Swissleaks, repatriação de ativos e anistia penal

1. Manutenção de depósitos no exterior

Ante o escândalo Swissleaks, os meios de comunicação noticiaram que o Sr. Ministro da Justiça determinou que a Polícia Federal investigue eventuais operações financeiras feitas por brasileiros que mantinham contas secretas no banco HSBC, na Suíça. Não se tem certeza se os dados publicados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) são fidedignos. Ao que se sabe, milhares de brasileiros teriam movimentado ilegalmente aproximadamente R$ 20 bilhões.

São absolutamente comuns na prática judicial os casos de pessoas físicas e jurídicas que mantêm ativos depositados em contas bancárias no exterior sem a declaração destes no Brasil. Os recursos – de origem ilícita ou não, mantidos em nome próprio ou de terceiros -, muitas vezes acabam internados no país. O exame da jurisprudência revela que em diversas hipóteses os valores mantidos no exterior têm, de fato, origem lícita, eis que recebidos por herança ou por prestação de serviços profissionais, por exemplo. Claro que, em outros casos, também é comum a manutenção dos recursos derivados de práticas irregulares na condução paralela de negócios, valores à margem da contabilidade oficial são ocultados em offshores e/ou empresas de fachada.

A figura da manutenção de recursos no exterior é tratada na Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional – Lei n. 7.492/86, fundamentalmente no tipo legal de crime previsto no art. 22[1], parágrafo único, segunda parte. A hipótese é de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, sem a exigência de condição especial. O autor é o titular dos recursos financeiros depositados e o responsável pela declaração. O art. 22, parágrafo único, segunda parte, da Lei n. 7.492/86, é norma penal em branco, cujo preceito é previamente fixado pelo Poder Legislativo, devendo ser completado por orientações flutuantes, no caso, a partir de determinações do BACEN.

A conduta típica é conhecida como evasão imprópria, pois o valor não é necessariamente fruto de remessa ao exterior, podendo ser originário do próprio exterior, mas sem a devida declaração no Brasil. O valor mantido no país estrangeiro, em síntese, deve ser relevante ao ponto de colocar em risco ou atingir o bem jurídico tutelado – Sistema Financeiro Nacional –, sendo que o patamar fixado pelo BACEN vem sendo utilizado pela jurisprudência como critério de tipicidade formal e material, uma espécie de avaliação objetiva do grau de lesividade ao bem jurídico. O crime é formal e de caráter permanente.[2] O momento consumativo ocorre quando for esgotado o prazo no qual o titular deveria declarar os recursos mantidos no exterior à autoridade competente.[3]

 

2. Aumento dos controles estatais

Agora, diante do avassalador incremento da tecnologia e do crescimento do número de tratados de cooperação jurídica internacional e, sobretudo, a partir do escândalo Swissleaks, há uma natural tendência pela regularização das situações ilegais junto aos órgãos e às agências de controle do Estado. Afinal, é cada vez maior a intromissão estatal na esfera privada do cidadão-contribuinte, não havendo mais espaços livres de vigilância do Estado ante à sofisticação da fiscalização dos fluxos transnacionais do capital.

O assunto passa a ter maior relevo a partir da assinatura pelo Brasil e Estados Unidos da América do protocolo IGA (Intergovernamental Agreement), que autoriza o processo de intercâmbio direto de informações tributárias, buscando implementar a política do FATCA (Foreign Account Tax Compliance Act). Uma vez regulamentado, o IGA redefinirá as regras de sigilo impostas pela Lei Complementar n. 105/2001. Em curto espaço de tempo os dados pessoais dos contribuintes norte-americanos no Brasil serão informados pelas entidades bancárias à Receita Federal e ao IRS (Internal Revenue Service) nos Estados Unidos da América, seguindo a linha do TIEA (Tax Information Exchange Agreement).

Ocorre que, a declaração posterior dos recursos mantidos ilegalmente pode não obstar a responsabilização penal. É certo que é indevido o recurso ao direito penal enquanto instrumento de controle social, quando o Estado poderia ocupar-se do direito administrativo sancionador, do direito de intervenção ou do direito de mera ordenação social, seja como for[4]. Todavia, no Brasil, o tipo penal criado em 1986 (art. 22, parágrafo único) mantém-se hígido e prevê penas entre 2 e 6 anos e multa, o que impede a incidência de institutos, como a transação penal e a suspensão condicional do processo – ambos trazidos pela Lei n. 9.099/95. Infelizmente, no particular, o direito penal de ultima ratio não vem sendo aplicado no país.

 

3. Materialidade indispensável

 

A mera informação sobre o processo Swissleaks, evidentemente, não é suficiente. E, também, a simples manutenção de depósitos financeiros no exterior é conduta atípica, uma vez que o tipo legal de crime exige mais que o mero depósito, impõe que seja mantido sem a devida declaração à repartição federal competente. No ponto, cumpre reafirmar o que a doutrina vem sustentando: para a existência de legítima persecução penal é indispensável a prova material do delito, fundamentalmente o extrato bancário da conta corrente estrangeira na posição do dia 31 de dezembro de cada ano.  O certo é que a adequação típica pressupõe que este crime de manutenção de valores no exterior só pode ser concretizado a partir da prova material produzida pelo extrato bancário e, mais, quando o agente não tenha feito a declaração ao BACEN quando devida. Em síntese, para a configuração da figura penal é necessário que se verifique, o saldo exato na data-base de 31 de dezembro de cada ano, a fim de apurar a manutenção do depósito em valor superior aos limites tolerados pelo Banco Central[5].

Aliás, para além do tipo legal de mantença de depósitos no exterior, também na hipótese do crime de evasão de divisas, como regra, deve-se exigir o extrato bancário. Não são suficientes os chamados sistemas de controle ilegais, os documentos informais que invariavelmente são obtidos em mídias e software apreendidos ou obtidos por meio de colaborações voluntárias de gestores de instituições financeiras paralelas. De um modo geral, os dados e referências encontrados na contabilidade informal de “doleiros”, as anotações em planilhas, as notas e as memórias financeiras sem a correspondente informação bancária oficial não podem ser consideradas suficientes para firmar um juízo sério sobre a materialidade do tipo penal.

É evidente que não é possível exigir dos sistemas clandestinos criados para fluxos de capitais (trânsito de recursos por operação dólar-cabo, por exemplo) a transparência imposta às entidades bancárias oficiais. Entretanto, é prudente que a prova da operação interbancária seja confirmada em grau de certeza, pois não é lícito admitir-se como prova material do tipo penal a mera memória contábil de entidades clandestinas, marcadas pela precariedade que lhes é peculiar, fruto justamente da sua informalidade. Em realidade, acredito que, assim como no crime de manutenção de depósitos no exterior, deve-se exigir no tipo de evasão de divisas o extrato bancário como prova de materialidade, fonte concreta dos dados do banco, da agência, do número da conta e do saldo, também. A complexidade desta espécie de criminalidade impõe que a prova documental seja clara e suficiente a demonstrar a promoção da saída de moeda ou divisa, retratando a transação internacional.

 

 

4. Internação de depósitos mantidos no exterior

Vê-se, pois, que é preocupante a situação de pessoas que detêm ativos no estrangeiro. É imperativa a regularização dos depósitos, sobretudo pela iminência da ampliação dos acordos de mútua cooperação financeira entre países. A manutenção dos depósitos não declarados no exterior significa operar em crime permanente, enquanto a internação destes recursos, ainda que informal, é conduta atípica que faz cessar o ilícito anterior, evidentemente, quando do encerramento da conta no banco estrangeiro.

Em outro trabalho que desenvolvi com Antonio TOVO LOUREIRO[6], com o intuito de visualizar a dimensão do problema da incriminação do ingresso de capital estrangeiro no país, constatei que os tribunais brasileiros chegaram a tratar a questão em três perspectivas diferentes: (a) julgados pela atipicidade da conduta; (b) julgados pelo enquadramento como crime contra o sistema financeiro; e (c) julgados pelo enquadramento de tipos penais diversos, como o estelionato.

Hoje, praticamente superadas as divergências jurisprudenciais, penso que está consagrado que a legislação penal não estabeleceu expressamente a ilegalidade da conduta de internação informal de divisas. E, diante desta flagrante omissão, os órgãos de persecução buscaram encaixar a prática de internação no art. 21, parágrafo único, da Lei n. 7.492/86.[7]

Ao longo do tempo, tal postura acusatória vem sendo veementemente rechaçada, e com razão, pela doutrina e pela jurisprudência[8]. O que o tipo legal incrimina não é o envio informal de recursos do estrangeiro para o país (transferência de fora para dentro), mas a adulteração e ou inserção de dados falsos em operação regular de câmbio, enquanto o caput trata especificamente da adulteração de identidade junto à autoridade.

 

 

5. Anistia penal como solução

 

Sobre o tema, comungo do pensar de René Ariel DOTTI quando escreveu sobre crimes contra o Sistema Financeiros Nacional. Reconhecendo a existência de inflação legislativa, o Professor recomenda a adoção do “princípio da intervenção mínima como um necessário e firme roteiro que se dirige não apenas ao legislador mas também ao intérprete e ao aplicador da lei”, não sendo demasiado afirmar que “a garantia de melhor qualidade de vida, da maior participação das pessoas no mercado de trabalho e da integração em múltiplas atividades sociais, exige a redução, ao máximo, das hipóteses de intervenção do Estado”.[9]

Não vejo como o direito penal possa resolver o problema das condutas tratadas neste pequeno artigo, como de fato nada vem sendo resolvido ao longo dos anos. Demandas penais tolas vêm engordando as prateleiras dos tribunais do país. E, diante das rupturas sociais e dos processos de aceleração da vida contemporânea, da pressa dos acontecimentos e alto do fluxo de informações nas novas dimensões de superfície-limite e espaço-tempo tecnológico[10], a criminalização de outrora não mais se justifica, pois está fora do atual contexto.

Em tempos de globalização da economia, urge uma lei de repatriação. É mais produtivo investir nas formas de repatriação dos capitais, com a facilitação dos processos de regularização administrativa dos dinheiros mantidos no exterior, mormente aqueles que comprovadamente têm origem lícita – dinheiro limpo. Na atual conjuntura econômica brasileira, uma opção legislativa[11] que ocorreu em outros países é a autorização do reingresso dos capitais depositados no exterior e não declarados às autoridades competentes, tributando com razoabilidade o processo de retorno do capital (cidadania fiscal), concedendo vantagens tributárias e oportunizando benefícios como a anistia penal.

            Alexandre Wunderlich, Professor Coordenador do Departamento de Direito Penal e Direito Processual Penal na PUCRS, Advogado.

[1] Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

[2]BITENCOURT, Cezar R.; BREDA, Juliano, Crimes contra o sistema financeiro nacional e contra o mercado de capitais, 3 ed, São Paulo: Saraiva, 2014, p. 331; SCHMIDT, Andrei; FELDENS, Luciano, O crime de evasão de divisas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 179 e, ainda, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, “Manutenção da conta bancária do exterior”, In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel, Direito Penal Econômico – doutrinas essenciais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1035.

[3]O BACEN tem publicado anualmente o prazo e os limites da declaração, sendo o destinatário das declarações de ativos no exterior (no âmbito financeiro-cambial; enquanto à Receita Federal deve ser destinada a declaração de renda, no âmbito fiscal-tributário). Em linhas gerais, restam resguardadas as reservas internacionais e o equilíbrio do Sistema Financeiro Nacional.

[4]Em defesa da descriminalização, indicando caminhos para “desbastar a área penal da imensa legislação extravagante que inundou nosso parque legislativo”, ver: REALE JR, Miguel, “Ilícito administrativo e jus puniendi geral”, In: PRADO, Luiz Regis, Direito Penal Contemporâneo – estudos em homenagem ao Professor José Cerezo Mir, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 93 et seq.

[5] Precedentes: TRF4, 7ª Turma, Apelação Criminal n. 2006.71.00.050282-6/RS, Rel. Juíza convocada Salise Monteiro Sanchotene, j. em 12/08/2013; TRF4, 8ª Turma, Habeas Corpus n. 2006.04.00.013111-0/PR, Rel. Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, j. 23/08/2006; TRF4, 4ª Seção, ENUL n. 2004.70.00.002027-4, Rel. Des. Paulo Afonso Brum Vaz, j. 01/09/2009 e TRF4, 4ª Seção, ENUL n. 2001.70.00.032168-6, Rel. Des. Paulo Afonso Brum Vaz, j. 17/12/2007.

[6]“Considerações sobre a repercussão jurídico-penal da internação de divisas no país”. In: VILARDI, PEREIRA, DIAS NETO, Crimes financeiros e correlatos, SP: FGV/Saraiva, 2011, p. 117 et seq.

[7]Atribuir-se, ou atribuir a terceiro, falsa identidade, para a realização de operação de câmbio: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, para o mesmo fim, sonega informação que devia prestar ou presta informação falsa.

[8] No ponto, a jurisprudência do é uníssona: (…)9. Da sonegação de informação à autoridade competente, para o fim de realização de operação de câmbio (art. 21, parágrafo único, Lei 7.492/86). Da tipicidade, em tese, dos fatos descritos. Insurge-se o Ministério Público Federal com a absolvição dos réus no que tange à prática do crime insculpido no art. 21, parágrafo único, da Lei 7.492/86. Dispõe a norma em comento(…) No que tange ao delito em análise, tenho que a sentença absolutória de primeiro grau deve ser prestigiada in totum, pois bem analisou a questão. O caso concreto não oferece quaisquer elementos indicativos de que o réu se atribuiu, ou atribuiu a terceiro, falsa identidade para fins de realização de operação de câmbio. Tratava-se de instituição financeira clandestina que empreendia operações marginais de troca de moedas, as quais, logicamente não eram informadas ao Banco Central do Brasil. Como se vê, a própria operação era empreendida de forma espúria, razão pela qual não há como configurar a prática de uma falsidade ideológica pretérita com o fito de realizar operação legítima de compra e venda de moeda. A clandestinidade da operação já está sendo punida mediante incidência do art. 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86, razão pela qual entendo que eventual imposição de sanção lastreada no art. 21, parágrafo único, da mesma norma implicaria verdadeiro bis in idem. (…) (TRF4, 8ª Turma, Apelação Criminal n. 5057916-12.2011.404.7100/RS, Rel. Des. Leandro Paulsen, j. 02/10/2014)

[9]“Crime contra o Sistema Financeiro Nacional: consórcio – empresa administradora, empréstimo em dinheiro para empresas do mesmo grupo – caraterização”, In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel, Direito Penal Econômico – doutrinas essenciais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1022.

[10] Sobre o que quero dizer, ver: BAUDRILLARD, Jean, A sociedade de consumo, Lisboa: Edições 70, 1995, p. 15; BAUMAN, Zygmund, Globalização: as conseqüências humanas, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, 87-88.

[11]Neste sentido, dois Projetos de Lei tramitaram no Senado Federal e restaram arquivados ao final da legislatura: PLS n. 424/2003 de autoria do senador Marcelo Crivella e PLS n. 354/2009 do senador Delcídio Amaral.

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