A prisão domiciliar para as mães de crianças

Coluna Processo Penal em Foco

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Foto: Pixabay

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Alteração da lei

Como foi amplamente noticiado pela imprensa, Adriana Ancelmo, mulher do ex-Governador Sérgio Cabral, recebeu benefício da prisão domiciliar. Ela foi beneficiada pela Lei nº. 13.257/16 (o chamado Marco Legal da Primeira Infância), publicada no dia 09 de março do ano passado, que alterou o art. 318 do Código de Processo Penal, para acrescentar mais duas hipóteses em que será possível a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, além de deixar de exigir que este direito somente possa ser usufruído pela mulher gestante em risco ou acima do sétimo mês de gravidez.

Assim, com a alteração, deverá o Juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante; mulher com filho de até doze anos de idade incompletos ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até doze anos de idade incompletos.

A modificação foi extremamente salutar e põe em relevo a importância do princípio da dignidade da pessoa humana (especialmente das mulheres e das crianças).

Nada obstante, passado um ano desde a sua promulgação, a lei é mais uma “letra morta” no ordenamento jurídico brasileiro, pois o encarceramento nestes casos, desgraçadamente, continua sendo uma regra, ignorando nossos Juízes, Ministério Público e Tribunais a alteração legislativa.

Assim, “ao contrário do que aconteceu com a ex-primeira-dama do Rio Adriana Ancelmo, que na sexta-feira foi autorizada a cumprir prisão em casa para poder cuidar dos filhos de 11 e 14 anos, muitas mulheres em condições semelhantes continuam na cadeia.” Segundo matéria publicada no jornal O Globo, “cerca de 42% das 37 mil presas no Brasil são provisórias, ou seja, ainda aguardam julgamento, situação em que se enquadra a mulher do ex-governador do Rio Sérgio Cabral, investigado por corrupção. Não existem, porém, estatísticas que mostrem quantas delas estão grávidas e têm filhos pequenos, o que lhes daria o direito de serem beneficiadas com a prisão domiciliar, como prevê a lei. A Defensoria Pública estadual tem sido o principal órgão a atuar para tentar garantir o cumprimento da nova legislação, mas a resistência de juízes ainda é grande, principalmente na primeira instância.”

“Resultado de negativas nas instâncias inferiores desde março, recursos de mulheres requerendo prisão domiciliar têm chegado às cortes superiores da Justiça em Brasília. Uma das primeiras decisões ocorreu no Superior Tribunal de Justiça dias após a aprovação da lei. O ministro Rogerio Schietti Cruz concedeu a uma jovem de 19 anos grávida e com um filho de 2 anos o direito de responder ao processo em prisão domiciliar. Ela estava presa acusada de tráfico de drogas ao tentar entrar com uma porção de cocaína e duas de maconha no presídio onde seu marido cumpre pena. O ministro considerou que a jovem, além de mãe e gestante, era primária, com residência fixa e não demonstrava periculosidade que justificasse a prisão preventiva como hipótese de proteção à ordem pública.”

Importante ressaltar que “o tráfico de drogas é a principal acusação que leva ao encarceramento feminino (68%), seguido de furto (9%) e roubo (8%). Mais da metade das presas é condenada a penas de dois a oito anos.” (fonte).

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Aplicação da nova lei

Feita a alteração legislativa, impõe-se agora a seguinte indagação: esta nova lei deve ser aplicada retroativamente, ou seja, em relação aos réus ou investigados que supostamente cometeram infrações penais anteriormente à sua vigência? Ou, ao contrário, tão somente em relação aos fatos vindouros, tendo em vista tratar-se de uma lei processual penal?

Sabemos que há dois princípios que regem o direito intertemporal em matéria criminal: a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o acusado (art. 2°, parágrafo único do Código Penal e art. 5°, XL da Constituição da República) e a lei processual penal aplica-se imediatamente (art. 2°. do Código de Processo Penal: tempus regit actum).
O princípio da irretroatividade da lei penal, salvo quando benéfica, insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição, tendo força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[1], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada de caráter jurídico-positivo”[2].

Logo, à vista desses dois princípios, haveremos de analisar o disposto no novo art. 318, IV, V e VI do Código de Processo Penal.

Desde logo, é preciso definir a natureza da norma contida neste dispositivo legal: seria ela de conteúdo processual ou penal?

É certo que ela trata de uma medida cautelar, impondo a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar em determinados casos. Neste aspecto, ela tem uma conotação claramente processual. Se admitirmos tratar-se de norma processual não há que se falar, obviamente, em retroatividade, fenômeno jurídico típico do direito intertemporal relativo às normas penais.

Porém, é preciso atentar que esta medida cautelar diz respeito ao direito de liberdade (provisória) do investigado/acusado matéria, obviamente, de direito material, prevista no art. 5º., LXVI da Constituição Federal. Trata-se, portanto, de uma norma processual material, ainda que tal diferença, em alguns casos, não seja tão perceptível. Klaus Tiedemann, por exemplo, “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais.”[3]

No Brasil, comentando a respeito de tais normas, Tucci entende que elas “deverão ser aplicadas, em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[4]

No mesmo sentido é a opinião de Grandinetti Castanho de Carvalho: “Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.”[5] Atente-se “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio.”[6]

Assim, sendo uma norma processual penal material, é possível a sua aplicação a partir de uma visão mais benéfica para o suposto autor do fato, seja para fazer incidir a regra (do jogo) anterior (em uma espécie de “ultratividade”), seja proibindo a “retroatividade” da nova regra (do jogo) para casos passados.

Saliente-se que por lei mais benéfica não se deve entender apenas aquela que comine pena menor, pois “en principio, la retroactividad es de la ley penal e debe extenderse a toda disposición penal que desincrimine, que convierta un delito en contravención, que introduzca una nueva causa de justificación, una nueva causa de inculpabilidad o una causa que impida la operatividad de la punibilidad, es dicer, al todo el contenido que hace recaer sobre la conduta, sendo necessário que se tenha em conta uma série de outras circunstâncias, o que implica em admitir que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Zaffaroni.[7].

Conclusão

A partir de agora, é preciso que os Juízes e Tribunais revejam todos os casos em que réus (ou indiciados) estão presos provisoriamente e estejam em uma das situações indicadas nos três últimos incisos do art. 318, ora modificados. Neste sentido, devem fazê-lo de ofício, independentemente, portanto, de requerimento. Se não o fizerem ou negarem o direito (subjetivo público do preso), cabível será a impetração de Habeas Corpus, tendo em vista a patente ilegalidade perpetrada.

Notas e Referências

[1] Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editora Tecnos, 1993, p. 67.
[2] Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2001, p. 62.
[3] Apud Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Editora, pág. 220.
[4] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975, p. 124.
[5] O Processo Penal em Face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.
[6] Eduardo J. Couture, Interpretação das Leis Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 4ª, ed., 2001, p. 36.
[7] Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, Buenos Aires: Editora Ediar, 1987, págs. 463 e 464.

 

Rômulo de Andrade MoreiraRômulo de Andrade Moreira é Articulista do Estado de Direito – Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

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