Promessa de compra e venda não registrada e sua eficácia perante terceiros

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Foto: Pixabay

Questão intrigante

Uma questão bastante intrigante e antiga consiste na (des)necessidade do registro de compra e venda na matrícula imobiliária para fins de eficácia perante terceiros. Hoje, tal polêmica assenta-se na (in)compatibilidade entre o art. 1.417 do Código Civil[1] e dos verbetes 84 e 239 da Súmula de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Afinal, subsistiriam as súmulas 84 e 239 do STJ na medida em que o dispositivo legal menciona a necessidade de registro da a (des)necessidade do registro de compra e venda na matrícula imobiliária para fins de eficácia perante terceirospromessa de compra e venda junto ao Registro de Imóveis, ao passo que os enunciados pretorianos o dispensam?

Para melhor compreensão da celeuma, veja-se os textos aqui comparados, a começar pelo excerto do Código Civil que aqui interessa:

Art. 1.417) Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.

Agora, veja-se o teor das súmulas 84 e 239 do Superior Tribunal de Justiça:

84. É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro.

239. O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

Em um primeiro momento, é possível vislumbrar alguma incompatibilidade, avultando, assim, uma antinomia entre o comando legal e a orientação jurisprudencial. Note-se, por outro lado, não terem sido os enunciados sumulares cancelados até hoje, mesmo depois de mais de 14 anos de vigência do Código Civil.

Foto: EBC

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Entretanto, uma distinção aclara a questão e revela o caráter apenas parcial da contradição, superável por meio de uma distinção entre um direito pessoal e um direito real.

Existe a relação de caráter contratual entre alienante e adquirente e há outra espécie de ligação jurídica entre os envolvidos, a res e os demais membros da sociedade, vínculo este de caráter real, diferentemente daquele primeiro, de caráter pessoal[2]. Enquanto o registro na matrícula do imóvel estampa publicamente a existência de um direito oponível erga omnes, a relação inter partes não demanda necessariamente tal providência.

Portanto, apenas para surgir a eficácia perante terceiros é que se faz necessária a providência registral, bastando para a exigência da transmissão da propriedade pelo promitente-vendedor o pagamento do preço. Nesse sentido, aliás, era o entendimento pacífico do STF estampado na súmula 621:

Não enseja embargos de terceiro à penhora a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis.

Note-se, entretanto, que o STJ logo após sua criação rejeitou tal posicionamento, acabando por assentar entendimento contrário, consolidado na súmula 84. Entretanto, o próprio Superior Tribunal de Justiça em alguns arestos acabou recusando a eficácia erga omnes na ausência de registro, veja-se o Recurso Especial 55.941 (precedente paradigma citado em outros julgados) e o Recurso Especial 235.288 de onde extrai-se:

“A promessa de compra e venda, se não averbada no registro imobiliário, não possibilita ao comprador anular posterior transferência de domínio a terceiros.”

Julgados locais também contrariam o quanto sumulado, veja-se:

Dos exercícios de 2011 a 2015 – Ilegitimidade passiva – Inocorrência – Imóvel tributado objeto de compromisso de venda e compra – Ausência de transferência da propriedade no Cartório de Registro de Imóveis – Ausência de eficácia erga omnes – Inoponibilidade contra a administração tributária – Nos termos do artigo 34 do Código Tributário Nacional tem legitimidade para figurar no polo passivo da demanda tanto o promitente vendedor como o promitente comprador – Agravo não provido. (TJSP, 2020915-46.2017.8.26.0000, julgado em 23.03.2017).

Foto: Aaron Burden/Unplash

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IPTU

O IPTU constitui obrigação propter rem, possuindo como fato gerador “a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física”, na forma do artigo 32 do CTN. O contribuinte é aquele que o detém sob tais condições, a teor do artigo 34 daquele diploma. Apenas o registro no ofício imobiliário, requisito de publicidade, é capaz de alterar a titularidade da propriedade de imóvel com eficácia erga omnes. Pactos particulares firmados com terceiros somente irradiam efeitos entre as partes envolvidas. Contrato de promessa de compra e venda não é suficiente para afastar a legitimidade passiva na execução, sobretudo considerando-se que o art. 123 do CTN estabelece que as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, são inoponíveis à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes. É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que respondem pelas dívidas tributárias geradas pelo imóvel tanto os promitentes compradores como os promitentes vendedores (proprietários). Recurso Especial nº 1.110.551/SP, submetido à sistemática do artigo 543-C do CPC de 1973.  Para a validade do processo, é indispensável a realização de citação, na forma dos arts. 8º da LEF e 239 do CPC. Não tendo ocorrido citação da empresa executada, é nula a penhora de valor em sua conta corrente. Precedentes desta Corte. (Agravo de Instrumento Nº 70070097043, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Almir Porto da Rocha Filho, Julgado em 14/09/2016).

A promessa de compra e venda, como direito real à aquisição, surge quando o instrumento público ou particular da promessa é objeto de registro no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.417 do Código Civil). Ausente o registro, não há eficácia erga omnes. No caso concreto, como a autora (promitente-compradora) não registrou a promessa de compra e venda junto ao álbum imobiliário, e também não pagou os respectivos impostos por mais de uma década, diante do débito (inclusive cobrado em execução fiscal), o imóvel acabou sendo novamente negociado pelo promitente-vendedor. II. Em face da evicção, restou à autora direito a perdas e danos em face do réu. Nos termos do art. 450 do Código Civil, a autora, evicta, teria direito à restituição integral do preço, que se considera como o valor da coisa, na época em que se evenceu. Todavia, do encontro do valor de avaliação e da dívida que a autora deixou a título de IPTU (pois tal encargo era de sua responsabilidade e ela nunca pagou), tem-se que, apesar do direito à restituição do preço, não há o que devolver. Manutenção do julgamento de improcedência. (Apelação Cível Nº 70060989191, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 28/05/2015).

Defesa dos interesses

E outra questão emerge, por fim, acerca da defesa dos interesses do promitente-comprador que descuidou da necessidade de registro.

A derradeira questão costura a interpretação aqui advogada e revela como a nossa visão não se equipara a uma prescrição draconiana. Apesar de ser necessário o registro para que se produza a eficácia contra terceiros, é plenamente aceitável o manejo de ação de usucapião declaração de domínio, de modo que, comprovando-se os requisitos para a forma excepcional de aquisição mediante o prestígio da posse, então declara-se a propriedade, reconhecendo-se que o promitente-comprador tornou-se senhor da coisa, de modo que ao adquirir a propriedade resta imediatamente afastada a pretensão de outrem sobre a mesma. Portanto, quem fez a promessa de compra e venda e há muito tempo está na posse do imóvel, ainda que não tenha um direito real de adjudicação, pode tranquilamente obter a pronúncia da condição de proprietário mediante usucapião – o que em muitos casos exige, sem prejuízo de outros requisitos, o prazo exíguo de 5 anos (vide art. 183, caput, da CF/88, e art. 191, caput, da CF/88).

Referências

[1] O dispositivo legal vai na mesma linha de outros que o antecederam, não tendo o Código Civil sido inédito no ponto. Parece, entretanto, que somente com a codificação a questão fica mais clara, distinguindo-se bem as eficácias pessoal e real do direito do promitente-comprador.
[2] Em igual sentido: DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 4: direito das coisas. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 636 e 637. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 4: Direito das coisas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2016, p. 482-487.

 

Tiago Bitencourt de David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL.

 

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