte das empresas e a utilização por parte das vítimas, de medidas de reparação como:

(…)

b) desculpas públicas;

(…)

Art. 15. A reparação integral de que trata o inciso IV do caput do art. 14 poderá incluir as seguintes medidas, exemplificativas e passíveis de aplicação, que poderão ser cumulativas:

I – pedido público de desculpas;

Assim, ante as graves violações de Direitos Humanos constatadas neste processo, cumpre registrar pedido de desculpas públicas do Estado (Poder Judiciário – Justiça do Trabalho) à trabalhadora, pelo constrangimento derivado do impedimento do seu direito humano de acesso à justiça, como também do subsequente e indevido bloqueio de valores realizado por esta Justiça do Trabalho nos autos do processo 0020489-40.2019.5.04.0007, comprometedor, inclusive, de sua subsistência, dada sua  condição hipossuficiente.

Reconhecer as falhas do sistema judicial é necessário não só para atender à finalidade de reparação integral de Direitos Humanos que foram violados como também para que se possa extirpar adequadamente atos que não representam a excelência da prestação jurisdicional deste ramo do Judiciário, cuja criação e existência são diretamente vinculadas  à distribuição de justiça social. Afinal, os direitos laborais, além de constituírem uma dimensão dos Direitos Humanos, representam, ainda, direitos fundamentais que possibilitam a concretização de uma vida digna, reconhecidamente ligados à manutenção da paz e à própria existência do Estado Democrático de Direito, como se pode inferir da Constituição da OIT e da Declaração de Filadelfia, de 1944.

Registra-se, por fim, que o Direito do Trabalho deve ser aplicado como instrumento de garantia de promoção da dignidade humana e não ao revés, sendo que a ação que o acompanha deve estar acessível de forma gratuita a todas as pessoas, não podendo obstáculos opostos por lei manifestamente inconstitucional e inconvencional ser transformados em barreiras que, mais além de impedirem o acesso à justiça, o inibem, inviabilizando por completo a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais e a possibilidade de realização de uma vida digna por parte das pessoas que integram a classe despossuída, a classe trabalhadora.

Por todos os motivos expostos, decreta-se a nulidade na sentença que extinguiu o feito sem resolução do mérito, sendo imperioso o retorno dos autos à origem, para regular  prosseguimento, em observância aos princípios da celeridade processual (recomendando-se inclusão em pauta preferencial, ante o atraso na prestação jurisdicional devido aos percalços ora reconhecidos), e devido processo legal, inclusive sob o aspecto substancial com seus consectários, vetando-se a cobrança de qualquer tipo de custas ou despesas judiciais à demandante.

Nestes termos, dá-se provimento ao recurso da autora para declarar a nulidade do processo a partir da sentença que extinguiu o feito, sem resolução do mérito, proferindo-se novo julgamento em seu lugar, com registro de desculpas públicas à parte autora, Sra. .

 

II. PREQUESTIONAMENTO.

 Adotada tese explícita a respeito das matérias objeto de recurso, são desnecessários o enfrentamento específico de cada um dos argumentos expendidos pelas partes e referência expressa a dispositivo legal para que se tenha atendido o prequestionamento e a parte interessada possa ter acesso à instância recursal superior. Nesse sentido, o item I da Súmula 297 do TST e a Orientação Jurisprudencial 118 da SDI-1, ambas do TST.

Igualmente, é inexigível o prequestionamento de determinado dispositivo legal quando a parte entende que ele tenha sido violado pelo próprio Acórdão do qual pretende recorrer, conforme entendimento pacificado na Orientação Jurisprudencial 119 da SDI-1 do TST.

Isto considerado, tem-se por prequestionadas as questões e matérias objeto da devolutividade recursal, bem como os dispositivos legais e constitucionais invocados pelas partes.

DESEMBARGADOR LUIZ ALBERTO DE VARGAS:

 Acompanho integralmente o voto do eminente Relator.

 

DESEMBARGADORA BRÍGIDA JOAQUINA CHARÃO BARCELOS:

Acompanho o voto do Exmo.  Desembargador Marcelo José Ferlin D’Ambroso.

              _                _                _                

PARTICIPARAM DO JULGAMENTO:

DESEMBARGADOR MARCELO JOSÉ FERLIN D AMBROSO (RELATOR)

DESEMBARGADOR LUIZ ALBERTO DE VARGAS

DESEMBARGADORA BRÍGIDA JOAQUINA CHARÃO BARCELOS

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