Reflexões críticas sobre a alienação dos imóveis da União a partir da Lei nº 13.465/2017.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Flávia Pedrosa Pereira. Além da venda: reflexões críticas sobre a alienação dos imóveis da União a partir da Lei nº 13.465/2017. Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília para a obtenção do título de Doutora. Brasília, 2021, 345 p. 

             Com muito gosto participei como membro da Banca Examinadora da Defesa da Tese de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UnB, juntamente com o Orientador Prof. Dr. Benny Schvarsberg, da FAU/UnB, Prof. Edesio Fernandes, DPU Associates e Prof. Alex Ferreira Magalhães, Dr. UFRJ/IPPUR. 

             Digo com muito gosto porque deparei-me com muitas razões de regozijo. Primeiro, encontrar-me na banca com professores de minha estima e admiração, com os quais tenho mantido aproximações afetivas no coleguismo acadêmico e no trabalho associado no tema de interesse comum relativo ao direito à cidade e ao direito urbanístico. Também em bancas realizadas em nossas respectivas instituições e na reflexão compartilhada por estímulo desses temas.  

             Com os professores Benny Alex compus o sumário de algumas publicações no campo, e mais decisivamente na edição do 9º volume da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico (http://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17), do qual sou autor e co-organizador, na companhia autoral dos dois colegas; aliás, nessa edição, na Parte I da Obra, O Direito Achado na Rua e uma Perspectiva Crítica para o Direito Urbanístico, a doutoranda Flávia Pedrosa Pereira, assina com o seu orientador e Camila Maia Dias Silva, o artigo O Direito Urbanístico achado nas ruas brasileiras (p. 89-96), exercitando a aplicação de conceitos e de categorias trazidos à Tese, para servirem de fundamentos teórico. 

             É grande a satisfação de encontrar na banca o professor Edesio Fernandes, cujo percurso na constituição do campo teórico do direito à cidade e do direito urbanístico – por isso mesmo referência fundante para arrimar a leitura e a narrativa da Autora, eu também já tomara como orientação segura para situar minhas aproximações bissextas ao tema, e assim mesmo, mais em sentido político do que epistemológico, considerando a minha ação junto com os movimentos sociais, entre eles o movimento pela reforma urbana. 

             Lembrei isso ao professor Edesio, há poucos dias (5 de maio), quando dividimos mesa no Seminário 20 Anos do Estatuto da Cidade. Legado, desafios e novos horizontes. O Seminário, em desenvolvimento até o dia 02 de junho, foi promovido pela Faculdade de Arquitetura e pela PósARQ da Universidade Federal de Santa Catarina, e participamos, nas condições de distanciamento em razão da pandemia, ele de Londres e eu de Brasília, na mesa Direito Urbanístico: Objetivos, Desafios e Relação com a Arquitetura e Urbanismo, moldura que serve para enquadrar também o arranjo dos temas desenvolvidos na Tese. 

             Naquele encontro, no qual o professor pontificava, ressalvei a qualidade menos abalizada das minhas incursões no tema, assinalando que a minha proximidade a ele, é externa, porque o meu percurso mais tangencia, se põe em paralelo, às vezes intersecciona, até chega a com ele se confrontar ocasionalmente. 

             Desde 1985, nas lutas por redemocratização e constitucionalização do país, passei pelos debates da Constituinte, acompanhando diferentes movimentos, entre eles os que levaram à Assembleia a proposta do artigo 182 da Constituição de 1988 e de inclusão da política urbana como tema da própria Constituição. 

             Assim que, em perspectiva que a Autora traz para a Tese, e junto com movimentos em processos de reivindicação de políticas urbanas, de direito à moradia e de direito à cidade, cidade justa conforme a Autora categoriza, oferecer um modo teórico e político de pensar e de realizar o Direito, sob o arranque da crítica jurídica, para designar outras possibilidades de compreendê-lo e de realizá-lo, o que me levou a estabelecer em coletivos de pesquisa e afirmações teóricas o que temos denominado O Direito Achado na Rua, na forma de uma vasto programa que já chegou ao Direito Urbanístico, afinal trazido pela Autora da Tese para fundamentar alguns de seus importantes achados. 

             Relativamente a esse modo de articular as intersecções entre direito e urbanismo é, pois, sempre com redobrado cuidado que ensaio essas intersecções, considerando a exterioridade discursiva a que aludi. Assim é que, quando fui convidado para fazer o prefácio do Curso de Direito à Cidade. Teoria e Prática, de Enzo Bello e Rene José Keller (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen (acaba de sair uma segunda edição da obra, ampliada, com a inclusão de novos textos, entre eles, em co-autoria com Alexandre Bernardino Costa, o nosso Brasília, Capital da Cidadania: Moradia e Dignidade Humana, uma versão do qual foi utilizada pela Autora da Tese, ao situar a realidade do Distrito Federal), tomei como ponto de partida de meu texto, a referência mais próxima e instigante acerca do tema, que encontrei na tese de Adriana Nogueira Vieira Lima, de cuja defesa participei, em Salvador, na UFBA, Faculdade de Arquitetura. Adriana a banca de qualificação da Tese ora examinada. 

             Essa foi outra novidade que me permitiu descobrir em áreas  cuja designação não revela de imediato a complexidade de seus conteúdos, e poder encontrar, na área de Arquitetura, já precedida de premiação originária, a tese de Adriana Nogueira Vieira Lima, “Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade: porosidades, conflitos e insurgências em Saramandaia”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016, sob a orientação da Professora Ana Fernandes, depois submetida ao Prêmio Capes de Teses e galardoada com o prêmio de melhor tese na área de Arquitetura, em 2017. 

             Membro do Comitê, mas impedido de deliberar, por ter participado como examinador tanto da banca de qualificação quanto da defesa da tese, neste último estágio compartilhando argumentos com uma banca multidisciplinar, na qual esteve presente Raquel Rolnik, Paola Jacques Berenstein e Urpi Montoya pude aquilatar no debate no seio da Comissão de escolha do Grande Prêmio, o reconhecimento à qualidade da autoria e à atualidade do tema, que associa de modo muito qualificado, o diálogo entre o urbanismo e luta social por direitos, tal como revela o bem elaborado resumo. 

             A tese, depois publicada – Do Direito Autoconstruído ao Direito à CidadePorosidades, conflitos e insurgência em Saramandaia (Salvador: EDUFBA, Coleção PPG-AU,ISBN 978-85-232-1845-4, 2019, 302 p.) – foi tema de uma de minhas colunas Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/24566-2/) . Em resumo, ela buscou “analisar a produção de direitos urbanos pelos sujeitos coletivos de direito em um contexto assimétrico de acesso à cidade. Para isso, adota a teoria da pluralidade jurídica como instrumental analítico. Parte-se do pressuposto de que o processo instituinte de direitos urbanos é interescalar e envolve complexas fontes de legitimação que têm na sua base relações de conflito, reciprocidade e autonomia. A pesquisa, que adota uma perspectiva interdisciplinar, foi desenvolvida com base no trabalho de campo realizado no Bairro de Saramandaia, localizado em Salvador, Bahia, Brasil. A etnografia foi eleita como método privilegiado de apreensão da realidade. Essa opção refletiu-se nas relações travadas em campo construídas através de interações e diálogos. Os pressupostos da pesquisa foram analisados através de três eixos que se interconectam: os direitos autoconstruídos pelos moradores face à ausência do Estado na prestação de serviços urbanos; constituição de direitos urbanos através de relações ambíguas com o Estado; e a (des)construção de direitos urbanos: insurgências, conflitos e disputas pelo espaço urbano. A pesquisa revelou que os direitos urbanos autoconstruídos encontram na necessidade de morar o seu principal parâmetro de legitimação social, emergindo daí as características do que denominamos Direito Autoconstruído: flexibilidade, reciprocidade e atrelamento entre forma e substância. Ficou evidenciado ainda que o Direito Autoconstruído ganha força nos processos de interação social, levando os sujeitos coletivos de direito a participarem da construção de um projeto político de transformação social que repercute no modo como ocorre a interação entre as escalas de juridicidades. Os resultados apontam também que as relações de porosidade entre as escalas de juridicidade são marcadas por conflitos, transgressões e permeabilidades e se nutrem das táticas potencialmente insurgentes praticadas pelos moradores. A partir dessa constatação, verificou-se que essas características se comportam de forma diferenciada em Saramandaia a depender do momento e do espaço do Bairro em que ocorrem, predominando relações de conflitos nas fronteiras e limites entre o Bairro e a Cidade. As análises evidenciaram a necessidade do fortalecimento de uma visão plural e democrática do Direito que contribua para o fortalecimento dos sujeitos coletivos e sua capacidade infindável de inventar novos direitos e caminhar em direção ao Direito à Cidade”. 

             Os anos seguintes à promulgação da Constituição de 1988 foram pródigos na construção de um campo demarcado pela construção do chamado direito à cidade, num percurso de formulação de muitos instrumentos técnicos, jurídicos, políticos, institucionais demarcado pela organização do Instituto Pólis em São Paulo e sua importante revista de estudos em que cuja organização muitas referências contribuíram para o adensamento desse campo – Ana Amélia Silva, Raquel Rolnik, Nelson Saule Jr, Ermínia Maricato – servindo à metodologias de pesquisa, de formulação de políticas públicas e de modos de governar, de organizar assessorias jurídicas populares (lembrando  aqui o exercício genético e político dos Alfonsins – Jacques e Betânia -, culminando com o desenho que a Constituição de 1988 recepcionou, acolhendo as formulações dos movimentos sociais difundidos pelo país, e depois pela institucionalização do IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico,  em parceria com o qual editamos o vol. 9, da Série O Direito Achado na Rua. 

             Encontro aí  bases, seja enquanto processo para impulsionar a exigência de função social que a propriedade deve realizar, seja para ressignificar a semântica das lutas sociais por acesso à própria propriedade, descriminalizando o esbulho por meio da recusa a se deixar tipificar invasor e politizando o acesso com a retórica da ocupação, desde que atendendo à promessa constitucional de realizar reforma agrária e reforma urbana, tal como referiu Ana Amélia Silva, aludindo  à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades”(Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, São Paulo, 1996), consoante ao que indicou, nesse passo,  Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a desenvolver (Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995). 

             Todos esses fundamentos estão presentes no trabalho de Flávia Pedrosa Pereira, ordenados para oferecer uma narrativa com muita originalidade, seja quanto ao modo de articular esses fundamentos, seja sobre trazer um circunstanciado estudo de caso (O Contexto Específico da Venda de Imóveis da União no Distrito Federal e os Impactos com a Nova Legislação). Com efeito, tal como ela apresenta o seu trabalho, ela parte dos “normativos e iniciativas da Administração Pública Federal que estimulam a alienação de bens imóveis da União estão na pauta do dia desde dezembro de 2016, quando foi editada a Medida Provisória nº 759, que viria a ser convertida na Lei nº 13.465/2017”.  Ainda que ela considere não se tratar de tema recente, “pois desde que foi criado um órgão governamental para gerir esse patrimônio, há mais de 160 anos, esses bens têm sido enxergados sobretudo como forma de auferir receitas em tempos de crise”, essa disposição “tem historicamente se acentuado no contexto de governos de tendência neoliberal, o que resulta em maior destaque na venda dos ativos”.  

             Assim que a Tese propõe como “objetivo geral descrever o histórico dos bens imóveis da União, sua trajetória legislativa e analisar as alterações promovidas pela Lei nº 13.465/2017, Decretos e normativos subsequentes, no que se refere à alienação e a regularização fundiária de imóveis da União, problematizando teórica e empiricamente suas possíveis consequências”. Apoiada em referenciais teórico-analíticos, a Tese assenta o “entendimento do universo que integra os bens imóveis da União, pelas modificações nos marcos legais a partir de 2016, até chegar na abordagem empírica com foco no Distrito Federal”.  

             O seu núcleo analítico pretende ressaltar “a importância dos imóveis da União na constituição do Fundo Público, e alguns avanços que aconteceram entre 2003 e 2015 na gestão desses bens”. Constatando, contudo, que possíveis avanços, “não foram suficientes para resultar em uma significativa inflexão na lógica que permeia a gestão dos imóveis da União”. E, com a “nova guinada neoliberal a partir de 2016, tem-se que a venda dos referidos bens tem caminhado lado a lado com a questão da desestatização e da privatização, no que parece ser a mais agressiva tentativa de desfazimento do patrimônio público”.  

             Em síntese, a Tese afirma constatar “que programas de regularização fundiária com foco quase exclusivo na distribuição de títulos individuais de propriedade plena, que desconsideram a complexidade do fenômeno da informalidade, ganharam fôlego e têm se materializado numa velocidade sem precedentes, sem que ainda seja possível avaliar as consequências do fenômeno. No que se refere à alienação dos imóveis da União, ainda se percebe uma grande distância entre o que foi divulgado enquanto meta pelo Governo Federal, e o que foi efetivamente vendido até o início de 2021. Entretanto, o governo segue editando normativos e criando mecanismos tecnológicos com vistas a acelerar as vendas, mesmo com a persistência de problemas estruturais na SPU”. Para concluir “que a liquidação em massa do Patrimônio da União parece não encontrar condições objetivas para se concretizar, ao menos em curto e médio prazos. Tal fato traz esperança, pois os imóveis de União representam uma miríade de oportunidades para se desenvolver políticas públicas de qualidade e de acordo com a normativa coletivamente construída, que tem como expoentes a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade. Representam um potencial para toda a população e não apenas para aqueles já historicamente beneficiados. Se trata de um patrimônio que se constitui em bem comum, e não pode (nem deve) ser tratado como ativo exclusivamente econômico”. 

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             A organização da exposição, a partir do Sumário, e seguindo as indicações da própria Autora, compreende uma primeira parte da Tese, composta pelos dois primeiros capítulos, com o objetivo de apresentar um panorama amplo sobre temas relacionados à problemática teórica da questão fundiária, à trajetória de constituição e gestão dos imóveis públicos da União, ao conhecimento do universo desses imóveis e como, no transcorrer da história, a lógica do viés privatista vem se acentuando, sobretudo nos últimos anos. Destaca-se o interregno dos governos Lula e Dilma, entre os anos de 2003 e 2015, quando houve iniciativas de imprimir uma outra lógica, de viés progressista, pautada no princípio da função social da propriedade e da cidade, fundante do novo marco jurídico urbanístico. É realizada uma discussão sobre os marcos mais teóricos e conceituais da tese, incluindo conteúdos relacionados ao Direito Urbanístico, ao Direito à Cidade e ao Direito Achado na Rua. 

             A segunda parte abriga os capítulos III e IV. O Capítulo III dedica-se à compreensão das reorientações políticas e conceituais dos normativos recentes, desde a motivação para sua edição até as possíveis consequências da sua implementação, já em curso, mas ainda de maneira incipiente. E o Capítulo IV, debruça-se empiricamente sobre o território, tomando o Distrito Federal como protagonista. 

             Para iniciar a elaboração desse panorama mais geral, o primeiro capítulo define a pesquisa como inserida no tema das políticas públicas espaciais, e explica o porquê. Enfatiza-se a importância do espaço enquanto lócus das ações das políticas públicas, e da essência destas enquanto embate em torno de ideias e interesses, pois, com múltiplos atores há variadas expectativas em relação ao uso do território. Na sequência, tomando como ponto de partida as representações do espaço propostas por Lefebvre, propõe-se uma reflexão sobre a aproximação entre o Direito à Cidade, o Direito Achado na Rua e o Direito Urbanístico Brasileiro. O que seria garantir o direito à cidade pelo viés do Direito Achado na Rua, e como o marco jurídico e urbanístico brasileiro tem sido construído e desconstruído nesse sentido? As bases da política urbana no Brasil, com seu histórico de avanços e retrocessos, é revisitada, pois se entende que esse resgate é fundamental para que se possa situar as alterações normativas recentes, e analisar seus impactos, com foco empírico no Distrito Federal (DF). 

             O mesmo acontece em relação ao panorama sobre a política habitacional no país, pois a destinação de imóveis da União para as políticas habitacionais e de regularização fundiária se inseriu durante um período nesse contexto. O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), por exemplo, já foi declarado como prioritário para recepção de imóveis doados pela União, conforme constava em uma das iniciativas relacionadas ao Programa Moradia Digna, no PPA 2016-201930, iniciativa que apresentou poucos resultados desde a sua concepção. Ainda neste capítulo dedica-se um trecho à investigação sobre como os programas voltados à moradia e ao planejamento urbano se encontram inseridos no Plano Plurianual (PPA), e que resultados tem apresentado, sobretudo no que se refere aos imóveis da União. 

             Para finalizar o primeiro capítulo, revisa-se criticamente o entendimento de Hernando de Soto sobre o tema da regularização fundiária. Para ele, o grande desafio dos países em desenvolvimento é garantir acesso ao crédito, o que pode acontecer através de programas de titulação nos assentamentos informais, na forma de propriedade privada individual. Isso faria com que os ocupantes, seguros de sua posse, tivessem acesso ao crédito formal e investissem em melhorias nas suas propriedades. A referida entrada das propriedades no mercado formal também contribuiria para uma dinamização econômica. Apesar de algumas experiências que aplicaram seus preceitos (Peru, Ilhas Maldivas e Ruanda, por exemplo) não terem logrado os resultados esperados, percebe-se que, a partir de 2016 no Brasil, tem ocorrido um ressurgimento e proeminência das ideias defendidas por De Soto.  

             O segundo capítulo aborda o processo de constituição da propriedade pública e privada no Brasil. A origem das terras públicas da União é resultante do processo de uma reformulação produtiva e da inserção do país na lógica capitalista internacional, a partir de meados do séc. XIX. Esse capítulo também trata das definições sobre quais são as terras e imóveis da União, suas características e particularidades. São considerados os aspectos legais e territoriais que tornam complexa a gestão desse patrimônio, que em parte é até desconhecido. 

             Na parte 2, Capítulo III, debate-se os novos normativos que incidem sobre os procedimentos para regularização fundiária e alienação dos imóveis da União. Tenta-se compreender como, apesar do conteúdo inclusivo incidente sobre a propriedade pública e das prerrogativas estabelecidas a partir de 1988 na Constituição Federal, tem-se observado uma forte resistência por parte do Estado, a partir do ano de 2016, o que coincide com o impeachment da Presidenta Dilma e a tomada de poder por forças ditas liberais, no sentido de fazer valer a função social das terras públicas federais, mesmo diante de um quadro urbano marcado pelo agravamento do processo de exclusão de um contingente cada vez maior de pessoas, após a intensificação da urbanização das cidades brasileiras. 

             O capítulo inicia com uma breve abordagem sobre o processo legislativo que converte medidas provisórias em leis, tendo em vista que a maioria das modificações recentes na legislação urbanística brasileira, a partir de 2016, tem acontecido por esse viés. Na sequência analisa-se o contexto de surgimento, inclusive as prováveis motivações, da MP 759/2016, que mais tarde viria a ser convertida na Lei nº 13.465/2017, modificando as leis anteriores que disciplinavam a regularização fundiária e os procedimentos para alienação de imóveis da União. 

             No Capítulo IV, o enfoque da abordagem volta-se mais empiricamente para o território e as disputas em torno do acesso às terras públicas federais. O Distrito Federal (DF) é tomado como protagonista. A escolha do DF como estudo de caso acontece por dois fatores principais: o acesso a informações de processos administrativos e ao banco de dados georreferenciados dos imóveis da União nessa unidade da federação (período em que a Autora  trabalhou no órgão); e à influência explícita que a busca por resolver “problemas” relativos às ocupações informais/irregulares em condomínios de média e alta renda no DF, bem como nos imóveis rurais altamente valorizados, teve na edição dos normativos recentes, a partir de 2016. 

             No capítulo retoma-se a história, o que faz perceber as peculiaridades referentes ao uso e ocupação do solo no DF. Dispersão urbana, baixas densidades, valorização imobiliária e informalidade independentemente do padrão de renda são fatores que remetem a reflexões acerca das semelhanças e diferenças entre os padrões de ocupações que predominam no Distrito Federal quando os comparamos a outras unidades da Federação. Por essas razões é um campo fértil para estudarmos os bens públicos da União que estão presentes nesta unidade da federação, e como têm sido tratados pelos novos normativos. 

             Para finalizar o capítulo, o primeiro caso de regularização fundiária de condomínio informal de média/alta renda em terras da União no DF baseado na Lei nº 13.465/2017 é investigado em seus pormenores. A análise deste caso muito simbólico busca esclarecer como funcionam as engrenagens por dentro do Estado, em especial do sistema de gestão de terras da União, visando o acesso à terra pública federal para uso privativo. 

             Pretende-se que a pesquisa, ao identificar as coerências, lógicas e contradições dos mecanismos de gestão das terras públicas federais e as implicações dos novos normativos, produza conhecimento teórico e empírico sobre a questão fundiária, os bens da União e o direito urbanístico. Enfim, busca-se retomar o caminho da função social da propriedade pública da União, estabelecidos na Constituição Federal de 1988 e na legislação infraconstitucional derivada da CF, e do reconhecimento da posse e de direitos a sujeitos historicamente invisibilizados cultural, política e socialmente. 

             Conforme salientei antes, interlocutor acidental desse criativo e construtivo espaço de ressignificação de subjetividades emancipadas, a minha primeira intervenção na arguição, procurou ficar restrita ao ponto de conexão que a Autora estabeleceu ao convocar as concepções inscritas no campo de O Direito Achado na Rua, para calçar suas escolhas interpretativas da realidade que escolheu analisar. Assim, a mim me coube, esclarecer, sob essa escolha, se ela se fez corresponder ao sentido e ao alcance, no mínimo da expressão O Direito Achado na Rua. Com efeito, em sua apropriação desse sentido e alcance, ela se vale das condições políticas e teóricas que abrem o tema do direito às teorias críticas que o articulam ao social e não apenas às normas. O professor Edesio vai lembrar, voltando ao Seminário no qual junto participamos, que ali ferimos o tema do Estatuto da Cidade, para inferir, até com instigação do depoimento anterior de Ermínia Maricato, que o aprendizado das lutas pela cidade e pela cidadania, reduzia bem a ilusão legislativa diante da exigência de lutar antes pelos direitos que não se confundem com as leis. De minha parte, sustentei com ênfase, à luz dos pressupostos de O Direito Achado na Rua que os direitos são relações, não são quantidades. São as dimensões do humano que se realiza na história, no movimento das subjetividades que se emancipam. E não artefatos que se depositam em prateleiras legislativas e que se empoeiram e se fadigam em face das transformações que operam na sociedade. São, as enunciações instituintes no espaço público, lugar das sociabilidades inventadas. Ou, como o professor Edesio designou naquela ocasião, de arenas sociopolíticas para esse agir instituinte. 

             Por isso a metáfora da rua, para designar o espaço público, o lugar popular do poder como declama Castro Alves (O Povo ao Poder: “pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu…”); ou Cassiano Ricardo (Sala de Espera: “Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de “lá fora”./ Em seu oceano que é ter bocas e pés/ para exigir e para caminhar./A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser:/ transeunte, republicano, universal./ Onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da procissão, do comício,/ do desastre, do enterro./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento…”); ou em Marshal Berman (Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: aludindo à rua como o espaço no qual, em seus encontros e desencontros, ao reivindicar liberdade, justiça, cidadania e direitos, a multidão se transforma em povo. 

             Ali onde é mais direito a marreta do padre Julio Lancellotti do que qualquer estatuto jurídico facilmente reduzido a mera folha de papel (Ferdinand  Lassalle),  no duro experimento desconstituinte dos dias correntes. Do que se cuida é designar as disputas interpretativas e de apropriação da cidade, enquanto não formos capazes de vivenciar e compartilhar a cidade de modo solidário, educador, território de esperanças. 

             Penso que a Tese faz boa aplicação desses fundamentos.  E o faz, exatamente, aludindo (p. 70), à designação de David Harvey espaços de esperança, para concordar comigo sobre a importância de se lutar pela Constituição, tendo em vista o atual e forte movimento de desconstitucionalização, astuciosa e artificiosa, sem se instalar uma Assembleia Constituinte. Ainda comigo ela alude à “necessidade de reconhecer que, mesmo nesse momento, a Constituição ainda é um projeto em construção, que não se realizou plenamente, portanto, devemos focar no que ainda há a construir, nos comprometer com a defesa de um projeto de sociedade que não se completou, na construção de uma sociedade de direitos, e não de uma sociedade de privilégios pautada no positivismo de uma velha ordem, que remete ao século XIX”. 

             Para a Autora, nesse sentido, há – diz ela – a “necessidade de partir novamente das bases, dos movimentos sociais, da articulação. São formas de pressão social por reformas que diminuam a desigualdade e não alimentem regimes autoritários. Percebe-se a emergência desses movimentos, ganhando novo fôlego, justamente nesses tempos recentes. Iniciativas que se identificam com as lutas pelo direito à cidade e com a continuidade da construção do marco jurídico urbanístico, no sentido do Direito Achado na Rua, para a elaboração coletiva de cidades mais justas. 

             A defesa de territórios de solidariedade encontra pautas em comum como, por exemplo: a defesa da participação popular direta na produção dos espaços da cidade promovendo a redistribuição dos recursos, a coexistência das diversidades e a garantia dos direitos sociais; a regulação do mercado de terras, para que atue na efetivação da justiça social, combatendo a concentração de capital no território e promovendo o acesso à terra barata. 

             São pautas que nos possibilitam retornar à pergunta feita no início desta abordagem: o que seria garantir o direito à cidade pelo viés do Direito Achado na Rua, e como o marco jurídico e urbanístico brasileiro tem sido construído e desconstruído nesse sentido? 

             Garantir o direito à cidade pelo viés do Direito Achado na Rua é sair do reducionismo do marco jurídico e urbanístico às leis, ou seja, do Direito à legislação. É entender que o poder para a consolidação desses direitos é social, e que o Estado é apenas uma das formas de sua organização. Já a construção e desconstrução do marco jurídico e urbanístico brasileiro nesse sentido ainda será pauta de muitos anos de estudo, trabalho e militância, tendo em vista os embates para o entendimento de que a cidade, antes de atender aos interesses econômicos e estar submetida à lógica do mercado e do lucro, é um direito coletivo, um Direito Urbanístico achado nas ruas”. 

             Assim citando a Autora, considero que ela faz uma boa aplicação dos fundamentos teóricos e políticos que embasam a concepção de O Direito Achado na Rua. Talvez porque divise uma certa força utópica que as experiências de regresso, como as da conjuntura, tentam conter. 

             De fato, em conjunturas de redução do espaço político democrático e de retração de investimentos sociais, a partir de opções excludentes de acumulação rentista, a luta por morar dignamente e pela cidade humanizada e educadora, se converte em direito fundamental. É o que as redes, os movimentos, parlamentares de diferentes frentes de engajamento popular, intelectuais, enfatizaram, logo após tragédia na ocupação de 1o. de maio em São Paulo, no Largo Paissandu, na nota quando morar é um privilégio, ocupar é um direito. Para os signatários da nota, é necessário reiterar a unidade na resistência em cada ocupação e exigir a reponsabilização do Estado em cada recusa à regularização de energia elétrica, de saneamento e prevenção de riscos em ocupações; são necessários investimentos públicos na viabilização de moradias dignas; o enfrentamento à especulação imobiliária; políticas de mediação de conflitos fundiários com participação popular; a conversão dos edifícios ociosos em moradia popular; a regularização fundiária das ocupações. 

             Em contribuição que ofereci à obra coletiva Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do BrasilGabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020, coube-me, exatamente, abordar o artigo 6º da Constituição. Nesse sentido, e na perspectiva aqui trabalhada, cuidei de considerar – http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/ – os direitos inscritos no art. 6º da Constituição de 1988, enquanto resumem e traduzem o grande programa social formulado pelos movimentos sociais (populares e sindicais). Agora, sob ataque direto (justificando.cartacapital.com.br/2016/09/12/direitos-sociais-garantidos-pela-constituicao-estao-sob-ataque-de-um-governo-ilegitimo-2/),  tal como conferido pelo professor Pedro Pulzatto Peruzzo, abre-se a perspectiva de que o próprio Judiciário, que sobre esse dispositivo pouco tivesse diretamente constrangido as promessas nele contidas, ao contrário, como mostra o professor Peruzzo,  houvesse inclusive iniciado uma hermenêutica de proibição de retrocesso social, sustentando haver obstáculo constitucional à frustração e ao seu inadimplemento pelo poder público, ou em perspectiva de controle constitucional de políticas públicas, tenha afastado a dirimente da reserva do possível que  não se constitui justificativa para que o Poder Público possa se eximir das obrigações impostas pela Constituição, renda-se ao movimento neo-liberal de desconstituição desses direitos e do programa social nele investido. 

             Nesse ponto, em relação a esse artigo, mais que nunca descortina-se a preocupação já anunciada por Gomes Canotilho, acerca da multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo  e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real.  Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13) tal como se deu, por exemplo, no STF na decisão unânime em reconhecimento à constitucionalidade das cotas raciais para acesso à universidade (ADPF 186). 

             No arsenal dessa luta, o social (direitos) se posiciona contra a mercadorização intensificada pelo mercado (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados) e se busca o acesso público contra a onda de privatização que quer avançar sobre os bens da vida. Por isso a luta é, inclusive, semântica, quando se disputa até no plano judicial, a politização da reivindicação social (ocupação da moradia, terra e território), em face da tentação criminalizadora (invasão e esbulho possessório), o que levou o STJ a decidir não poder ser considerado esbulhador aquele que ocupa terra para fazer cumprir a promessa constitucional da reforma agrária. 

             Finalizei o texto com Canotilho, na Entrevista citada, para pôr em relevo a necessidade de recuperar no Direito Constitucional, sobretudo no campo dos direitos sociais, o impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críticas da sociedade, que o fazem definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político. É preciso incluir, pois, no Direito Constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas, orientadas pelas indicações de O Direito Achado na Rua, enquanto perspectiva de direitos verdadeiramente emancipatórios. (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2015). 

             Será essa disposição extravagantemente otimista? Há, na Tese, um posicionamento irrealista nesse sentido? Lembro que no debate da UFSC, o professor Edesio apontou algum exagero nesse posicionamento. Apesar de reconhecer as arenas sociopolíticas para a reinvenção imaginária da sociedade, percebi um certo pessimismo em sua avaliação sobre o legado das lutas pelo direito à cidade, se se pensa nesse legado apenas no simbólico da lei (Estatuto da Cidade). 

             Digo isso porque no prefácio que fiz ao livro Curso de Direito à Cidade. Teoria e Prática, já referido (Enzo Bello e Rene José Keller (organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018), afirmei que a obra abria perspectivas valiosas para assumir as tarefas de resistência e de proposição em face de todos esses desafios e atesta a disposição de seus organizadores, autores e autoras, de persistir trabalhando sobre os temas candentes do direito à cidade sob a ótica simbólica de instituição de espaços de esperança nas cidades de exceção.  Para obter referência sobre a obra ver a minha Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/curso-de-direito-cidade-teoria-e-pratica/) .  Por isso, a minha questão para a Autora. Ela tem um pouco da disposição inarredável do Quixote, ainda que à custa de enfrentar moinhos, bruxas e maus capitães. Para ele, dirigindo-se a Sancho, assim registrou Cervantes, “todas essas tempestades que acontecem conosco são sinais de que em breve o tempo se acalmará e que coisas boas têm de acontecer; porque não é possível que o bem e o mal durem para sempre, e segue-se que, havendo o mal durado muito tempo, o bem deve estar por perto.” 

             É possível ainda afirmar-se, mesmo à luz de sua Tese, ser possível salvaguardar as políticas de inclusão e de participação, com a aplicação social do patrimônio público, para que a cidade de fato se converta em direito à cidade? Enfim, da Tese pode-se inferir a possibilidade de institucionalização de espaços de esperança? 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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