Também morre quem atira

Eduardo Pazinato[1]

Muitos castelos já caíram e você tá na mira…

Também morre quem atira.

O Rappa

As violências praticadas no Brasil, sejam as interpessoais (entre particulares), sejam as institucionais (entre agentes de Estado e particulares), apresentam uma dinâmica criminal que as distingue de outros países do mundo, mesmo de parte substantiva dos latino-americanos: o alto grau de letalidade. Entender as especificidades do complexo processo social e político de produção e reprodução das violências, sobretudo as letais, constitui um dos maiores desafios da contemporaneidade.

Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2014, a cada 10 minutos 1 pessoa é assassinada no país. Considerando os dados oficiais, ocorreram, em 2013, 53.646 mortes violentas, incluindo nesse cômputo vítimas de homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte.

E a tragédia continua, acirra-se e amplia-se… Dados divulgados esta semana pela Secretaria Estadual da Segurança Pública de São Paulo, a título de ilustração, dão conta de que, apenas no 1º trimestre de 2015, 185 pessoas foram mortas em confrontos com policiais militares em serviço, uma média de 2,05 pessoas mortas por dia, o maior número de vidas ceifadas pela letalidade policial nesse Estado dos últimos 12 anos (sic!).

Inobstante, as estatísticas denotam que “também morre quem atira”. Tomando por base, uma vez mais, somente o ano de 2013, conforme o referido Anuário, 490 policiais foram vitimados fatalmente. Nos últimos 5 anos, essa soma atinge inaceitáveis 1.770 policiais vitimados! Dito de outro modo, no mesmo período, as polícias brasileiras mataram igual contingente de pessoas que as polícias dos EUA, em 30 (trinta) anos!

O último Informe da Anistia Internacional (2014/2015) corrobora esse flagelo: 10% dos assassinatos cometidos no mundo aconteceram em Terra Brasilis. De 2002 a 2012, a contrario sensu do que preceitua o senso comum teórico e quer crer o imaginário social das ruas, a população carcerária brasileira cresceu 120%, em face de pouco mais de 10% de aumento demográfico, totalizando 574.207 pessoas encarceradas. Desse universo cerca de 40%, ou seja, 215.639 pessoas, ainda aguardam julgamento, sem falar nos presos sob custódia pelas polícias e em prisão domiciliar, nos mandados de prisão expedidos e nos 20.532 jovens cumprindo medidas socioeducativas.

Paradoxalmente, a criminalização desmesurada e o encarceramento em massa, em vez de conter os homicídios, respondem por parte do problema: mais de 300 mil jovens de 15 a 29 assassinados em 10 anos (de 2002 a 2012)!

Como já se afirmou, “o Brasil prende muito, mal e de forma seletiva” (vide: http://estadodedireito.com.br/prenda-me-que-te-devoro). Muito e mal, porque, a despeito do vultoso montante de crimes violentos contra a vida com resultado morte (homicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte), o perfil dos encarcerados demonstra uma flagrante inversão de prioridade da política criminal e carcerária, já que 49% dos apenados o são em virtude de crimes patrimoniais, 26% por tráfico de drogas e 12% por homicídios. Ao mesmo tempo, apenas 11,1% dos jovens em conflito com a lei são submetidos àquelas medidas em virtude de crimes violentos contra a vida, como homicídios e latrocínios. Seletivamente, na medida em que as desigualdades estruturais de classe social e as assimetrias etárias e étnico-raciais reverberam e asseveram critérios nada democráticos, e constitucionais, do funcionamento do sistema penal no âmbito nacional.

Algo está errado! E os equívocos se acumulam… Ações estritamente policiais e de justiça afiguram-se certamente necessárias para garantir o controle e a redução da criminalidade. No entanto, não bastam! Fazem-se igualmente imprescindíveis intervenções preventivas, direcionadas em prol da gestão integrada (e participativa), para que se possa promover a diminuição e, no limite, o cessamento dos mecanismos que ativam o cometimento dessas violências, propiciando uma convivência pacífica e democrática dos(as) cidadãos(ãs) nas cidades, a exemplo do aprofundamento das políticas públicas de desarmamento, de garantia e promoção dos direitos humanos, notadamente das juventudes, e da revisão da política de drogas.

Pesquisas capitaneadas pelo IPEA, sob a liderança do competente pesquisador Daniel Cerqueira, estimam que o Brasil, além dos imensuráveis prejuízos sociais, perdeu R$ 88 bilhões (ou 1,6% do PIB), em 2014, por conta desse verdadeiro genocídio juvenil. Esses recursos representariam, por certo, fonte orçamentária e financeira para reverter o atual quadro de violência letal endêmica.

Integrar a segurança com a justiça, compreender as interfaces entre as representações sociais de insegurança e os riscos reais de vitimização, fortalecer a segurança dos direitos como estratégia para efetivar o direito à segurança significa reconhecer as diversas dimensões de abordagens necessárias, e inovadoras, para mudar essa cruenta e vexatória realidade.

Há vidas atrás de números… Por isso, digo não à revogação do estatuto do desarmamento e à redução da maioridade penal, evidentes retrocessos a evidenciar o quão longe ainda se está na e para a superação dessas mazelas.

Também morre quem atira… O resto é cenário!

 

 

 

 

 

[1] Doutorando em Políticas Públicas (UFRGS), Diretor de Inovação do Instituto Fidedigna e Coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da FADISMA.

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