Por um mundo mais tolerante

Coluna Democracia e Política

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Foto: pixabay

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A intolerância está por todo o lugar. No nível federal, quando um Presidente não aceita críticas a seu projeto de reforma das relações de trabalho e faz de tudo para desmontar a organização sindical. No nível estadual, quando um governador sequer acha “significativo” a greve do magistério contra o parcelamento. No nível municipal, quando um Prefeito afirma que, o servidor que estiver descontente com sua política pode “pedir para sair”. O mais recente caso da exposição Queermuseu colocou mais lenha na fogueira: as manifestações contrárias a exposição colocaram em discussão o par intolerância x liberdade de expressão e a agressão a  jornalistas durante protesto só reforçou que o Estado é intolerante também. Vivemos a era da intolerância, da incapacidade de trocar ideias, do uso da argumentação:  cada vez mais os políticos são incapazes de respeitar a opinião dos outros, os partidos e agremiações assumem a radicalidade dos discursos na internet onde revelam cada vez mais o preconceito e a intolerância contra negros, mulheres, homossexuais, imigrantes, idosos, e contra aqueles que tem convicções políticas diferentes nos mais diversos ramos, inclusive da arte. Precisamos, urgentemente, de um mundo mais tolerante.

A frase título deste texto é retirada da introdução do historiador Jaime Pinsky  a obra de Roger-Pol Droit, Tolerância.  A obra é uma didática introdução ao tema, sobre a forma de diálogo que enumera as características da tolerância e Droit é filosofo, escritor e jornalista. Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris IV – Sorbonne, foi professor e pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, Conselheiro da Unesco, onde foi responsável pelo programa Filosofia e Democracia no Mundo.

Em Tolerância, Droit mostra o quando  temos vantagens em defender um mundo mais tolerante: a principal delas, é que será um mundo melhor para se viver. Vivemos um mundo onde já não se pode respirar, expor ideias e debate-las, um mundo que está ficando cada vez pior para se viver. Esse é o mundo irrespirável das redes sociais, onde a intolerância se manifesta na forma superficial de nossos comentários e na grosseria com aqueles que tem opinião diferente da nossa. Como aponta Buyng Chul-Han isso ocorre devido ao fato de que as distâncias que fundamentavam o respeito diminuíram: mas, como salienta Droit, não são os recursos tecnológicos que nos tornam intolerantes, somos nós mesmos que estamos nos tornando mais intolerantes.

Porquê? Uma das causas é que, nos termos do sociólogo Michel Mafessoli, vivemos uma geração narcisista. Queremos sempre ser o melhor, o mais forte. Essa lógica do mercado aprofundada pelo simbólico é reforçada pela industria cultural por todo o lado: já reparou que todos os programas da televisão tem como motor a ideia de competição, de que alguém vence e que muitos perdem? Do BBB ao The Voice, não se respira na cultura se não a ideia de que é preciso ser o mais forte: a faculdade da tolerância é sentida como fraqueza, quando não é. Diz Droit que o intolerante é um fanático que acredita que o outro é inferior, que é um perdedor, o que significa, que assumir-se como intolerante agrada o ego porque é sempre uma afirmação de superioridade. A violência é subproduto da intolerância ”a intolerância não é, portanto, apenas mais uma forma de enxergar o mundo: ela é uma praga social”(Tolerância, p.10).

As cenas recentes de intolerância colocam as seguintes questões: o que se pode ou não de pode tolerar, o que vale apena discutir para chegar a um consenso e o que não podemos realmente tolerar.  Diz Droit que a tolerância é exatamente o que temos para evitar guerras “sem ela, as pessoas são capazes de matar”, afirma. Droit fala inicialmente dos grandes conflitos entre estados, mas subentende também que pode ser também a guerra que pode existir entre todo e qualquer individuo. A tolerância é uma exigência da convivência: ela não desaparece, continuamos tendo ideias diversas, não obriga a todos a pensar do mesmo jeito “o primeiro passo é aceitar que as crenças e os comportamentos dos outros sejam diferentes”, diz Droit, ser condescendente com as crenças e modo de viver dos outros, o que significa tambem dizer que é preciso escapar a lógica bipolar que diz que os outros são seres inferiores e desprezíveis. Não é assim quando o governo estadual, sem considerar o clamor de servidores públicos, parcela ad infinitum os salários, ele também não está afirmando que seus trabalhadores são seres inferiores e desprezíveis? E não é o mesmo com o governo municipal, quando o Prefeito chega a decretar que servidores não tem direito algum a contestar sua atuação em praça pública?

Droit reconhece, todavia, que há níveis diferentes de tolerância e seu emprego na sociedade. Na medicina, se é tolerante ou intolerante a certa substância, no sentido de suportar. É sua origem etimológica: em latim, tolerar vem de tolere, que significa carregar, suportar, resistir. Nesse sentido, tolerar o pensamento de uma corrente opositora significa não se sentir perturbado com o que ela diz. Mas até no que se refere as coisas físicas, há o que se chama de “limite de tolerância”, limite do que se possa suportar. Tolerar no campo individual é diferente do campo social: num não há decisão, noutro há. O chamado limite de tolerância, entretanto, faz-se sentir mais no campo social do que no individual: ele tem repercussões para a ação.

A tolerância em sociedade é a mais difícil de ser construída. É preciso ser capaz de lidar com divergências e diferenças que  se expressam no modo como se fala, no modo como se olha, se julga e se decide algo em relação ao outro. Uma das notáveis conclusões de Droit é que precisamos aprender a não ficar doente com os outros. É que suportar as crenças alheias, seus comportamentos em relação a todos é capaz de adoecer. Na divisão entre governantes e governados, a nível estadual e municipal, esse adoecimento já é visível: quantos servidores estão doentes porque seu espírito, sua subjetividade, está doente com as medidas adotadas, com a desvalorização do servidor promovida, com a total retirada do direito a subsistência que parcelamentos salariais efetuam? Na divisão entre partidos de esquerda e de direita, da extrema direita à extrema esquerda, como não observar  a crescente incapacidade de diálogo e o efeito do adoecimento politico mútuo que não é reconhecido: a esquerda não está também adoecendo, isto é, perdendo sua incapacidade de propor diálogo frente a posição intolerante da direita?

 

Foto: pixabay

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Para Droit, existe duas formas de tolerância, a fraca e a forte. A forma fraca da tolerância assume a forma da indulgência, é uma certa condescendência: num debate, você tolera que o outro fale, permite sua presença. “Na verdade, é uma autorização provisória, temporária, que depende unicamente de nossa boa vontade. Poderíamos decidir suspende-la”(p.23). Essa tolerância é fraca porque nos reservamos no fundo, o direito de proibir o outro de falar em nosso ambiente. Não toleramos realmente, apenas aparentamos tolerar. Outra forma de tolerância fraca é aquela que, não prevista no direito, no interior do universo do que é /não é permitido, estacionamos na calçada, diz Drot, o que pode ser proibido, mas na maioria das vezes não o é.

Não reconhecemos a forma forte da tolerância: ela é o reconhecimento de um direito respeitado por todos. Só sé é realmente tolerante quanto reconhecemos no outro o direito de se expressar, o que significa, que o outro não precisa de sua permissão, de que ambos, simultaneamente, são tolerantes porque reconhecem o direito que o outro tem – direito a opinião, direito a manifestação, direito a apreciação de arte, etc “Eis o que é a tolerância forte: reconhecer aos outros o direito de pensar o que pensam, ser o que são, fazer o que fazem”(Tolerância, p.27). É uma atitude de respeito, que permite ao outro levar a vida conforme suas convicções. Mas ele implica necessariamente noutro debate, o da “tolerância x liberdade”. Este problema foi posto pela Revolução Francesa, a do direito à liberdade de expressão, você pode se expressar como quiser, mas “essas liberdades não devem destruir umas as outras. A  regra fundamental das liberdades individuais é que não devem prejudicar umas as outras”(idem, p.31), o que eliminaria de vez a necessidade de tolerância, o que não ocorre. Porquê? Porque para Droit, é um principio, não uma realidade. Na prática, a realidade é diferente. As liberdades de uns ou de outros sempre sofrem entraves, daí o espaço da ideia de tolerância, porque, ao contrário dos princípios que supõem que os indivíduos se entendem,  sempre ocorrem casos em que os indivíduos se desentendem.

A tolerância se constrói no sentido contrário ao ódio. Ela contém a agressividade, o desprezo, apaga o negativo. Por isso sua definição de “suportar” importa. Ela se situa entre as pessoas e daí ser algo tão difícil de realizar. Mas ela é indispensável porque há tolerâncias fáceis e outras difíceis. É fácil tolerar os gostos e preferências dos outros em termos de roupas e alimentação, por exemplo. Mas quando se trata da verdade, a tolerância fica muito mais difícil principalmente quando crenças determinam sua conduta, sua vida, ou transforma sua existência cotidiana. É o caso do confronto de religiões, quando elas dizem coisas diferentes e as vezes inconciliáveis. É por isso que precisam aprender a conviver, e cada um deverá admitir que existem mundos diferentes que não se podem anular ou dominar. Daí que a solução é aceitar a divergência e praticar a tolerância para permitir a coexistência.”Ela é indispensável e bem mais interessante se cada um tiver suas próprias convicções, seu universo de verdades, mas se esforçar para admitir a existência das convicções e das verdades dos outros, mesmo quando forem diferentes das suas”. (p. 65).

Essa posição assume as diferenças mas aponta na capacidade do ser humano em evitar conflitos violentos. No campo politico, isso significa que tanto a direita quanto a esquerda devem reconhecer que existem muitos mundos, hábitos e ideias. Como aprendemos a tolerar as divergências?. Isso não significa aceitar tudo, ao contrário, porque Droit assinala que há momentos em que se deve ser…intolerante! A violência,por exemplo, é dessas coisas que não podem ser toleradas: “ser intolerante com a barbárie, o mal, a crueldade e a injustiça é uma “boa maneira” de ser intolerante”(idem, p. 70).A dimensão do  intolerável a ser aceita é porque não somos indiferentes, temos sentimentos “É por isso que o assassinato é  proibido, que o roubo é considerado geralmente intolerável. Pela mesma razão, mutilar o corpo de alguém, desrespeitar sua integridade física de uma pessoa, força-la, violenta-la, é sempre julgado intolerável. O desprezo, a falta de respeito, a deslealdade e a traição são também intoleráveis”(idem p. 73).

Para Droit, saber o que é intolerável na pratica depende  de decisões caso a caso, de debate, de  reflexão. Não é simples. “Será que se deve ser tolerante com aquele que usa sua liberdade de expressão para questionar a dos outros? Acredito que não”. O intolerável situado na fronteira da tolerância, não pode abdicar de ser intolerante com a injustiça, fanatismo e… intolerância”. “Se você deixar as pessoas realmente intolerantes se expressarem e agirem, elas acabarão por impedir todo o mundo de falar, você e os outros. Sendo intolerante com a intolerância, impedimos que ela se alastre, fazemos com que recue. Para que a tolerância progrida, é necessário ser intolerante com o intolerável ”(p.76).

A tolerância deve ser recíproca. “Tolero aqueles que toleram também, sou intolerante com quem é intolerante”,diz Droit. Quando mais houver reciprocidade, maior a possiblidade de convivência, por isso é preciso fazer ver aos intolerantes que quanto mais se manifestarem, mas estarão tornando a vida impossivel de ser vivida. Como funciona a mente do fanático?Ele acredita numa missão, de que detém uma verdade suprema, absoluta e indiscutível “Essa verdade absoluta exige o triunfo”(p.77). Por isso o fanatismo é sempre redutor do outro, o transforma em algo descartável, como lixo, seres inferiores, malditos, porque só assim “é justo elimina-los”. O fanático transforma crime em ato valoroso.

Convivência sem confronto: eis a chave da tolerância nos tempos atuais. As discordâncias continuarão a existir mas devemos fazer acordos sobre o que rejeitamos em conjunto. A ideia é manter crenças e convicções respeitando o direito do outro. As referências simples são: “rejeitar a intolerância, sempre considerar os outros com um mínimo de respeito, mesmo que não compartilhemos nenhuma de suas ieias, tentar fazer o máximo de acordos no dia a dia”.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

 

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