O que eu aprendi com o Jardim Guapira I (parte 1)

Jardim Guapira I é um bairro da zona norte de São Paulo, ali para os lados do Tremembé, nascido junto com a Constituição Federal, em 1988, como um loteamento irregular, tipo de assentamento urbano que se forma pela iniciativa de um loteador, proprietário da gleba ou não, que vende lotes sem a devida regularidade fundiária. Vende sem poder vender, vende à margem da lei. Vende um produto com defeitos – reparáveis, irreparáveis, evidentes, escamoteados. Vende como pronto um produto inacabado. Vende como sonho aquilo que perturbará o sono de seu comprador por anos, talvez décadas, talvez uma vida toda. Chamo aqui de regularidade fundiária aquilo que empacota outras dimensões: urbanística, ambiental, jurídica. Aquilo que tem de estar certo, como manda a lei, para que se possa dormir em paz.

O loteamento irregular foi, na segunda metade do século XX, um dos principais modos de morar encontrados pelo trabalhador urbano, migrante autoempreendedor com pouco dinheiro, muita gana e quase nenhuma alternativa de habitação. O morador nem sempre comprou enganado; simplesmente comprou o que tinha disponível; comprou com a mesma fé cega que o fez entrar num ônibus, num pau-de-arara, e seguir por uma BR empoeirada em direção ao desconhecido. O morador comprou seu sonho e o assentou num futuro melhor. Tudo isso ele fez sem o Estado, sem pedir a bênção, geralmente sem esperar nada, talvez apenas confiando que Aquele que não ajuda, naturalmente também não deve atrapalhar.

Nos últimos dias de 1979, foi editada a Lei 6.766, do parcelamento do solo urbano, também conhecida pelos mais antigos como Lei Lehmann, sobrenome do autor do projeto de lei que a originou. Foi essa, e não a produção ou o estímulo à produção massiva de lotes urbanizados e de casas acessíveis aos mais pobres, a resposta dada pelo Estado, à época, ao problema dos loteamentos irregulares, que se espalhavam nas cidades ao mesmo tempo em que as espalhavam, numa expansão horizontal bem além do horizonte.

A Lei Lehmann estabeleceu padrões para o parcelamento urbano, regras para aprovação, para o registro e para a comercialização dos lotes. Tipificou como crime contra a Administração Pública o ato de praticar parcelamento irregular do solo em área urbana, com pena de reclusão, inclusive. E disse ao município qual deveria ser sua conduta, quando tivesse notícia de um parcelamento irregular do solo em seu território. Imprimiu a sistemática de suspender o pagamento de parcelas pelo comprador diretamente ao vendedor no caso de irregularidade, podendo este levantar o valor devido quando saneasse as faltas, o que também poderia ser feito pelo município, se este assumisse a obrigação do loteador faltoso e omisso.

O Jardim Guapira I nasceu em terra da Santa Casa de Misecórdia, havida por testamento de um prevenido que – largando, como todos largaremos, o que tinha aqui – talvez esperasse receber acolá um pedaço de céu. Desse pedaço de chão doado, cuidou a pedido da dona Santa Casa um fulano, que – nada temente a Deus – parcelou a área sem a sua permissão e vendeu os lotes a incautos compradores com urgência de morar. A dona ficou sabendo e, dentro da lei, ingressou com uma ação de reintegração de posse. A Prefeitura ficou sabendo e, dentro da lei, organizou o recebimento das prestações devidas. Os moradores, fora da lei, ficaram entre a cruz e a espada esperando por um milagre.

Como a lei é a lei, a vida é a vida, e o milagre não lida bem com tanta confusão, a Prefeitura outra vez interviu; sacou seu poder de Império e desapropriou a área para implantação de programa habitacional. Isso em 1991. A Prefeitura dormiu o sono dos justos. Os moradores sonharam com a propriedade, envolvendo-a com tijolos, revestindo-a com azulejos, enfeitando-a com jardins, protegendo-a com muros. Fizeram-se lares ali, tantos que deles se fez uma comunidade, na área desapropriada, mas não regularizada.

Dez anos depois, em 2001, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Cidade, e a Medida Provisória 2.220 disciplinou o instituto (constitucional) da concessão de uso especial para fins de moradia, direito subjetivo do morador que ocupa área pública, sob determinadas condições. A grande onda de regularização fundiária que cobriu o Brasil, depois disso, botou em pauta a função social da propriedade urbana, e, com ela, a função social da propriedade pública. Nós, seus operadores, empunhamos pranchetas, fomos a campo, para conceder terra pública a quem de direito; para finalmente fazer o bem.

Mas na prática, a realidade é diferente. A concessão não é propriedade; é direito real, coisa difícil de entender, mais difícil ainda de explicar: o Poder Público fica com a propriedade, os moradores com o direito de usar, gozar e dispor, mas não plenamente. No Jardim Guapira I, já em 2008, os moradores sentiam-se donos e queriam dispor de tudo o que, para eles, era rigorosamente seu, legitimamente seu, porque andavam imbuídos de uma ideia de justiça fundiária informada pelo dia a dia, pelas relações de fato.

Nós, por outro lado, andávamos imbuídos de uma ideia de justiça fundiária informada pelo um para cada um, no máximo; pela finalidade de moradia, sempre; pelo grupal, coletivo, quem sabe; pelo espírito de titular sem dilapidar o patrimônio público – que continuaria preservado, tutelado e gerido (?) pelo Poder Público, esse guardião de direitos. Nós estávamos tão imbuídos que esquecemos de incluir no debate os outros sujeitos dessa história, os mais legítimos sujeitos, talvez os únicos, seus protagonistas. Esquecemos que ali no Estatuto mora a gestão democrática e que já não era, mais ainda agora, sem tempo de acordá-la.

***

“O que eu aprendi com o Jardim Guapira I” nasceu da experiência como coordenadora do programa de regularização de áreas públicas da Prefeitura de São Paulo, função que exerci entre os anos de 2006 a 2009. Enquanto escrevia este texto, este texto me escrevia, e eu percebi que o ensinamento do Jardim Guapira I não caberia em uma única coluna. Fui compelida a contar sua história dentro de uma história maior, e a prometer contar o que ainda não contei, adiante, em outras partes.

Ana Paula Bruno é Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Analista de Infraestrutura do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Gerente de Regularização Fundiária Urbana da Secretaria Nacional de Acessibilidade e Programas Urbanos do Ministério das Cidades. Professora de graduação e de pós-graduação. E-mail: apbruno@yahoo.com.br

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Comente

  1. maria eli colloca bruno

    muito bom o texto Ana Paula . com tão pouca idade você já tem uma grande experiência. Isso me orgulha muito

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  2. Isabel

    Aguardamos ansiosamente a continuação. Seria interessante tratar da questão ambiental do loteamento irregular pq se trata muito do direito das pessoas que residem nestas áreas à moradia e pouco do direito das pessoas em geral a um meio ambiente sadio. Não sei se neste loteamento especificamente houveram problemas ambientais (poluição de córrego, acúmulo de lixo, corte de árvores)

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Comentários

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