Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
OS DIREITOS HUMANOS E AS METAMORFOSES DO TEMPO: COMPREENDENDO A SUA (RE)INVENÇÃO CRÍTICA. Gilmara Joane Macêdo de Medeiros. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília/Faculdade de Direito e Universidade Federal Rural do Semiárido-Mossoró, RN/Faculdade de Direito. Brasília, 2019.
Para compor este Lido para Você faço um novo mergulho na tese apresentada e defendida por Gilmara Joane Macêdo de Medeiros, professora da UFERSA – Universidade Federal Rural do Semiárido, em Mossoró, RN em cumprimento aos requisitos do programa interinstitucional de doutorado para professores da Faculdade de Direito tutelado pelo programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB.
O primeiro mergulho o fiz na qualidade de orientador da tese, acompanhando a sua elaboração durante o curso, desenvolvido com as aulas e eventos acadêmicos em Mossoró, ali também onde participei de atividades político-culturais promovidas pelo Centro de Referência em Direitos Humanos do Semiárido, em Mossoró, do qual Gilmara, à época, foi Coordenadora.
É um alento perceber o quanto das interpelações da práxis inscritas nos desafios do campo crítico dos direitos humanos, movem as respostas teóricas que o trabalho de Gilmara busca estabelecer.
Por isso que, na apresentação e defesa da tese perante a banca por mim presidida e composta pelas professoras Talita Tatiana Dias Rampim e Daniela Marques de Moraes, da UnB; pela professora Lívia Gimenes Dias da Fonseca, da UFRJ; e pelo professor Antônio Escrivão Filho, do Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB, a Autora tenha tido o cuidado de prevenir motivos ou justificativa da pesquisa: “incômodo das teorias críticas com o tema dos direitos humanos; a percepção sobre como os direitos humanos são atrelados a um pensamento contestador no Brasil; trajetória pessoal e política; a identificação do tema dos direitos humanos com as causas e bandeiras das lutas sociais; os estudos acadêmicos tradicionais sobre os direitos humanos”.
“Creio que nunca entenderei os elefantes, Saiba vossa senhoria que eu vivo com eles quase desde que nasci e ainda não consegui entendê-los, E isso porquê, Talvez porque o elefante seja muito mais que um elefante.” (José Saramago In A viagem do elefante).
A ilustração e a epígrafe são do trabalho de Gilmara. Elas revelam a sub-leitura simbólica presente em seu trabalho por meio de outras referências músico-literárias, e evocam a necessidade de busca de sentidos nunca plenamente alcançáveis porque o real escapa para além do que simplesmente existe ou que é produzido como existente como lembra Boaventura de Sousa Santos acerca da sociologia das ausências.
Daí que o ponto de partida de Gilmara, na tese, seja, diz ela: “Aventurar-se no estudo e compreensão dos direitos humanos como um fenômeno histórico, social e jurídico é enveredar num labirinto de diversas teorias e concepções que provocam espanto, encantamento e confusão. De certa maneira, podemos afirmar que a sua investigação requer de nós, nos dias de hoje, sensibilidade e coragem de se posicionar para que não recaiamos no senso comum raso e nas análises limitadas, tão comuns a área. Por esta razão, consideramos que o desafio do presente trabalho é demonstrar qual o conceito de direitos humanos é o adotado e como ele pressupõe uma práxis social (porque dela nasce), isto é, um engajamento na mudança do mundo, sobretudo, no rompimento das diversas relações de exploração, opressão e dominação. E porque buscamos entender como esta práxis modifica, formula e constrói uma nova perspectiva a seu respeito, consideramos o nosso objeto de estudo complexo e em permanente transformação”.
Assim é que ela oferece como objetivo da tese: “Analisar as contribuições das teorias críticas dos direitos humanos e as ações dos movimentos sociais, grupos de esquerda e revolucionários para uma reconstrução de sua epistemologia. Buscou-se compreender quais são os termos de uma reinvenção crítica dos direitos humanos, partindo do pressuposto que a ideia atravessou uma série de transformações nos seus significados e sentidos políticos, provocadas pelas reflexões sobre as contradições e paradoxos que surgiram da sua utilização ao longo do tempo”.
E como objetivos específicos: a) Analisar criticamente o percurso histórico do surgimento dos direitos humanos e seus deslocamentos teóricos; b) Compreender os paradoxos e contradições existentes no uso estratégico dos direitos humanos como linguagem de resistência; c) Analisar como esses paradoxos e essas contradições se traduzem em novas concepções sobre os direitos humanos, reconstruindo sua epistemologia.
Com esses objetivos a tese percorre o seguinte Sumário, organizado em quatro capítulos: capítulo I – Direitos Humanos e história: concepções, paradoxos e alguns apontamentos críticos; capítulo II – Direitos Humanos e Século XX: paradoxos do seu triunfo como alternativa emancipatória; capítulo III – Direitos Humanos e esquerda: reflexões a partir da experiência brasileira; capítulo IV – A (re)invenção dos direitos humanos por suas teorias críticas.
Por esse roteiro a Autora mapeia o seu percurso de pesquisa o qual, nas suas próprias indicações implicou em localizar a ideia de direitos humanos na história, reconstruindo seus significados, contradições e momentos de afirmação; atravessar a bibliografia sobre o tema, sobretudo dos estudiosos vinculados às chamadas perspectivas críticas; buscar compreender e situar a entrada da “defesa dos direitos humanos” na cena pública brasileira e as influências da relação política entre esquerda e direitos.
Sua tese pode ser lida, a partir desse roteiro, conforme os contornos do mapa que elaborou, demarcando por um conjunto bem definido de “discussões e resultados”, assim designados:
- * Os direitos humanos irromperam na história moderna nos processos revolucionários do século XVIII, associados aos ideais burgueses, sendo alvo de diversas críticas. Sua história é marcada por uma série de contradições e de paradoxos.
- * Foram objetos de diversas críticas, seja por suas origens e ideais a eles vinculados, seja pela abertura simbólica que provocaram para a reivindicação de reconhecimento de novos(as) sujeitos(as), seja pelas fragilidades teóricas e políticas que apresentavam como ideal emancipatório.
- * Ainda nos séculos XVIII e XIX eles são alvos de importantes análises críticas. E, apesar da ampliação conceitual que atravessaram, advindas das lutas políticas concretas (sobretudo, as proletárias), eles não eram considerados uma linguagem emancipatória das lutas políticas ao longo do século XX, em especial, das lutas revolucionárias.
- O fim da Guerra Fria é marcado pelo anúncio do “triunfo” dos direitos humanos. A era do triunfo dos direitos humanos é marcada pela ampliação das suas contradições.
- * Eles passam a representar uma linguagem emancipatória, em especial, no momento em que são transformados numa bandeira da esquerda política.
- * Do encontro entre esquerda política e direitos humanos, nasce uma nova esquerda. Ao mesmo tempo, do encontro entre direitos humanos e esquerda política/teoria crítica nasce uma nova perspectiva de direitos humanos.
- * As teorias críticas dos direitos humanos emergem deste contexto. Da rejeição ao pensamento tradicional que lhes dava sustentação, buscando a sua reinvenção como linguagem emancipatória. O que caracteriza uma teoria crítica? A busca pela transformação da realidade.
- * Desconfiança com a perspectiva tradicional (liberal, colonial, etc.)
- * O combate às ilusões da perspectiva tradicional: teleologia, triunfalismo, descontextualização, monolitismo e estatismo.
- * A perspectiva tradicional dos direitos humanos opera dentro de um “paradigma da simplicidade”.
- * A reinvenção crítica adota o “paradigma da complexidade”, baseado em:
- a) filosofia das impurezas; b) Adoção de uma ética do vivo e da Vida; c) reconhecimento do pluralismo jurídico; c) reconhecimento da diversidade cultural do mundo.
- Concepção material dos direitos humanos: o seu fundamento são as lutas sociais e políticas em busca da dignidade.
- * Por esta razão, os direitos humanos são compreendidos como processos de luta pela dignidade.
- * A reconstrução epistemológica dos direitos humanos nasce, portanto, da necessidade de assinalar o que as lutas por transformação social querem empregar quando invocam os direitos humanos como guião emancipatório”.
O trabalho de Gilmara segue esse itinerário e recupera o fio condutor teórico e político que entrelaça duas narrativas orientadoras para estabelecer o núcleo explicativo da questão por ela proposta.
A construção da teoria crítica do direito e dos direitos humanos, na contraposição entre as gramáticas do socialismo e do liberalismo, na contraposição entre esquerda e direita e seus respectivos projetos sociais em disputa; e a análise do percurso do MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos que, no Brasil, mediou com sua prática de afirmação e defesa dos direitos e dos direitos humanos, as tensões entre esses dois projetos, no pensamento e na ação.
Gilmara nesse sentido, é autora singular na discussão e na reflexão sobre esse tema, trazendo luzes sobre os impactos das teorias marxista e liberal e as respostas que elas ofereceram para se recriarem enquanto se testavam em sua capacidade de explicar a sociedade e o mundo. Confira-se na tese, o capítulo Esquerda e Direitos Humanos: Reflexões a Partir da Experiência Brasileira. Não conheço outro estudo, sobretudo no campo teórico do direito e dos direitos humanos que tenha dado atenção a essas questões. Salvo, numa outra perspectiva, mais filosófica, que se apresenta com Roberto Lyra Filho e seu precioso ensaio Karl meu amigo, diálogo com Marx sobre o Direito (Sergio Fabris Editor), infelizmente esgotado, mas que circula livremente em cópias digitais.
No aspecto político, tendo como fio condutor a agenda de atuação do MNDH, Gilmara retoma e avança para o jurídico os estudos sociológicos do estimado Luciano Oliveira, o cáustico e interpelante sociólogo pernambucano, querido amigo. Sua reinterpretação vai extrair dessa leitura a designação que ela associa ao meu próprio modo de analisar a questão, no caracterizar os movimentos sociais como sujeitos coletivos de direitos, por sua capacidade criativa e inovadora, fonte de uma normatividade que não estava adstrita aos limites estatais, por isso abrindo uma dimensão instituinte do Direito, a que se chamou Direito Achado na Rua (p. 158).
No aspecto teórico ela resenha as posições altamente criativas do melhor pensamento crítico contemporâneo constituído pelos ensaios e teses que se prestam a confirmar uma de suas agudas proposições, a de que do encontro entre direitos humanos e esquerda também nasceu uma nova perspectiva de direitos humanos, renovados na sua teoria, nos seus símbolos e nos seus fundamentos; abertos as transformações da própria história (numa) concepção que requer o entrelaçamento entre a teoria e a práxis, buscando compreender os signos das transformações advindas das ruas; direitos como uma expressão legítima das formas de resistência às forças reificadoras e opressoras do mundo, cujo fundamento de existência são as lutas políticas concretas por libertação (p. 162).
É aí que Gilmara radica um outro achado de pesquisa que é o resgatar o humanismo que anima o sentido crítico do tornar-se humano no sentido freireano (Paulo Freire) do termo, a partir do que nos compreendemos como sujeitos históricos, seres inacabados, em permanente processo de transformação, a partir da mediação com o mundo e com os outros seres humanos (p. 168-169), e que vai resultar no que a Autora denomina de humanismo diferente, porque trata-se de um humanismo que compreende homens e mulheres concretos, cuja vocação para ‘o ser mais’ implica na negação das condições que os oprimem – materiais e simbólicas, estabelecidas pelos emaranhados do poder (p. 169).
Tratei desse humanismo em meu O Direito como Liberdade e Consciência (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008) para afirmar que o humanismo de O Direito Achado na Rua, conforme salienta o Professor Roberto Lyra Filho, formulador de seus princípios, longe de se constituir numa idolatria do homem por si mesmo, procura restituir a confiança de seu poder em quebrar as algemas que o aprisionam nas opressões e espoliações que o alienam na História, para se fazer sujeito ativo, capaz de transformar o seu destino e conduzir a sua própria experiência na direção de novos espaços libertadores (p. 88).
Assim é que, na sequência, no Capítulo IV, a Autora cuida de rastrear A (Re)Invenção dos Direitos Humanos por suas Teorias Críticas, entendida a acepção teórico-crítica como conhecimento que está relacionado a uma ação transformadora da realidade social, em específico, das diferentes formas de dominação e exploração dos seres humanos (p. 172), fixando a sua atenção em boa síntese que elabora de seus autores de referência na tese: Joaquin Herrera Flores, David Sánchez Rubio, Boaventura de Sousa Santos e Hélio Gallardo, autores que, em arranque epistemológico de suspeição sobre os lugares comuns da tradição teórica, apontam exatamente para a reinvenção crítica dos direitos humanos (como oposição) à narrativa triunfalista que tentou limitar o seu conceito, conteúdo e o seu potencial de transformação dentro dos marcos e mecanismos da democracia liberal e do sistema capitalista, para em contrapartida constatar que nas ruas emergem movimentos que aprofundam a noção democrática e, ao mesmo tempo, expõem como o capitalismo é arbitrário e, portanto, antidemocrático, pois, nas ruas também nascem direitos fruto dos diversos conflitos e lutas sociais por libertação (p. 196).
Assim é que, em arremate, vai tomar O Direito Achado na Rua e a (re)invenção dos direitos humanos no Brasil, até como homenagem aos 30 anos de construção desse projeto (sobre esta celebração ver http://estadodedireito.com.br/o-direito-como-liberdade-30-anos-de-o-direito-achado-na-rua/), indicando-o como síntese desse processo, vale dizer, do encontro da teoria crítica e da esquerda política (compreendida como os grupos, movimentos e indivíduos que lutam contra as diversas formas de exploração/dominação/opressão) com a linguagem dos direitos e com a descoberta do processo instituinte advindo de suas ações na democracia, para fazer emergir uma nova concepção de direito e a abertura para compreensão de um direito que se constrói a partir dos conflitos sociais, na luta daqueles que buscam um processo de libertação das relações de exploração e de opressão (p. 199).
O texto de Gilmara Joane Macêdo de Medeiros, conduzido por uma narrativa elegante e ao mesmo tempo contudente, não fosse uma exigência do tema, não se descuida do sensível conforme revelam suas metáforas, epígrafes e ilustrações, em si formando um sub-texto fortemente mobilizador. Seja no poema de Drummond de Andrade, Canção Amiga, ou na prosa de João do Rio (A Alma Encantadora das Ruas): A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, cantarem uma melopeia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam e lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bola de sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, e quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões – tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os anjos (…) .
Nesse sub-texto permanece o relampejar de que há sempre um perigo a espreita, contra as condições materiais da existência digna ou contra as liberdades democráticas que os sujeitos arrebatam aos tiranos e ao ditadores, aos espoliadores e aos opressores, para instituir direitos e ampliar sua experiência de humanização, tal qual ela própria esboça na sua poética do elefante: “Sigamos fazendo e refazendo o nosso errático elefante, reconhecendo a sua força e os seus limites, ousando transformar o mundo e a nós mesmos na atividade política, com o sonho e a doçura. As forças desumanizantes e reificadoras nos espreitam, o que nos coloca o permanente desafio recomeçar a tarefa. Terminamos com a frase de abertura da Introdução da Tese: Amanhã recomeço”.
Mesmo que faça escuro, que o passado sombrio queira assaltar o presente para usurpar o futuro (conforme mencionei aqui em outro Lido para Você http://estadodedireito.com.br/tortura-coordenacao-geral-de-combate-a-tortura/), pensando nossas injunções políticas da conjuntura, Gilmara avisa em sua obra que amanhã recomeça porque, com Thiago de Mello, a sua epígrafe final nos lembra que:
Faz escuro, mas eu canto
Porque a manhã vai chegar
Vem ver comigo, companheiro
Vai ser lindo, a cor do mundo mudar
Vale a pena não dormir para esperar
Porque a manhã vai chegar
Vale a pena não dormir para esperar
Porque a manhã vai chegar
Já é madrugada
Vem o Sol, quero alegria
Que é para esquecer o que eu sofria
Quem sofre fica acordado
Defendendo o coração
Vem comigo, multidão
Trabalhar pela alegria
Que amanhã é outro dia.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
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