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Perspectivas Filosóficas do Direito: uma abordagem multidisciplinar

 

 

Coluna Lido para Você

 

 

 

 

Foto: Open Photos

 Os estudos reunidos neste livro que é coordenado pelos professores Haroldo Reimer e Gil César Costa de Paula, do Programa de Mestrado em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica de Goiás têm a pretensão, como indica o seu título, de traçar PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS DO DIREITO, numa abordagem multidisciplinar.

            Com efeito, juntamente com os coordenadores, os vários autores que se encontraram na reflexão coletiva proporcionada pelo curso de pós-graduação a que se dedicaram – Alexandre Otaviano Nogueira (Direito de Superfície), Beliza Martins Pinheiro Câmara (Ampliando a Fundamentação do Princípio de Proibição do Retrocesso Ambiental com Base no Princípio Responsabilidade), Carolina Arantes Neuber Lima (Sujeitos de Direito: uma Breve Abordagem Jurídico-Filosófica), Elmo José Duarte de Almeida Júnior (O Dever de Pagar Tributos e a Justiça Social – Uma Análise Histórico-Filosófica), Fernanda Rodrigues Pires de Moraes (Assédio Moral nas Relações de Trabalho e a Ética Aristotélica: Motivações do Assediador), Francisca Soares de Lima (A Sociedade de Consumo e o Princípio Responsabilidade de Hans Jonas: Ausência de Mecanismos para sua Efetivação), Hugo de Angelis Bastos Pereira (A Trajetória Humana: um Olhar sobre a Terra), Ingrid Paula Gonzaga e Castro (Origem Filosófica do Direito dos Animais e a Legislação Protetora Brasileira), Lanker Vinícius Borges Silva Landin (O Incentivo da Sociedade Brasileira à Impunidade), Plínio de Melo Pires (Analisando o Princípio da Igualdade) e Tarcizo Roberto do Nascimento (Uma Visão da Educaçnao Jurídica: Necessidade e Aplicação do Exame de Ordem) – a partir de diferentes recortes filosóficos – Filosofia Geral, Filosofia Política, Filosofia Moral, Filosofia da Ciência – do tema direito, entregam-se à disposição de multidisciplinaridade com que pretendem qualificar a obra.

            Logram fazê-lo? A meu ver sim. Não apenas como conseqüência direta e imediata da natureza epistemológica do programa, em si construído com esse estatuto, na medida em que articula três campos de conhecimento que precisam dialogar: o direito, as relações internacionais e o desenvolvimento. Mas porque, ao se proporem estabelecer perspectivas filosóficas, recorrem ao direito como um enlace favorável para dar consistência a esse diálogo.

            A multidisciplinaridade, assim, se configura na exterioridade temática dos diferentes recortes selecionados pelos autores, no catálogo já posto em relevo na apresentação, e também no fio condutor da reflexão, vale dizer, o direito, erigido àquela condição sustentada por Durkheim, de ser a dimensão perceptível do social e dos modos pelos quais se faz instituinte – âmbito próprio das relações sociais primárias – e constituinte –âmbito por meio do qual se institucionaliza.

            A obra e seus estudos, refletem, por isso, epistemologicamente falando, o cuidado de discorrer sobre uma disciplina, o Direito, abrindo-a a outros modos de conhecer, valendo-se da interlocução que somente a filosofia proporciona. Trata-se, aqui, para lembrar Boaventura de Sousa Santos, de não perder de vista, a capacidade que tem cada disciplina de estabelecer condições de conhecimento – o Direito, por exemplo; mas de reconhecer, que apenas filosoficamente se pode dar ensejo ao diálogo entre todos os modos de conhecer, como requisito de racionalidade plena e legítima. Em outras palavras, não há garantia de conhecimento fundado num único modo de o realizar, senão na integração entre todos eles. É a mediação multidisciplinar, e ao limite transdisciplinar, que é filosofia propriamente dita, que conduz a essa possibilidade.

             

Um mergulho em cada texto, a partir de sua referência de sumário, terra;  direito dos animais; impunidade; sujeitos de direito; consumo e responsabilidade; assédio moral; justiça social; proibição do retrocesso ambiental; igualdade; direito de superfície; educação jurídica; mostra que eles não são apenas temas politicamente críticos para utilizar a expressão de F. Ferraroti (Uma Sociologia Alternativa. Da sociologia como técnica do conformismo à sociologia crítica. Porto: Edições Afrontamento, 1972) a justificar a condição de reflexividade de um pensamento que se pretenda alternativo, ou novidades semânticas que delirem do sentido proposto por J.J. Gomes Canotilho (Anais da XIII Conferência Nacional da OAB. Belo Horizonte: Conselho Federal da OAB, 1990) para designar o que chama de “palavras viajantes” cuja resignificação não se dá em abstrato; eles, ao contrário, indicam tensões sociais e epistemológicas a revelarem o percurso difícil que encontram no trânsito paradigmático em que estamos mergulhados.

Se bem alguns temas possam ser considerados in, na perspectiva de questões atualmente presentes na agenda do grande debate político e acadêmico, outros têm uma nota de singularidade porque interpelam o corrente, afirmando-se a contrapelo das motivações que organizam essa agenda.

Ponho em relevo a questão da proteção e dos direitos dos animais, em si interpelando novas titularidades, mas até pouco tempo, marginais no debate de fundo. Pudesse eu ter me valido de algumas indicações presentes no texto que integra, a propósito desse tema, o presente livro. Com efeito, há quinze anos deparei-me com uma questão nesse campo, a partir de situação vivenciada em meu universo familiar: a morte e a busca de sepultamento digno para um animal de estimação.

A epígrafe extraída de Anatole France dá a medida do tema posto em sobressalto:

                                                              

A vida de um cão é cheia de perigos. Para evitar sofrimentos, é preciso estar vigilante todo o tempo, durante as refeições e até durante o sono (Anatole France, Pensamentos de Riquet, in A Justiça dos Homens, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978, págs. 63-69)

 

Relato caso que me levou a peticionar na esfera administrativa: recebi auto de orientação de retirar as pedras do local no prazo máximo de 02 dias úteis, isso em face de ter o Serviço de Conservação de Monumentos Públicos e Limpeza Urbana do Distrito Federal, após reclamação de residente da quadra, sobre entulho e cão enterrado na área verde.

Em minha defesa aleguei não ter violado qualquer lei ou postura, uma vez que não há qualquer norma legal que o tivesse inibido de enterrar o seu cão de estimação morto. Com efeito, depois de atendido, desde o dia anterior em Hospital Veterinário, tendo como causa complicações orgânicas decorrentes da idade (velhice), o  animal de estimação, de médio porte (raça Beagle), morreu ali mesmo. Indagando do Hospital o procedimento a seguir em relação ao corpo, a informação recebida é de que o Requerente teria duas alternativas: autorizar a remoção para que o corpo fosse lançado no aterro sanitário ou pessoalmente enterrá-lo.

Entendi que não seria possível concordar com a alternativa de remoção. Primeiro, porque seria impróprio permitir que os restos do animal fossem jogados em local que está próximo a moradores de outra comunidade; segundo, porque, para seguir a lei, deveria agir com respeito ao animal que, por toda a sua vida proporcionou alegria, afeto e fidelidade aos seus donos e às crianças, tanto as da vizinhança como as da casa. Residente em apartamento, na Asa Norte, não tinha como garantir o respeito que a lei exige ao animal morto, senão, enterrando-o na mesma área verde, pública, onde sempre brincou, cercado de carinho dos donos e dos vizinhos e sob o abrigo das leis de proteção aos animais.

Justifiquei ter-me guiado pelo dever inscrito no artigo 13, da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO (Organismo das Nações Unidas, cuja Carta o Brasil subscreveu), em Bruxelas, em 27 de janeiro de 1978, segundo o qual: o animal morto deve ser tratado com respeito.

Também considerei, além disso, que o dever de respeito se inscreve na lei de proteção aos animais (Decreto nº 24.645, de 10/06/1934), inscrito no princípio de proteção nela previsto, conforme seu artigo 3º, que considera maus tratos,  a prática de ato de abuso ou crueldade em animais. Não por acaso,  epígrafe extraída da obra do grande escritor francês Anatole France, cuja ficção pretendeu traduzir o “pensamento” do pequeno cão Riquet como uma referência aos perigos que ameaçam os animais, numa cultura de insensibilidade.

Ainda mais, aludi ter agido para concretizar dever que é reconhecido em promessa legal do Distrito Federal, estabelecida na Lei Distrital nº 2.095, de 29 de setembro de 1998 (estabelece diretrizes relativas à proteção e à defesa dos animais), assumida nos termos do artigo 17, das Disposições Transitórias desta Lei, nos seguintes termos: “O Governo do Distrito Federal destinará área  de terreno para construção de cemitério de animais de estimação, cujo funcionamento será disciplinado em regulamento próprio”. Como até aquele momento, o Governo ainda não cumprira a sua obrigação legal não havia como exigir a Autoridade conduta diversa que a da assumida em proteção à dignidade animal, no modo como se agiu no caso relatado. Seja como for, passados quinze anos, o animal permaneceu no exato local onde foi sepultado (enterrado).

            Com a discussão proposta no livro, caminha-se na mesma direção para a qual hoje convergem os valores e a legislação, no sentido de reconhecimento dos animais e até da natureza como pessoas não humanas, dotadas de sensibilidade e possíveis de serem consideradas sujeitos de direito.  Enfim, ultrapassa-se aquela escala que, em passado recente e ainda atualmente, e em diferentes escalas de reconhecimento, a própria lei de proteção aos animais foi invocada para salvaguardar a dignidade da pessoas humanas (caso do advogado Sobral Pinto invocando a lei para sustar torturas a presos comunistas sob tutela de lei de segurança na ditadura do Esta-Novo; ou de juiz em Brasília, que assegurou moradia a integrantes do Movimento de Trabalhadores Sem-Teto, e outros despossuídos, com aplicação analógica dessa lei.

            Por isso ponho em relevo igualmente, o texto sobre o tema da titularidade de sujeitos de direito, questão que tem mobilizado a minha atenção desde longa data. Aqui mesmo, neste espaço da Coluna Lido para Você, fiz a leitura de obra centrada nessa matéria (   ). Por isso que finalizo minha resenha sobre o livro de Mauro Almeida Noleto, afirmando que o eixo teórico no qual  insere-se o seu  trabalho, o caracteriza como sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades e filosoficamente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito coletivo emergente deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de direitos nomeando as novas categorias jurídicas que as representam.

            Por fim, me alio à bem conduzida justificação do Exame de Ordem aplicado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No texto, Tarcizo Roberto do Nascimento, com quem convivi por longo período no ofício de acompanhamento da qualidade do ensino jurídico brasileiro, na Comissão de Educação Jurídica da OAB, demonstra de modo pertinente o sentido desse instituto legal. Tarcizo fortalece com seu artigo, os esforços acumulados por vários protagonismos na ação regulatória e avaliadora da educação jurídica, guardando aderência aos princípios  que orientam essa ação, objeto de minha reflexão contínua, também aqui neste espaço da Coluna Lido para Você. Conferir por último (https://estadodedireito.com.br/a-descoberta-de-novos-saberes-para-a-democratizacao-do-direito-e-da-sociedade/).

            Desse texto, extraio uma passagem com a qual dou suporte à relevância da abordagem de Tarcizo, lembrando que neste instante, as diretrizes ali mencionadas, já foram positivamente homologadas pelo Ministro da Educação:

 

Se então Fábio anota a exigência do que denomina  um balanço empírico mais sólido acerca da implementação das Novas Diretrizes Curriculares e do efetivo aproveitamento de inovações como Núcleos de Prática Jurídica, Atividades Complementares, etc., para a organização de projetos pedagógicos fundados nos ou orientados aos direitos humanos, tal atitude ganha ainda mais urgência quanto, nesse exato instante, o Conselho Nacional de Educação acaba de expedir uma Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (Parecer CNE/CES n. 635/2018, aprovado em 04/10/2018), embora ainda sujeito a homologação do Ministro da Educação. Se essa homologação se dará é algo ainda em aberto na conjuntura, politicamente tensa, como radical mudança no modelo político de governança.

Conquanto os sinais já lançados exibam tremendos retrocessos epistemológicos, pedagógicos e políticos, com movimentos de clara intervenção (até aqui contidos, com as salvaguardas constitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal, em face a ataques à autonomia das universidades e à liberdade de ensinar), e também em operações hostis à vocação crítica e livre da educação em geral (leis de mordaças, escola sem partido), que já feriram gravemente a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no tocante a fundamentos como flexibilidade curricular, interdisciplinaridade e redução dos elementos reflexivos do manejo pedagógico, é certo que na Revisão (Parecer n. 635/2018), apreende-se um vínculo não rompido como o movimento crítico e plural instaurado em 1994, com a Portaria n. 1886, conferido em 2004, com a Resolução n.9, guardando fidelidade a esses elementos estruturantes de uma orientação curricular, ainda que acessíveis a indicações de mais detida qualificação (conferir, nessa direção, o artigo de Horácio Wanderlei Rodrigues, ainda inédito mas que circula restritamente, em seu esboço inicial – que vai integrar o volume 8 da Coleção Caminhos Metodológicos do Direito, coordenada pelos Professores Fabrício Veiga Costa, Ivan Dias da Motta e Sérgio Henriques Zandona Freitas -, Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de DireitoAnálise do Parecer CNE/ N. 635/2018.

 

Os estudos que formam a coletânea, portanto,  se fazem muito oportunos para a compreensão do trânsito, entre o que se oculta, datadamente, ideologicamente, e que o pensamento crítico precisa desvelar; e o que ainda está difuso, às vezes à falta de categorias para designar e que é preciso fazer emergir, nesse duplo plano.

REIMER, Haroldo; PAULA, Gil César Costa de (Coordenadores). Perspectivas Filosóficas do Direito: Uma Abordagem Multidisciplinar. Brasília: Tipográfica, 2014, 226 P.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

 

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