Participação popular na administração pública brasileira (parte 2)

Coluna Direito Público em Debate

Se você deseja se tornar um colunista do site Estado de Direito, entre em contato através do e-mail contato@estadodedireito.com.br
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Foto: José Cruz/Agência Brasil

PODER LOCAL E PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: REFLEXÕES ACERCA DOS CONSELHOS MUNICIPAIS NO DIREITO BRASILEIRO

LOCAL POWER AND POPULAR PARTICIPATION IN PUBLIC ADMINISTRATION: REFLECTIONS ABOUT THE MUNICIPAL CONCILS IN BRAZILIAN LAW

As possibilidades de integração oferecidas pelo poder local

Hodiernamente, o espaço social local vem sendo encarado como a fração do território onde existem melhores possibilidades do cidadão colocar-se ao mesmo nível que o ente público, dialogando com este e obtendo o necessário grau de consenso. A localidade, assim como a região, está sendo indicada como a plataforma territorial a partir da qual devem ser desenvolvidas as atividades públicas, já que é justamente aí onde o público encontra melhores oportunidades de diálogo, comunicação e organização, de maneira a expressar-se produtivamente. Daí o porquê de nossa Constituição Federal ter tratado do tema de forma tão generosa.

Hermany[1] refere que as estratégias do Estado teriam uma efetividade distinta caso tivessem por base a plataforma local de poder. Diz ele que o Município é o local onde efetivamente desenvolve-se a vida social, para com o qual há uma identidade, de onde decorrem vínculos mais estreitos e de maior afinidade. Como fruto desses liames, há uma capacidade maior de expressão, que se torna mais efetiva e substancial, ao mesmo tempo em que é mais cheia de significado. O espaço local é, de acordo com Almeida[2], o ambiente ágil por onde as informações melhor se propagam.

A administração local tem sido permeada por instrumentos que aumentam o grau democrático de suas instituições, aproximando-a da vontade que vem do povo. Portanto, é lícito dizer que a ênfase numa estratégia local fundamenta-se na maior possibilidade dessa máquina pública buscar legitimação por meio do contato direto com o cidadão e com suas reivindicações. Assim, os instrumentos democráticos de participação popular têm sido influenciados pela necessidade do povo participar diretamente sobre os processos decisórios, que influenciarão diretamente sua vida.

A exaltação aos valores democráticos e aos potenciais oferecidos pela localidade são trabalhados por Costa[3]. Ela refere que a ênfase no poder Municipal acarreta num desenvolvimento do sentimento de solidariedade entre as pessoas. Realmente, um dos temas correntes no que toca ao poder local é a possibilidade de desenvolvimento de um sentimento de cumplicidade e irmandade entre os cidadãos. As demais esferas de governo, um tanto quanto distantes da população, não são aptas a gerar vínculos dessa natureza.

Hermany[4] relaciona o espaço local à democracia, dizendo que é aí onde a participação popular pode ocorrer com maior produtividade, proporcionando maiores possibilidades de obtenção de consenso.

Com base em tais premissas, o meio acadêmico tem desenvolvido estudos que visam concretizar os postulados democráticos decorrentes do poder local, esmiuçando e trabalhando as possibilidades concretas daí decorrentes. É certo que, embora seja unanimidade o fato de que o poder local é adequado para o desenvolvimento de políticas públicas, ainda há um fosso significativo no que toca à concretização dessa assertiva.

Um exemplo de busca pela ascensão do espaço local é a denominada proposta Nacional de Desenvolvimento Local[5], que, por meio de um estudo interdisciplinar, aborda vários aspectos locais – como a economia, o trabalho, a administração pública, a educação, dentre outros –, buscando uma sintonia entre as instituições, a iniciativa privada e a população. Essa proposta de desenvolvimento local consiste num elaborado roteiro que visa quebrar com a predominância das instâncias centrais de poder, às quais as demais esferas são dependentes. As metas e objetivos aí estipulados não almejam simplesmente traçar fórmulas paliativas, que alterem superficialmente a questão, mantendo o fundo intacto: o desejo dos formuladores do plano consiste em incentivar o espírito criativo nos Municípios, tornando-os células territoriais portadoras de espaços de criação.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O dito plano elenca uma série de fatores que colaboram para que a administração pública brasileira tenha dificuldades em obter um diálogo satisfatório com a sociedade organizada. O maior deles, de acordo com a proposta, é o imenso emaranhado de normas e disposições jurídicas que impossibilitam uma atuação limpa, sem entraves. O seguinte trecho do projeto esclarece que a redução da burocracia pode ocorrer com base na organização popular em foros e conselhos, permitindo o diálogo direto do público com o privado:

É importante salientar que a modernização das instituições públicas locais não se dará sem a participação ativa dos principais atores sociais interessados. A participação organizada dos possíveis parceiros, por meio de foros, conselhos ou agências de desenvolvimento, tornou-se hoje vital[6] .

Impende não olvidar que uma proposta dessa natureza gera repercussões diretas sobre os direitos fundamentais dos cidadãos, pois a aproximação do Estado às pessoas torna o exercício de sua cidadania mais simplificada, o que é um grande mérito, na medida em que a modernidade infelizmente tem gerado um progressivo aumento da complexidade da vida. Num ambiente onde as coisas são cada vez mais complicadas, a simplificação é um grande resultado a ser obtido.

Realmente, de acordo com Hermany[7], a readequação dos meios de participação popular com base numa estratégia local busca reverter o quadro de segregação que fazia com que os excluídos tivessem dificuldades de obter acesso ao ente público. O processo de globalização, bem como todos os produtos dele decorrentes, gera espaços cada vez mais complexos, que demandam maior capacidade de discernimento, impossibilitando que pessoas menos familiarizadas com esse contexto possam expressar-se proveitosamente. Noutras palavras, é lícito dizer que a ênfase no espaço local decorre da necessidade de colocar o cidadão, mais uma vez, no centro da discussão e da lógica pública.

A propósito, cumpre referir que a comunicação decorrente de processos locais faz com que os cidadãos não sejam reduzidos à qualidade de objetos de políticas públicas – as quais, por vezes, ensinam às pessoas quais suas necessidades –, mas em potenciais colaboradores das ações estatais.

Dowbor[8] diz que a ênfase local acarreta num incremento da cidadania, que ganha contornos mais efetivos e práticos, tendo em vista as possibilidades de que dispõe a população em geral para acompanhar as medidas tomadas no meio local. Essa aproximação acarreta na simplificação da participação popular no Estado, na medida em que o distanciamento entre cidadão e poder público produz degraus e níveis administrativos que geram empecilhos burocráticos que diminuem a fluidez da relação. Nesse sentido, significativo é o ensinamento de Gómez[9], que afirma ser o espaço local o ideal para a construção de uma democracia fundamentada de baixo para cima.

Ademais, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro é plenamente favorável à existência de mecanismos que venham a conciliar a expressão da vontade popular nos mais diversos níveis de governo, seja ele local ou não. Aliás, a Constituição Federal é pródiga ao estabelecer permissões para que o desejo do povo possa chegar mais perto dos escalões administrativos onde são tomadas as decisões.

 

[1] HERMANY, Ricardo. (Re)Distutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC; IPR, 2007. p. 250.
[2] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2.ª ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 170.
[3] COSTA, Marli M. M. da O Espaço Público e a Formação de redes de Gestão Local para a implementação de Políticas de proteção a infância. In: REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta. Direitos Sociais e Políticas Públicas : Desafios Contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. p. 2336.
[4] HERMANY, op. cit., loc. cit.
[5] DOWBOR, Ladislau. Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local. In: http://dowbor.org/. Acesso em 09 de agosto de 2009.
[6] DOWBOR, op. cit.
[7] HERMANY, op. cit. p. 251.
[8] DOWBOR, op. cit.
[9] GÓMEZ, José Maria. Política e Democracia em tempos de globalização. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 80

 

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza – CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 7284

 

Diego Marques Gonçalves é Articulista do Estado de Direito –  Doutorando em Desenvolvimento Regional pela UNISC. Mestre em direitos sociais e políticas públicas pela UNISC. Especialista em direito constitucional aplicado pela UNIFRA. Bacharel em direito pela URCAMP. Atualmente, é professor da Universidade da Região da Campanha, lecionando as disciplinas de Direito Civil III (Teoria Geral dos Contratos), Direito Civil IV (Contratos em Espécie), Direito Administrativo I e Direito Administrativo II. Dedica-se ao estudo do direito civil, na parte atinente ao direito obrigacional e ao direito contratual, bem como ao direito administrativo e constitucional, principalmente na parte atinente ao controle da administração pública e aos direitos dos servidores.
Bruna Zeni é Articulista do Estado de Direito – Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul e mestrado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, na área de concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, linha de pesquisa em Políticas Públicas de Inclusão Social. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – IBDC. Editora jurídica da Saraiva e Professora auxiliar da Universidade de Mogi das Cruzes.

 

Comente

Comentários

  • (will not be published)

Comente e compartilhe