Tragédias anunciadas

 Publicado na 44 edição do Jornal Estado de Direito.

* Marcos Rolim – Doutor e mestre em Sociologia, jornalista, professor de Direitos Humanos do Centro Universitário Metodista (IPA). Autor, entre outros, de “A Síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI” (Zahar, 2006).

Em 31 de maio de 2013, um grupo de pequenos agricultores realizou um protesto na região de Iguala, no México. Reivindicavam acesso a fertilizantes. Após confronto com a polícia, eles sumiram. Seus corpos foram localizados dias depois. Em protesto, várias manifestações passaram a ocorrer, a maior parte organizada por estudantes. Em 26 de setembro, estudantes da vizinha cidade de Ayotzinapa tomaram um ônibus em direção a Iguala. O prefeito mandou a polícia interceptar o veículo. Houve confronto e 43 estudantes foram dados como “desaparecidos”. Investigações da Procuradoria Geral da República mostraram que os estudantes foram entregues pela polícia ao “Guerreros Unidos”, o grupo que controla o tráfico na região. Os estudantes foram então executados e carbonizados.

Esta tragédia deveria ser vista no Brasil como um alerta. A par das diferenças entre os dois países, afinal, há algumas características políticas, sociais e econômicas similares que podem produzir resultados de mesma natureza. Entre elas, a crônica desigualdade social, a aposta no proibicionismo e na repressão como resposta às drogas, a corrupção das elites políticas e empresariais e o descontrole sobre a atividade policial. Na literatura contemporânea, a propósito, há obras muito interessantes com enredos que se entrelaçam com os impasses vividos pelo México como o excelente romance “Os Corruptores”, de Jorge Zepeda Patterson (editora Planeta, 342 pág.) no qual, em várias passagens, é possível “ver” também a realidade brasileira.

Em todo o mundo, são nítidos os efeitos destrutivos do tráfico de drogas, particularmente quanto à explosão das taxas de encarceramento e de homicídio e à corrupção policial. Grande parte da crise penitenciária está associada ao aumento vertiginoso das prisões por tráfico. No Brasil, em apenas dois anos, de 2010 a 2012, o número de presos por tráfico aumentou 30%, contra um crescimento da população carcerária da ordem de 10%.  Os presos por tráfico, como se sabe, são basicamente jovens pobres, que trabalham como “varejistas”. Suas prisões dão lugar à pronta substituição por outros jovens recrutados no imenso “exército de reserva” da exclusão, não produzindo qualquer efeito contra o negócio cujos verdadeiros donos, assinale-se, não são importunados pelas polícias. As prisões dos “varejistas”, entretanto, aumentam exponencialmente os efeitos da criminogênese, precipitando vínculos criminais, organizando os condenados em facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e inviabilizando a integração social dos egressos pelo estigma.

O grau de contaminação das polícias pelo tráfico não é conhecido, mas os indícios de degradação de estruturas do Estado, para além das próprias polícias, por conta dos interesses do negócio ilegal são amplos o suficiente para serem desconsiderados. Todos os estudos sobre o tráfico de drogas, aliás, mostram que o negócio só é possível em larga escala pelo envolvimento de “fatias” do Estado. As pretensões hegemônicas sobre o mercado e o domínio territorial em áreas determinadas, por outro lado, agenciam a violência letal entre grupos rivais no tráfico, o que tem produzido um genocídio entre os jovens pobres, em sua maioria negros, nas periferias. O que deveria ser tratado como um escândalo e prova da incompetência dos governos na área da segurança é, não obstante, obscurecido e naturalizado.

O cenário está a exigir dois movimentos básicos que sequer foram situados na agenda política conservadora que temos (cujos limites, não custa lembrar, são compartilhados, à esquerda e à direita, pelos partidos tradicionais no Brasil):  a reforma do modelo de polícia e  o abandono da atual política de “guerra contra as drogas”.  Ambas exigências devem ganhar força na sociedade civil nos próximos anos, o que, talvez, abra espaços para que adentrem o mundo da política com alguma chance.  Até lá, só o que é possível ter certeza é de que seguiremos ouvindo as mesmas platitudes de sempre e produzindo o cenário ideal para as tragédias.

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