Para não chorar as mortes que virão

Coluna Democracia e Política

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Foto: José Cruz/Agência Brasil

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Conjuntura nacional

A derrota do PT e do PSOL em Porto Alegre, onde nenhum partido foi capaz de conquistar um lugar no segundo turno da campanha eleitoral, caracteriza uma conjuntura nacional de recuo da esquerda e ascensão da direita. No futuro, quando as próximas gerações vierem ao espaço público, frente a uma realidade sem direito algum e sob o domínio do Capital, nossos filhos se perguntarão como perguntou Al Gore na conclusão de seu filme Uma verdade inconveniente “- Em que pensavam nossos pais? Porque não acordaram enquanto ainda podiam fazê-lo?” A questão, colocada pelo filósofo Jean-Pierre Dupuy serve de mensagem endereçada a toda esquerda.

O autor, na obra coletiva “O futuro não é mais o que era” organizada por Adauto Novaes (Editora Senac, 2013), também traz outro exemplo que permite entender o lugar da esquerda no segundo turno, ao lembrar a atitude dos responsáveis pelo Greenpeace em dezembro de 2009, na cúpula de Copenhague, onde se manifestaram pelo mundo em que viviam. Lá, os manifestantes ergueram seus cartazes para dizer aos capitalistas  um constrangido “Desculpe-nos. Era possível evitar a catástrofe climática. Mas nós nada fizemos”. Da mesma forma, a esquerda que vê atônica representantes da centro-direita e extrema direita assumirem (estou aqui considerando mais os candidatos do que seus partidos) a disputa do segundo turno em Porto Alegre e   já sinaliza  votar nulo para decidir o Prefeito da capital, e paradoxalmente, esquece a injunção defendida pelos militantes do Greenpeace em seguida no mesmo cartaz: “Aja agora e mude o futuro”.

Sorte moral

Há um enorme paradoxo no sentido que assume este texto, que é de justificar para a esquerda de Porto Alegre porque mudaria o futuro da cidade se votar sim em um dos candidatos que não lhe passa pela boca do estômago. Para a esquerda, o futuro da capital já está definido, ele está na disputa de dois projetos de direita, e portanto, de atraso para a cidade, seja de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) ou Sebastião Melo (PMDB), e portanto, é um futuro que já não é possível mudar, mesmo que ainda não se tornou presente.

Para Dupuy, ao contrário, o futuro nos contempla e nos julga agora, e por isso devemos tentar afetar seja lá o que o futuro seja, mesmo nos piores prognósticos. O autor de “O Tempo das Catástrofes” diz que o conceito de sorte moral é o único apoio que temos para apoiar nossa decisão, quer dizer,  se temos uma ação a fazer marcada pela incerteza – é melhor votar no candidato da continuidade ou em quem representa os interesses do grande capital? – então precisamos apostar nos acontecimentos futuros que não podem ser previstos no momento de agir. Isso significa para a esquerda, abandonar a ética racional que julga sua decisão de voto por sua ideologia nas eleições do segundo turno em Porto Alegre.

Redução de danos

Defendo que frente a uma disputa entre Marchezan e Melo, a esquerda não deve deixar-se guiar pela emoção mas reconhecer que estamos diante de um mundo de apostas onde “o futuro é incerto e arriscado” (Dupuy, p. 193). Escrevi sobre as razões que considero o projeto de Marchezan ruim para a Prefeitura no Jornal O Estado de Direito e peço que o leitor retorne a eles (http://bit.ly/2d6pfB3 e http://bit.ly/2cued2U)  pois é com base nesta análise que estou aqui defendendo que a esquerda vote em Sebastião Melo como forma de “redução de danos” ao serviço público da capital.

Foto: Pedro França/Agência Senado

Foto: Pedro França/Agência Senado

Explico-me. Todo o problema para mim reside no fato de que a esquerda deverá  julgar se é certo abandonar suas crenças e votar no “menos pior” dos candidatos, que para mim é Sebastião Melo,  mas só poderá avaliar isso retrospectivamente, isto é, depois que ele por ventura seja eleito. Quer dizer, para mim, a decisão dolorosa para a esquerda é de defender o voto em Sebastião Melo (PMDB) e não em Nelson Marchezan Jr (PSDB) porque ela só conta com a ideia de sorte moral para apoiá-la em sua decisão diante de um futuro incerto. Infelizmente, diz Dupuy, a sina da sorte moral é a mesma que serviu para Joseph Goebbells, que teria dito:” Nos entraremos na história ou como os maiores homens de Estado de todos os tempos ou como os maiores criminosos”. O que significa em termos práticos sorte moral? Que uma mesma ação, aqui no caso votar no candidato centro-direita em Porto Alegre, será julgada moralmente boa se Melo ceder e atender pautas da esquerda e será julgada moralmente errada se Melo pactuar com a esquerda e a trair.

Porque a esquerda teme apoiar Melo? É como na fábula do filósofo alemão Gunther Anders (1902-1992), citada por Dupuy, onde é contada a história do episódio bíblico do dilúvio “quando o dilúvio tiver levado tudo o que é, tudo o que terá sido, será tarde demais para lembrar porque não existirá mais ninguém”. Não é exatamente esta a situação da esquerda, vivendo com o dilúvio de direita de norte a sul do país, a sensação de que, quando isto tudo terminar, nada mais existirá do que um dia já foi seu? Para Dupuy, o problema dos profetas da catástrofe petista está no fato de que suas criticas não penetram no sistema de crenças da esquerda – ok, a esquerda perdeu o primeiro turno, deve afastar-se (leia-se voto nulo) porque não há mais nada a fazer, este mundo não lhe pertence mais  –  mas é justamente o “porque não existirá mais ninguém” que exige que a esquerda faça alguma coisa para não “chorar os mortos de amanhã” (Dupuy, apud Anders, p. 196), ou seja, suas vítimas. Ou como noutro exemplo de Dupuy, reiterado pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, assim como há mais de um quarto de século sabemos as consequências climáticas do aquecimento mas pouco fazemos para mudar nosso meio ambiente, da mesma forma sabemos como se comporta o desejo neoliberal mas teimamos em reconduzir a direita neoliberal ao poder.

Encruzilhada da estratégia política

Prefeitura de Porto Alegre Foto: Rhcastilhos/Wikipedia

Prefeitura de Porto Alegre
Foto: Rhcastilhos/Wikipedia

O ponto que resta, portanto, é que em politica, a negociação é uma moeda forte para a conquista do poder. Primo Levi afirmava que “as coisas cuja existência parece moralmente impossível não podem existir”, e isso tem um profundo significado para a esquerda da capital , ela precisa reagir a cegueira da evidência de que nada mais há o que fazer:  mesmos governos de direita podem ser legitimados pelo voto, o que significa que, ao contrário do que diz Levi,  que o que parece moralmente impossível de acontecer, as vezes acontece. Quer dizer, a esquerda está numa encruzilhada da estratégia política. Ela precisa discutir como conquistará nas próximas eleições o poder baseada na única alternativa possível, a frente ampla, já que as iniciativas isoladas mostram eleição após eleição que a esquerda fragmentada não tem forças para disputar sozinha o poder. O quadro foi resumido por Luis Felipe Miguel, autor de Desigualdades e Democracia (Unesp, 2016, leiam!): para ele está mais do que claro que precisamos de uma “frente ampla de esquerda para unificar a resistência no Brasil”. Ela só ocorrerá quando a extrema esquerda reconhecer que precisa do PT para compô-la e que não pode partir sozinha como fez Luciana Genro (PSOL).

Reconhecer os erros

O PT precisa também reconhecer seus erros,  que “conciliou demais da conta, chafurdou na lama, incorreu em práticas lastimáveis, foi oportunista, aliou-se a alguns dos nomes mais sujos da política brasileira e, pior ainda, permitiu que alguns deles se tornassem petistas “, e a ausência desse mea-culpa foi o que que produziu o distanciamento do PT das demais correntes da esquerda,  opinião de Miguel com a qual concordo. Ela ocorreu  porque ainda há “um rastro de ressentimentos mais do que justificáveis”, mas o fato é que o partido ainda tem um importante peso nos movimentos sociais. Miguel também vê com criticas as “aspirações do PSOL de ser o PT do futuro”, o que implica em competição entre as esquerdas, que, no nosso entendimento, foi a grande razão da derrota da esquerda em Porto Alegre. Finalmente, Miguel considera que deve haver aproximação dos dois lados, tanto do PT como do PSOL, que vão ter de “aprender a conversar de igual para igual com as outras forças” , diz. Isso a longo prazo.

No curto prazo, a esquerda tem uma eleição municipal da capital para definir sua posição: se optar pelo voto nulo, para mim, que sou servidor público, estará elegendo o candidato de extrema direita, Nelson Marchezan Jr e tudo o que ele significa para este campo, como arrocho salarial dos servidores, perseguições (como fez com a Cristalvox),  parcelamento de salários e terceirização, etc. A esquerda precisa saber que ainda tem responsabilidade pelos próximos quatro anos, que não tem o direito de lavar as mãos, pois deve solidariedade aos cidadãos na próxima legislatura, as “gerações futuras”, de que fala Dupuy e, se não os considera, deve solidariedade ao menos os servidores públicos municipais, que mantém a cidade. Se os servidores estiverem mal, a cidade estará mal. Todo o servidor é um cumpridor do seu dever, mas o servidor é um ser humano e  fica mais difícil trabalhar com salários parcelados, retirada de direitos, ausência de reajuste salarial, engessamento de progressões, retirada do difícil acesso e outros direitos garantidos em lei.

Lutar por uma administração menos pior

Isso reflete, queiramos ou não, na qualidade dos serviços públicos na saúde pública e nas escolas. É só olhar a condição dos trabalhadores do Estado. Não se trata de corporativismo do servidor, se trata de defender princípios de justiça numa sociedade democrática e junto aos trabalhadores do município: a esquerda, ao recusar lutar por uma administração “menos pior” acredita que não há reciprocidade entre os eleitores atuais e das próximas eleições, e por isso, pode abandoná-los a sua própria sorte na expectativa de que aprendam a lição do que acontece quando elegem um prefeito de extrema direita. Mas esquece que é a máquina pública está em perigo se Marchezan for eleito! É esta geração de eleitores que está sendo abandonada pela esquerda: por isso a esquerda precisa voltar ao cenário político neste segundo turno, precisa negociar, precisa fazer valer algo do projeto de esquerda mesmo entre os inimigos declarados.

É possível, ainda que improvável, que Melo tenha uma personalidade não submissa ao PMDB; é difícil, mas não impossível, que Melo cumpra acordos com a esquerda e incorpore parcela de uma agenda acordada em sua gestão. Melo deu provas de que é um administrador: os servidores da Câmara Municipal , onde foi presidente, elogiam sua administração devido os avanços que implementou e as reformas que fez. Na Câmara, de fato, era um presidente de diálogo e sua posição de vice-prefeito não permitiu essa face emergir na relação com os servidores. Isso reforça a ideia de que o ideal de marketing adotado por sua campanha, de que era verdade qie havia ali um trabalhador. A esquerda acredita que Melo e Marchezan são iguais: eles não são, simplesmente porque suas personalidades são diferentes. Resgatar um autêntico PMDB nas veias de Melo é como encontrar o lado bom de Darth Vader – mas como no filme, no fundo, no fundo, ele estava lá. Melo é o Darth Vader da esquerda.

sebastião melo eleições 2016

Foto: Esteban Duarte/CMPA

Nossa questão é que a esquerda deve evitar uma catástrofe maior. Isso quer dizer que a esquerda deve deixar de acreditar que sua luta contra o neoliberalismo e portanto a luta contra os candidatos que encarnam o ideal de mercado não se faz mais neste momento, mas nas próximas eleições? É claro que não! Por exemplo, a esquerda pode incluir em sua agenda, na eventual possibilidade de um apoio, que defendo, além da defesa dos direitos sociais, o projeto de contratação de guardas e outras medidas defendidas ou por Raul ou por Luciana. Pode incluir também a defesa da extinção da INVEST POA, fundação criada no governo Fortunati com o objetivo de investir no mercado de ações, usando para isso o patrimônio da Prefeitura – esta não foi uma das ações mais neoliberais de seu governo? Se Melo concordar em interromper suas atividades por 4 anos, já terá sido uma vitória!

Não há reivindicações com mais peso que as outras, mas há a possibilidade de construção de uma agenda comum compartilhada com setores da esquerda, produto de negociação para condução de Melo ao segundo turno. Redução de danos. Para a esquerda, os interesses políticos de centro-direita e esquerda são iguais, para mim não porque considera o fato de que as personalidades das lideranças importam e por esta razão, ainda que integrantes de partidos de posições semelhantes, podem ser diferentes as gestões.  Ao menos, a esquerda tem a obrigação de continuar na mesa do contrato social,  a esquerda precisa ter consciência de que o voto do povo na extrema-direita (Marchezan) traz como destino, para mim, a destruição do serviço público municipal como conhecemos, e portanto, impõe-se de forma absoluta lutar contra as consequências.Ainda não terminou o tempo de negociar nestas eleições, e em Porto Alegre, isso significa abandonar a postura passional que impulsiona a esquerda a votar nulo e retornar a mesa de negociações: Melo precisa de votos por esta razão precisa ceder em uma negociação com a esquerda. E ele cederá.

Obrigação de prestar contas

A esquerda perdeu a chance de participar do segundo turno e tem obrigações de prestar contas. Perdeu por seus erros, perdeu pelas decisões estratégicas que tomou. Não é possível colocar tudo no mérito da direita, ou do apoio da RBS, ou qualquer outro veículo. A esquerda colaborou para seu fracasso e tem de prestar contas do que fará de agora em diante. Toda a parábola retrabalhada por Anders sobre Noé e citada por Dupuy quer realçar o luto das mortes que ainda não se produziram, imagem simbólica que serve para falar da política local para as perdas que se seguirão. Ela sugere que ainda é possível a inversão do tempo na política, de que é possível  colocá-la no ciclo onde, mesmo com as previsões que se produzem do futuro, da desgraça anunciada, que elas possam não se realizar, mas para isso, não pode “abandonar o barco”. Como no caso de Noé, onde o anúncio da catástrofe serviu para que inúmeros trabalhadores viessem ajudá-lo a construir a barca, o mesmo vale para a esquerda, onde seu seu objetivo é “precisamente motivar uma tomada de consciência e agir para que a catástrofe não se produza”.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Por isso, quando dizemos que a esquerda é capaz de prever a catástrofe que se avizinha com a eleição da direita para Porto Alegre, que a catástrofe é maior com a eleição de Nelson Marchezan Jr do que com Sebastião Melo, é uma pre-visão, no sentido apontado Dupuy: ” ele não pretende dizer o que será o futuro, mas simplesmente dizer o que teria sido o futuro se não se tomasse cuidado”(Dupuy, p. 201). Aqui, isso significa que o futuro imaginado com a vitória de Sebastião Melo é um futuro ruim possível, mas pode ser mais familiar, ao menos para os servidores públicos municipais,  do que o futuro prometido por Nelson Marchezan Jr. Se a ação da esquerda for eficaz, o pior futuro não se realizará e isto será um alento: será menor o número de empresas públicas vendidas, será menor o número de direitos dos servidores públicos retirados, etc, etc, o que está no horizonte ideológico ou simplesmente nos….sonhos do candidato Marchezan.

Jogar com o fogo

A salvação da esquerda está em usar a astúcia da visão do destino catastrófico da cidade com a extrema direita. Afastar o pior caminho, retardar seu inicio, desejando escapar por um triz do pior projeto possível, eis a missão da esquerda no segundo turno das eleições municipais em Porto Alegre. Será sábia a esquerda que evitar a emoção do momento e jogar com o fogo: “não nos aproximamos demais dele porque corremos o perigo de nos queimar: também não nos afastamos demais porque ele nos protege, lembrando-nos sem cessar o perigo ao qual ele nos expõe. Em outros termos, como dizia o poeta Hölderlin, o que pode nos salvar é o mesmo que nos ameaça: lá onde cresce o perigo cresce também o que salva”(Dupuy, p. 207).

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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