O Princípio Constitucional da Eficiência e a EC n.º 19/98 (parte 1)

Coluna Direito Público em Debate

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Foto: Câmara dos Deputados

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AS LIMITAÇÕES DA EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 19/98 NA IMPLEMENTAÇÃO DO MODELO GERENCIAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL

LIMITATIONS ON CONSTITUTIONAL AMENDMENT 19/98 TO IMPLEMENT THE MANAGEMENT MODEL OF PUBLIC ADMINISTRATION IN BRAZIL

Resumo

O presente trabalho objetiva debater os limites da reforma administrativa empreendida pela Emenda Constitucional n.º 19/98 na implementação de um modelo gerencial de administração pública, calcado, como é consabido, na obtenção de resultados. Em razão desse objetivo, será realizada, primeiramente, uma análise do modelo burocrático de gestão pública, mais tradicional e já consolidado nas entranhas da administração pública brasileira; para tanto, serão expostos os principais aspectos desse modelo, principalmente a sua irrestrita observância aos procedimentos enquanto forma de garantia da moralidade. Num segundo momento, será dada ênfase ao modelo gerencial de administração pública, que busca, sobretudo, a obtenção de resultados satisfatórios, sem grandes preocupações com a maneira, com o procedimento por meio do qual será alcançado o objetivo. Ao cabo, serão expostos alguns pontos introduzidos pela Emenda Constitucional n.º 19/98, bem como a capacidades desses dispositivos surtirem os efeitos almejados, no tocante à obtenção de maior celeridade e qualidade na prestação dos serviços públicos. Para a realização deste trabalho, foram utilizados dos métodos bibliográfico e qualitativo.

Introdução

Atualmente, referir que a administração pública brasileira é deficitária em inúmeros aspectos é praticamente um consenso: não há quem duvide e, pior, não há quem não tenha sofrido as consequências de um Estado que, via de regra, ressente-se de qualidade e presteza na realização de serviços básicos e indispensáveis para a sociedade.

Como resposta, há décadas aqueles que exercem o poder público lançam medidas legais com o fito de estabelecer novas bases para uma administração pública mais eficiente e efetiva. Nosso Texto Constitucional, por exemplo, é a perfeita expressão do desejo de reformar as velhas estruturas e práticas para obter os resultados positivos tão almejados.

Aliás, não bastassem os dispositivos originariamente existentes na Carta Magna, no ano de 1998, por meio da Emenda Constitucional n.º 19, o Poder Constituinte Derivado alterou o texto original da Lex Legum brasileira, buscando introduzir, entre nós, um modelo de administração pública calcado fortemente na obtenção de resultados práticos efetivos. Tem início, então, mais uma tentativa de introduzir elementos da administração pública gerencial neste país.

A inserção desses novos elementos indubitavelmente oxigena o ordenamento jurídico, uma vez que os parâmetros legais são de suma importância para a construção de novos comportamentos. Entretanto, é possível realizar a seguinte pergunta: introduzir alterações constitucionais e/ou legais em nosso ordenamento jurídico já abarrotado surte algum efeito prático?

Em razão da importância desse questionamento, o presente trabalho tem por objetivo central debater os limites da reforma administrativa empreendida pela Emenda Constitucional n.º 19/98 na implementação de um modelo gerencial de administração pública. Para que seja possível responder a este questionamento, buscou-se referências importantes junto a doutrina administrativista, que fala a respeito do modelo burocrático de administração, para, depois, abordar os contributos da administração gerencial para um melhor desempenho estatal.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A administração pública burocrática e as heranças de Max Weber

Durante o período que antecedeu à revolução Francesa, os Estados caracterizavam-se, em sua quase totalidade, pela existência de uma administração pública na qual os critérios para ingresso fundamentavam-se, quase sempre, na amizade, no parentesco, na conivência com vícios e com problemas. Estas eram as características do velho e arcaico Estado Absolutista, calcado no personalismo incontestável da autoridade administrativa (COUTINHO, 2012).

Somente após a Revolução Francesa – verdadeiro marco na construção de novos valores para a sociedade e para a administração pública – é que surgiram condições efetivas para a concepção e implantação de modelos diversos daquele então existente. Nesse sentido: “Somente com a Revolução Francesa a mentalidade começou a ser revista, em decorrência da alteração institucional do controle do poder do Estado, que fora constituído dois séculos antes com caráter eminentemente personalista” (GABARDO, 2002, p. 31).

Ocorre com a Revolução Francesa o lançamento das bases do Estado Moderno, que pretende ser uma etapa superior ao velho e defasado Estado Absolutista.

A partir de então, o Estado passa a gozar de um status diferente, na medida em que é compelido a ser o provedor de determinadas condições indispensáveis para um maior equilíbrio social. Ao deixar de ser o nicho em tono do qual se acomodava um grupo, surgem
responsabilidade e deveres públicos, dentre os quais o fornecimento de serviços para a sociedade – ou pelo menos para parte dela (GABARDO, 2002).

Os injustificáveis e generosos privilégios outorgados aos funcionários do velho regime passam a ser objeto de intensa repulsa social, o que acaba por dar ensejo à formação de um corpo profissional ao qual foi incumbida a missão de cumprir os afazeres estatais: a burocracia, que, em última instância, representava uma reação ao centralismo absolutista (GABARDO, 2002). A relevância da formação desse grupo de pessoas é evidente, na medida em que se consubstancia em verdadeiro paradigma para a administração pública.

A outorga de maiores responsabilidades ao Estado faz com que este necessite municiar-se de meios para se desincumbir de seus novos afazeres. Portanto, um dos porquês da criação da burocracia é de ordem estritamente prática (ARAGÃO, 1997). O seguinte texto é bastante esclarecedor a esse respeito:

O crescimento da população obrigou-o a manter um sistema judicial maior, o crescimento das cidades e dos problemas sociais urbanos, um maior sistema de administração Municipal. Novas ou velhas, as funções governamentais eram desempenhadas cada vez mais por um único serviço nacional civil constituído de funcionários de carreira com regime de tempo integral, cujos últimos escalões eram promovidos e transferidos livremente pela autoridade central de cada país (HOBSBAWN, 1994, p. 214).

Assim, também em razão de uma contingência de ordem prática, surgem os primeiros corpos burocráticos que, aos poucos, começam a ganhar ares de um novo paradigma, cujas principais características são o racionalismo legal despersonalizador, não patrimonialista, no qual existe um grande controle a priori pelos procedimentos (GABARDO, 2002).

Foto: Pixabay

A burocracia, ao executar seus afazeres, deve irrestrita obediência aos preceitos legais que coordenam, passo a passo, suas atividades. O rigoroso regramento das atividades na administração pública é uma das características mais marcantes desse modelo, uma vez que a expedição de uma norma oriunda do poder legislativo legitima e fortalece o aparelho burocrático (SILVA, 2009). Logo, ao realizar atividades cotidianas devidamente disciplinadas pela legislação, a burocracia passa a exercer uma forma de dominação racional, ao qual inclusive o mandatário está submetido.

Max Weber foi quem primeiro falou da dominação legal exercida pelo quadro burocrático (GABARDO, 2002). Esta dominação, aliás, representou imenso avanço em direção a melhores patamares civilizatórios:

(…) a administração burocrática demonstra ser muito mais avançada, ao possibilitar o exercício impessoal, programado e continuado do poder, com uma competência delimitada pela lei, onde os deveres e os serviços são determinados em virtude de uma distribuição de funções, com prévia atribuição de poderes necessários ao seu exercício e fixação estrita dos meio coativos necessários á obediência (SILVA, 2009, p. 55).

Para a teoria weberiana, o aparato burocrático caracteriza-se pelos seguintes elementos: a) os funcionários são pessoalmente livres, na medida em que obedecem apenas determinações legais; b) nomeação por meios não eletivos, motivo pelo qual avulta em importância as seleções de funcionários; c) competências fixas; d) vínculo decorrente de um contrato; e) existência de preparação profissional; f) desempenho das atividades em caráter exclusivo ou como principal atividade; g) ser pago em pecúnia e ter renda fixa; h) ter possibilidade de ascender na carreira, em razão de sua qualificação ou produtividade; i) estar sujeito a regime disciplinar (GABARDO, p. 2002).

Logo, em face aos condicionantes históricos então existentes, é perfeitamente possível asseverar que a burocracia representou importante ocorrência, na medida em que marcou o início de um novo período da administração pública. Com a consolidação dela, ocorreu a superação do Estado Personalista, que deu lugar ao seu sucessor: o Estado Moderno. Curiosamente, a transposição de um pelo outro ocorreu de forma nebulosa no Brasil, onde surgiu fenômeno curioso e marcante para a história deste país, o bacharelismo (GABARDO, 2002).

O bacharelismo consistiu no domínio exercido pela administração sobre o sistema educacional, que formava bacharéis – daí o porquê do nome – dentre membros das classes mais abonadas, objetivando exclusivamente a formação de mão-de-obra, que, posteriormente, seria empregada pelo Estado. O resultado obtido por meio dessa sistemática foi o fortalecimento dos grupos detentores de poder e recursos financeiros.

A finalidade precípua dos cursos de nível superior era formar recursos humanos que tivessem plena sintonia ideológica com o Estado, tanto que durante o longo período que transcorreu entre o Império e a República Velha nada de novo surgiu, perpetuando, assim, a aridez na formação desses profissionais (RODRIGUES, 1993).

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Os elementos acima referidos gestaram um paradoxo, uma vez que a burocracia brasileira foi notoriamente irracional, além de estar grandemente ligada ao tradicionalismo patrimonialista.
A doutrina enfatiza que o “modelo burocrático” – consubstanciado no racionalismo –difere-se substancialmente do “estamento burocrático” – que é uma degeneração do primeiro. Enquanto aquele se constituiu no arcabouço teórico que fundamenta uma série de procedimentos no âmbito da administração pública, este é a deturpação deste.

Aliás, há quem diga que o estamento burocrático é o responsável por grande parte do preconceito existente em torno do modelo burocrático (GABARDO, 2002).

Um dos temores manifestados por Max Weber era de que o aparelho burocrático se transformasse no elemento indicador dos fins do Estado (GABARDO, 2002). Realmente, a pretendida neutralidade poderia muito bem ser apenas uma fachada:

Exaltar a eficiência do modelo burocrático não significa defender um formalismo irresponsável, que é incontestavelmente pernicioso. Como bem coloca a professora Katie Argüello, a maximização da racionalidade formal favorece os grupos econômicos dominantes, ‘pois a neutralidade é desmentida pelos fatos’. Isso tem que ser reconhecido, mas não pode servir de justificativa legitimatória para o avanço da desprocedimentalização (GABARDO, 2002, p. 39).

A burocracia, em seu escopo de adequar os meios para o alcance do fim desejado, acabou exacerbando nas formalidades: formalidades estas resistentes a mudanças. Com o exagerado apego aos regulamentos, por exemplo, tornava-se difícil o trato com o público, uma vez que havia um atendimento padrão por parte dos servidores ao invés de um atendimento personalizado, o que gerava insatisfação por parte dos contribuintes.

No tocante à prestação do serviço público, o excessivo rigorismo às rotinas e aos procedimentos – que deveriam ser garantia para a obtenção da finalidade pretendida – tornou-se um fardo pesado, acarretando lentidão e ineficiência.

Encontrar um marco teórico que propicie as condições necessárias para um correto funcionamento da administração pública é, certamente, tarefa das mais espinhosas. Compulsando a doutrina pertinente, vislumbra-se outro referencial que tenta explicar e influenciar o funcionamento da máquina estatal: a teoria da administração pública gerencial, que almeja introduzir novos elementos ao setor público.

 

*Artigo será publicado em partes, semanalmente, no site do Jornal Estado de Direito.

 

Diego Marques Gonçalves é Articulista do Estado de Direito –  Doutorando em Desenvolvimento Regional pela UNISC. Mestre em direitos sociais e políticas públicas pela UNISC. Especialista em direito constitucional aplicado pela UNIFRA. Bacharel em direito pela URCAMP. Atualmente, é professor da Universidade da Região da Campanha, lecionando as disciplinas de Direito Civil III (Teoria Geral dos Contratos), Direito Civil IV (Contratos em Espécie), Direito Administrativo I e Direito Administrativo II. Dedica-se ao estudo do direito civil, na parte atinente ao direito obrigacional e ao direito contratual, bem como ao direito administrativo e constitucional, principalmente na parte atinente ao controle da administração pública e aos direitos dos servidores.
Fábio Franzotti de Souza é Advogado, OAB/RS 101.097. Assessor Jurídico para Licitações, da Secretaria Municipal da Fazenda, da Prefeitura Municipal de Rosário do Sul, RS. Professor da Disciplina de Direito Administrativo em Curso Preparatório para Concursos. Pós-graduando em Direito Administrativo. 1º Tenente da Arma de Cavalaria do Exército Brasileiro, da Reserva.

 

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