Coluna Democracia e Política
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A tragédia do nosso tempo
A recente tragédia com o avião Lamia que transportava o time da Chapecoense é mais uma página da história dos acidentes. Sim, os acidentes tem história e a primeira vez que apareceu a ideia de “museu dos acidentes” foi na exposição “Ce qui arrive” realizada em Paris e organizada pelo arquiteto, urbanista e filósofo Paul Virilio. Reunindo toda sorte de catástrofes – acidentes naturais, industriais, poluição, naufrágios, descarrilamentos – Virilio chegou à conclusão de que os acidentes aéreos são a tragédia do nosso tempo. Segundo o autor de Guerra Pura, os aviões são das invenções humanas a que mais fascinam o homem, signo de riqueza, produto de uma civilização progressista e que agora cobram seu preço.
A nossa fatalidade não é o acidente de avião que faz vitimas e nos entristece, mas a fatalidade que significa viver dependendo da técnica. O acidentes do avião da empresa Lamia reforça a tese de Virilio de que devemos observar os acidentes com atenção, pesquisar sobre eles, do mais banal ao mais trágico, sem a ilusão de que poderemos ficar livres deles um dia mas cientes de que apenas podemos retardar seus efeitos. Por esta razão, questões como o que provocou o acidente, o que aconteceu antes da queda, como as falhas elétricas aconteceram e o que motivou decisões erradas do piloto precisam ser investigadas a exaustão.
“O acidente revela a substância” diz Virilio, recuperando a ideia de Aristóteles. A invenção do avião criou a catástrofe aérea que tem sua história e que não pode ser desprezada. A começar pela tragédia que marcou a história dos acidentes na era moderna: em maio de 1937, em Nova York, o incêndio do dirigível Hindemburg deixou 33 mortos. O acidente que trouxe o fim da era dos grandes zepelins e o início do transporte por avião é o antecedente mais remoto do acidente com o avião da Lamia. Virilio pergunta-se, lacônico: “O que acontece abruptamente ao homem frente às suas criações?” Resposta: a escalada do “acidente pelo acidente” que explica a sensação de perplexidade que resta, no final, ao vislumbrar-se pelas redes sociais as imagens gravadas por jogadores instantes antes da decolagem.
Com toda a tecnologia capaz prevenir colisões e situações de perigo, ainda assim somos incapazes de fazê-lo. Por isso a imagem do radar, imediatamente divulgada com o instante exato do desaparecimento do avião é o signo de nossos limites. Painéis eletrônicos, registros, caixas pretas tornam-se a assinatura da tragédia, seu registro mais detalhado. O cinema mostra isso a exaustão nos filmes de catástrofe aérea, na imagem daquele que vê no radar dois aviões em rota de colisão, sem possibilidade de reação. Para Virilio, desastre é algo que se escreve na tela dos computadores, sentencia.
Lógica do capital
O desastre foi ainda maior porque foi a prova do que a lógica do capital é que provoca acidentes. Ficou claro na transcrição dos diálogos entre o piloto do avião da chapecoense e a torre de comando que a responsabilidade da tragédia foi do piloto. Numa situação inimaginável onde o proprietário da empresa do avião da Lamia também era o piloto do avião, ele arriscou, em nome da minimização dos custos, exatamente como ordena o capital, uma viagem no limite do combustível. Porque é inimaginável esta situação, não é possível se admitir tamanha atrocidade de responsabilidades: é claro que, como piloto-proprietário, suas decisões poderiam ser regidas pela lei do mercado e não pelo profissionalismo; é claro que entre os imperativos de segurança e o imperativo do capital, para um piloto-proprietário, inconscientemente talvez, os imperativos de mercado venham em primeiro lugar. Falhou o Estado, tanto no Brasil como nos demais países onde o avião da Lamia operava, o cuidado em proibir que o piloto fosse o proprietário da aeronave que dirige. Pois somente na condição de piloto-proprietário é que poderiam entrar em suspensão as regras mínimas de segurança, em nome de outra coisa, o capital. Contra todas as regras da segurança, que implicavam em disponibilidade de combustível e plano alternativo de voo, o piloto arriscou em nome do lucro e perdeu a vida por uma opção que só existe para o capital: economizar a custa do risco de vidas humanas. Entendem agora porque não é possível deixar o capital livre para guiar políticas públicas? Entendem agora porque não é possível deixar, como faz o governo Temer e Sartori, deixar o capitalismo dar as linhas da cultura das organizações públicas? O acidente prova: o capital mata.
Acidente semelhante
Acidente muito semelhante ao ocorrido com o avião da Lamia foi registrado por Virilio como um dos piores do século XX. Em 4 de outubro de 1992, em Amsterdã, um avião de carga chocou-se contra um prédio residencial. Morreram 43 pessoas. A imagem do prédio, com sua massa de concreto, contrasta com o efeito produzido pelo impacto do bólido: somos confrontados com o fato de que mesmo as grandes obras de engenharia são frágeis frente aos desastres aéreos. Mas nada se compara com o acidente do Lamia, que em plena floresta, mostra ainda mais o abandono da tecnologia em plena vegetação. As primeiras imagens eram também de cenas de destroços quase inacessíveis, vistos ao longe, e do mesmo modo que em outra tragédia, a cauda do avião da TAM nas imagens dos telejornais anunciava a catástrofe.
Para Virilio, ainda há algo mais paradoxal, a redução do limite entre acidente e atentado como ficou evidente nos ataques de 11 de setembro de 2001, em Nova York. O avião é uma arma fatal para seus tripulantes, mas é também fatal nas mãos de terroristas. Guardadas as proporções, acidente e atentado colaboram na mentalidade do medo. Para Virilio, chegará um dia em que o progresso do conhecimento se tornará intolerável devido a seus efeitos. Virilio lembra Friedrich Nietzsche, em seu ensaio “O Nascimento da Tragédia”, escrito nos anos seguintes à guerra franco-prussiana de 1870: “… uma cultura baseada nos princípios da ciência deve ser destruída quando começa a crescer de maneira ilógica, ou seja, a se omitir frente às suas próprias conseqüências.”
Poder transformado em causa de ruína
Tragédias como a do avião da Lamia nos perturbam porque suspendem o estado de civilização como conhecemos, fazem desaparecer todo o aspecto positivo do conhecimento. Diz Henri Atlan, em A Ciência é Inumana? que” o poder humano, aumentado excessivamente, transforma-se em causa de ruína”. Todos viajamos de avião. Deveríamos pensar em nossos problemas no virar da esquina?
Para as famílias das vítimas, confrontadas com a tecnologia à disposição das autoridades, vale a declaração de Madame Swetchine, no século XIX, citada por Vitor Hugo: “É impressionante aquilo que não podem fazer aqueles que tudo podem fazer”, aforisma que resume cada nova catástrofe aérea. As investigações da descoberta da causa devem nos tranquilizar ou, ao contrário, em relação ao caos aéreo, devemos, agora sim, nos assustar? Estado e empresas tem responsabilidades e as perguntas que restam são sobre a política internacional de segurança no espaço aéreo atual: o estado está cumprindo seu papel de fiscalizador da segurança da tecnologia das empresas aéreas? Que lei impede a confusão de interesses entre propriedade de empresas e responsáveis técnicos, como no caso, o piloto? A tragédia do avião da Lamia apenas segue uma linha que vem do acidente da TAM e de outras empresas, mas tem um ingrediente novo, a total omissão do estado entre operadores de voo e proprietários? Por isso a pergunta: qual novo erro (legal, técnico, administrativo) nos aguarda no próximo voo? É provável que medidas de segurança sejam adotadas nas viagens internacionais. Ainda é pouco. Como diz a máxima popular, o pior geralmente acontece.