O novo Direito administrativo brasileiro. O estado, as agências e o terceiro setor.

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira (Organizadora). O Novo Direito Administrativo Brasileiro. O estado, as Agências e o Terceiro Setor.  Belo Horizonte: Editora Forum, 2003, 368 p.

             Uma das constatações mais evidentes durante a década de 1990 que inaugura um rico debate em torno da questão do ensino do Direito e do esgotamento de seu modelo de organização, foi a dupla crise que alcançou a atividade do jurista e do operador do Direito.

            De uma lado, uma crise de legitimidade para atuar como formuladores e mediadores eficazes para a solução de tensões decorrentes de uma explosividade de conflitos sem precedentes, gerando uma perda de confiança em relação à função sociais desses operadores, despreparados para sequer compreender a natureza dos novos conflitos.

            De outro lado, uma crise de conhecimento, traduzida na perda de confiança epistemológica acerca dos paradigmas de sua formação, excessivamente legalista e formal, que se manifestou no ensino jurídico.

            A melhor tradução desse processo havia sido formulada, sobretudo no segundo caso, pelo Professor Roberto Lyra Filho, da UnB, ao falar de “um direito que se ensina errado”, querendo aludir a um duplo aspecto por ele considerado. Vale dizer, “como ensino do Direito em forma errada e como errada concepção do Direito que se ensina”. Daí ele lembrar, muito a propósito, que “se o primeiro aspecto se refere a um vício de metodologia; o segundo, à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar, ambos permanecem vinculados, uma vez que não se pode ensinar bem o Direito errado; e o Direito, que se entende mal, determina, com esta distorção, os defeitos da pedagogia” (LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se Ensina Errado. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da UnB, 1980).

            Desde então, avançou-se muito no Brasil, em direção a uma profunda reforma do ensino do Direito, cujas diretrizes, em confrontar os obstáculos epistemológicos configurados no exacerbado positivismo do antigo modelo de formação, procuraram também liberar o protagonismo de professores e alunos convocando a sua melhor disposição para interpelar e abrir-se ao novo.

            Na elegante sugestão do jurista espanhol Juan Ramón Capella, tratou-se de empreender uma “aprendizagedelaprendizage”, antes de tudo, uma contraposição à aprendizagem de simples manutenção, a aprendizagem renovadora, algo que se constitua mais que mera atualização, mas um novo modo a aprender a aprender. Um processo, portanto, atento ao observar-se no ato de aprender, examinando cuidadosamente as habilidades que se adquirem paulatinamente, e do despertar da própria sensibilidade intelectual e moral.

            O processo de reforma do ensino, consumado ao final da década de 1990, deu ensejo a essa virada pedagógica, conduzida pela disposição mobilizadora de estudantes e professores que passaram a criar novos espaços, novas formas, novos métodos de produção e de transmissão de conhecimentos, re-significando totalmente os conteúdos e os sentidos da educação jurídica.

            Um sem-número de iniciativas e de experiências têm se revelado exemplares, nos melhores cursos do País e vêm se configurando como efeito demonstração das amplas possibilidades de renovação do ensino do Direito. A Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, tem se mostrado pródiga nesse sentido. Se em sua origem experimental contribuiu fortemente para demarcar um pioneirismo pedagógico, sob o estímulo das diretrizes curriculares dessa conjuntura, desde a normativa de 1994, amplificou mais ainda o processo criativo que é uma de suas marcas.

            Assim, multiplicaram-se os grupos de extensão, de estudos e pesquisas, associando o desempenho cooperativo de professores e de estudantes; desenvolveram-se novas metodologias para a aprendizagem com a combinação de ciência e arte, principalmente o teatro, tanto como estratégia pedagógica para o estudo, por exemplo, da Filosofia do Direito, quanto para o desenvolvimento da sensibilidade, enquanto disposição humanizadora da habilidade de saber se colocar no lugar do outro. Todas essas experiências vêm sendo documentadas num movimento editorial muito expressivo com relevo para a produção discente na graduação (Coleção Iniciação Científica), na pós-graduação (Coleção Estudos de Direito Público) e por impulsos de Grupos de Pesquisa, um qualificado acervo, a exemplo do Grupo que coordeno O Direito Achado na Rua(Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), e das Séries ou Coleções Observatório da Constituição e da Democracia, Coleção Direito Vivo e Série O Direito Achado na Rua, esta com nove volumes publicados e com um décimo volume em preparo.

            O livro ora Lido para Você, O Novo Direito Administrativo Brasileiro, é bem a expressão desse movimento, tal como intitulei no Prefácio que fiz, uma Disposição para interpelar o novo. Como explica a Professora Cláudia Fernanda de Oliveira Pereira, que o organiza e apresenta, ele é a tradução desse processo qualificado de ampliação do espaço docente, revitalizando a experiência acadêmica num comprometimento não demitido de professores e alunos. Por isso ele representa também uma recriação dos valores curriculares, combinando a dinâmica do desenvolvimento programático das matérias e disciplinas (Direito Administrativo) em classe e extra-classe (grupos de estudos) numa incorporação das iniciativas dos estudantes pontuando a sua escolha autônoma de atividades complementares que se integram a sua formação.

            Daí esta tremenda mobilização, engajando outros professores, num processo de reflexão solidária e os próprios alunos, amplificando ao limite, a pauta de suas leituras, já incontidas nas tarefas da rotina do aprendizado mecânico, de mera reprodução.

            Na raiz dessa mobilização, encontra-se, naturalmente, para recuperar o dizer de J. J. Gomes Canotilho, o “impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críticas da sociedade”, em franca e plural circulação nos espaços de reflexão da Faculdade de Direito da UnB. Aplicado ao Direito Administrativo, este impulso tem o mesmo sentido que lhe atribuía o grande jurista português, referindo-se ao Direito Constitucional: impedir que ele “reste definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político”.

            Os temas, problemas, conceitos, desenvolvidos nas várias abordagens que compões “O Novo Direito Administrativo Brasileiro”, revelam disposição interpelante em condições de atualizar um campo até bem pouco tempo praticamente estagnado, limitado em suas possibilidades de estabelecer novos modos para compreender e realizar, emancipatoriamente, suas regras e princípiosjurídicos.

            É certo que, desde as formulações mais instigantes e com essa disposição para interpelar que os Bandeira de Melo (Oswaldo Aranha e Celso Antônio),especialmente Celso, guindado a um protagonismo de vanguarda no campo, superando o duplo domínio temático-autoral e conformista de décadas de autor exclusivo preservando o tema para o status quo, dos compêndios de Hely Lopes Meirelles, o Direito Administrativo mais não foi que uma espécie de manual de uso para o confinamento das práticas de gestão, alienadas das expectativas de cidadania que o social  vem gerando.

            Algo que possa resgatar, do pensamento crítico de Adornoe de Benjamin, “o potencial utópico e crítico inerente à cultura” para com Boaventura de Sousa Santos, repensar-se e encontrar razões e caminhos sobre por que e como pensar as sociedades dos nossos dias e a nossa existência pessoal e organizada nelas” para, na interação racional entre sociedade e estado, no campo de que trata o livro, orientar a reflexão, diz Maria Tereza Fonseca Dias, rumo ao direito administrativo da cidadania e da inclusão social” (DIAS, Maria Tereza Fonseca. Rumo ao Direito Administrativo da Cidadania e da Inclusão Social. In, PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca.Cidadania e Inclusão Social. Estudos em Homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Editora Forum, 2008).

            Isso significa, em boa medida, trazer o Direito Administrativo para uma perspectiva que dê conta de articular as dimensões de integração entre sociedade e estado, para aferir os circuitos de cidadania ativa que vem sendo o fautor de uma demarcação de novas fronteiras nesse campo, designando o que desde a Reforma Bresser Pereira (Governo Fernand Henrique) vem sendo denominado âmbito público não estatal.

            Para Boaventura de Sousa Santos (Reinventar a Democracia. Lisboa: Edição Gradiva/Fundação Mário Soares,  1998), âmbito no qual, “cabendo ao Estado mais funções de coordenação do que funções de produção directa do bem-estar, o controle da vinculação da obtenção de recursos a destinações específicas por via dos mecanismos da democracia representativa torna-se virtualmente impossível”. Daí, diz esse autor, “a necessidade de a completar com mecanismos de democracia participativa”. E, ainda quando se recoloquem tensões em face da disputa por exercício regulatório, nesses dois planos democráticos, cuidar de defender e de intensificar “a cidadania activa, sob pena”, dados os défices democráticos como ocorre neste momento no Brasil, de termos a gestão pública e a regulação orientada pelo Direito Administrativo, “ser ocupada e colonizada pelos fascismos societais”.

            A obra acolhe um rol respeitável de pesquisadores assim distribuídos: Parte I – Estado: Arqueologia de uma Distinção: o Público e o Privado na Experiência Histórica do Direito, Cristiano Paixão Araújo Pinto; O Direito Administrativo e a Reforma do Aparelho do Estado: uma Visão Autopoiética, Guilherme Cintra Guimarães; Estado e Direito – Anotações sobre Liberdade e Tutela, Adriano Chaves Valente; O Estado Brasileiro Contemporâneo, Guilherme Henrique de La Rocque Almeida; O Modelo Estatal do Neoliberalismo: um Estudo Crítico Baseado na Finalidade Precípua do Estado Moderno, Fabrício Santos Barbacena. Parte II – Agências: Agências: sua Introdução no Modelo Jurídico-Administrativo Brasileiro, Márcio Iorio Aranha; As Agências Reguladoras no Contexto do Estado Democrático de Direito, Marcela Campos Gomes Fernandes; Autorização do Serviço de Telecomunicações, Adriana Macedo Marques; Governo Eletrônico e Teoria dos Serviços Públicos, Renato Bigliassi; Estudo sobre a Criação da Agência Nacional de Aviação Civil, Emmânuel Lopes Tobias. Parte III – Terceiro Setor: Terceiro Setor: Conceituação e Observância dos Princípios Constitucionais Aplicáveis ~a Administração Pública, José Eduardo Sabo Paes; O Terceiro Setor no Contexto da Democracia e da Reforma Administrativa do Aparelho do Estado, Rochele Pestana Ribeiro;  O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e as Organizações Sociais: Críticas ao Modelo de Reforma do Estado Brasileiro, Michelle Tonon Barbado; Os Novos Caminhos do Direito Administrativo no Contexto Evolutivo do Estado de Direito, Carlos Eduardo Vieira de Carvalho.

            Em O Novo Direito Administrativo Brasileiro, com o arranque analítico caracterizado pela organicidade acadêmica aqui descrita, o grupo de Autores e Autoras reúne essa reflexão de vanguarda, distribuída nos elementos temáticos que balizam a obra, âmbitos interpelantes ao velho Direito e designativos do Novo Direito Administrativo.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

 

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