Por um Direito Territorializado

“Os fatos só são verdadeiros depois de serem inventados”. COUTO, Mia. O Último Voo do Flamingo. 2002, p. 111

 

Rio de Janeiro

Os megaeventos e seus retornos para as cidades

No período que se estende do ano de 2011 até o presente, a Cidade do Rio de Janeiro tem sediado alguns dos mais expressivos megaeventos, entre eles o Encontro Mundial da ONU para o Clima (Rio+20), em 2012, a Copa do Mundo da FIFA, em 2014, e este ano, dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos que serão realizados no segundo semestre. Mais do que a simples realização dos eventos, a posição de Cidade-Sede tem sido apontada como uma oportunidade única para a transformação da Cidade e da vida de seus habitantes.

É evidente que o sucesso destes Megaeventos exige uma série de intervenções em termos de construção de equipamentos, de oferta de serviços e de acessibilidade que, no final das contas, promovem mudanças importantes no ambiente urbano. No entanto, autoridades, desportistas, membros da imprensa e da sociedade civil constantemente são questionados sobre o que, efetivamente, esses eventos podem trazer de retorno para a Cidade e seus moradores.

A preocupação central reside em apontar como tais intervenções promoverão mudanças positivas, capazes de contribuir para a melhoria da vida da população do Rio de Janeiro.

Neste cenário, marcado por grandes intervenções urbanísticas e pela utilização quase que exaustiva do termo legado, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, lançou o seu Plano Estratégico – Pós-2016: o Rio mais integrado. Tal plano, extremamente ambicioso, segundo seus formuladores irá contribuir para a construção de uma Cidade Integrada, com a melhoria considerável de diversas estruturas, entre elas as de Segurança Pública.

No entanto, até este momento, o tema da Segurança Pública tem sido pensado, quase que exclusivamente, como contenção da criminalidade e prevenção a atos violentos durante a realização dos jogos. O foco dos gestores públicos tem se concentrado, quase que exclusivamente, na obtenção de novos equipamentos e tecnologias de vigilância, na ocupação territorial das favelas localizadas nos polígonos de segurança, e não no estabelecimento de ações e medidas que garantam a construção de um legado social para os habitantes da Cidade como um todo.

UPP Rocinha

Para que o propalado legado social na área de segurança se efetive, as ações pensadas devem focar em políticas voltadas para a promoção e consolidação de uma Cidade mais igualitária e democrática, o que não será obtido apenas com a ocupação territorial de Favelas, como no caso das Unidades de Polícia Pacificador (UPP), ou com a modernização de equipamentos das forças policiais, mas com mudanças concretas na forma de atuação das instituições governamentais.

 

Política e promoção de Direitos

Historicamente, a polícia fluminense se apoia em medidas extrajudiciais, discriminatórias e arbitrárias para com as populações empobrecidas. O que tem sido evidenciado pelo intenso e constante processo de remoção de Favelas e pela forte repressão em manifestações, como as ocorridas as vésperas da Copa de 2014, que contestam a realização de tais eventos. No entanto, mais uma vez, estamos diante de possibilidades reais de transformação, e para que os erros cometidos anteriormente não se repitam, devemos encarar as questões inerentes à segurança dos jogos em consonância com uma Política de Direitos.

A promoção e o respeito aos Direitos e garantias fundamentais devem nortear todas as ações e políticas pensadas para a Cidade, o que incluem além das ações no campo da segurança, medidas nas áreas de educação, cultura, trabalho e renda. Desta forma, tantos os gestores públicos quanto membros da sociedade civil devem estar atentos para elencar prioridades, objetivos e estratégias capazes de proteger e promover os Direitos Humanos, reduzindo as violações praticadas pelos órgãos estatais.

direitos humanos

Para que o Plano proposto pelas autoridades não se torne apenas uma peça publicitária, é indispensável uma profunda revisão das ações governamentais. Trata-se de colocar entre os objetivos das intervenções urbanas, não apenas a ‘resolução dos problemas da cidade’, mas a superação das desigualdades sociais e distinções territoriais.

Para tanto, devemos passar por uma profunda reformulação das forças policiais, especialmente, pelo estabelecimento de novas orientações de policiamento, pela valorização da vida e pela equidade no tratamento dos cidadãos. Isto significa reconhecer a legitimidade social dos moradores de Favelas, de seus Direitos e de seus desejos.

Definitivamente, qualquer tentativa de diminuir os índices de violência deve se confrontar com o problema do uso da força de maneira excessiva pelas polícias. Em geral, as políticas públicas do Estado brasileiro ignoram as execuções sumárias e a violência dos agentes públicos, pois há poucos casos no Brasil de políticas especificas sobre o tema. Pelo contrário, durante alguns momentos a violência policial e o enfrentamento são exaltados como solução para os problemas da criminalidade. O cenário futuro, em um exercício de projeção apoiada em imagens do presente, é sombrio para as populações mais pobres do Rio de Janeiro.

estado opressor

Estamos diante de uma encruzilhada, ou revemos os modelos de segurança pública e de ordenamento territorial de maneira urgente, e trilhamos um caminho que preserve a vida e o patrimônio de todos os cidadãos, sem discriminação de raça, idade, sexo ou localização geográfica, ou estaremos caminhando para um maior esgarçamento do tecido urbano.

Construir um Estado que, em nome da sociedade civil, seja capaz de controlar eficazmente o funcionamento do conjunto de instituições, sem, no entanto, contradizer o princípio das liberdades individuais, é provavelmente um dos problemas mais importantes com que a democracia brasileira se defrontará em um futuro próximo. É preciso reconhecer que o direito à vida é um direito fundamental, balizador de todos os demais e estruturante da sociedade. O debate que envolve a agenda política contemporânea perpassa fundamentalmente diversas discussões acerca da cidadania, especialmente, no tocante, a invenção de novos direitos sociais, do uso do território, da redefinição do espaço público e da implantação de um modelo de justiça territorializado.

 

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Jorge Luiz. Rio 2016: Jogos Olímpicos, favelas e justiça territorial urbana. In.: Revista Bibliográfica de Geografia y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidade de Barcelona. Vol XV, no 895 (23), 5 de Noviembro de 2010.

GOÉS, Felipe. Os grandes eventos de 2011 a 2016 e seus legados para a cidade. In.: URANI, André e GIAMBIAGI, Fabio (orgs). Rio: a hora da virada. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. pp. 51-59.

MACHADO, Luiz Antônio (org.) Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 316p.

MARINO, Leonardo Freire. O Estado territorial e a lógica da exceção permanente: uma análise sobre as manifestações contemporâneas da violência. Niterói: Programa de Pós-Graduação em Geografia – UFF, 2010. 228p. (Tese de Doutorado).

POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 272p.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Editora Campus Ltda., 1987. 89p.

UPP: tecendo discursos. In.: Revista Democracia Viva. Rio de Janeiro: Ibase. Julho de 2010, no 45. pp. 73-81.

Leonardo MarinoLeonardo Freire Marino é Articulista do Estado de Direito – Mestre e Doutor em Geografia. Professor Adjunto da UERJ  e Pesquisador do Grupo intitulado Geografia Brasileira: História e Política, localizado no Instituto de Geografia desta mesma Universidade. Tem experiência em diversos níveis de ensino e linhas de pesquisa, merecendo destaque os estudos que envolvem temas ligados as dinâmicas de ordenamento territorial urbano, os conflitos sociais emanados da violência e a promoção de Direitos Humanos.

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