O novo dilema dos Tribunais de Contas: entre fiscalizar e ordenar

Coluna Democracia e Política

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Foto: TCE-RS

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Importante reflexão

No artigo da semana passada, adiantei aos leitores do Estado de Direto, a análise de uma seção de meu estudo “O Tribunal de Contas e a Educação Municipal”, a ser publicado no mês de julho, onde apresento minhas reflexões sobre a analise do TCE/RS sobre a educação municipal. Nessa linha, adianto também o capítulo de considerações finais com o objetivo de marcar a importância de uma reflexão sobre aquele estudo.

São inúmeras as razões que aponto aqui pelas quais não concordo com as conclusões auditores do TCE/RS. Vejamos por exemplo, em outro ponto, o que os auditores expressam no item 7 do seu estudo.  Entendo que os indicadores adotados (Ideb, ANA e distorção idade série) não são suficientes para descrever a heterogênea cultura escolar e o estudo apresenta conclusões que para mim são contraditórias com a realidade socioeconômica das famílias dos alunos. A ênfase dos autores nas ”evidências cientificas” (p. 251) que as estatísticas da realidade revelam como negativa ocultam o esforço do professor em defesa de uma educação de qualidade. Há um desprezo de aspectos que poderiam ser considerados como positivos, seja nas respostas feitas pela Secretaria de Educação à questionamentos do TCE/RS feitas, retirados das experiências localizadas de professores em situação de ensino, de estudos acadêmicos ou de relatos de fiscalização da Câmara Municipal de Porto Alegre.

Superexploração

A crítica feita pelos técnicos do TCE/RS ao desvio de função dos professores (p.252), já explicada pela própria SMED como uma adequação necessária, não deixa opção de trabalho para a secretaria e nem para os professores afastados de forma justificada. O relatório quer apenas a redução do custo e economia sem pesar fatores humanos e profissionais como aponta no Item b (idem).

A introdução da variável “esforço docente” é para mim um substituto dourado da superexploração do trabalho, que visa ampliar a intensidade do trabalho do professor como se este já não estivesse sendo realizado no seu limite, já que sugere que “o esforço docente na capital gaúcha ainda está bem abaixo do esforço nas duas maiores metrópoles brasileiras” (p. 252).  Não é surpreende um órgão externo, que constato pela leitura de seu estudo que tem pouca pesquisa de campo ou uso dos testemunhos do público docente alvo, os professores, seja capaz de avaliar o quanto se “esforça” um professor?

Foto: Agência Brasil

Foto: Agência Brasil

Discordo também quanto a conclusão dos autores de que o perfil socioeconômico dos alunos matriculados nas escolas municipais seja mais favorável do que outras, conforme testemunha a ex-secretária de educação. Não parece suficiente que o indicador de “penúltima capital no ranking de domicílios com rendimento domiciliar per capita de meio salário mínimo “ (item b, p. 253) seja um critério de favorecimento de classe.

As considerações quanto a nota atingida pelas escolas municipais no Ideb, para a secretária municipal de educação, apresenta uma lenta evolução positiva, o que contradiz a afirmação dos autores do estudo do TCE de que se “distanciou progressivamente desse atingimento durante o período” (p. 254). O TCE/RS critica as escolas municipais porque elas não atingiram um limite proposto porque desconsidera que houve uma evolução, isto é, significa que desconsidera o esforço de professores ao longo de anos. A crítica é relativa também a própria ideia de ranking como nefasto a organização didática de ensino, ao afetar programas pedagógicos e a transformar-se no fim em si mesmo do processo didático” (item b, p. 254), crítica extensiva ao uso da Avaliação Nacional de Alfabetização.

Performance

A constatação dos autores do estudo no item 6 quanto a qualidade do professor (p.255), sugere a necessidade de outros instrumentos para avaliar competências além de “apenas provas objetivas e títulos”. Isso significa que os auditores possuem um modelo de professor “adequado” para o tipo de educação que propõem. Eles sugerem uma alteração no processo de seleção que avalio como perigosa porque sugere subterraneamente provas práticas que ficarão sob a responsabilidade de avaliadores. Mas que tipo de avaliadores e sob qual  prisma e critérios de avaliação? Não descarto, depois da critica do TCE/RS, o poder executivo não termine por viabilizar a contratação, por via de parcerias-público privadas, de instituições da iniciativa privada para realizar ou até a indicação de CCs de partido para procederem processos de avaliação. O perigo é a subjetivação do processo de seleção que bancas ideologicamente compostas possam efetuar, as perseguições sem motivo, etc. É importante salientar que as conclusões dos autores quanto ao tipo de acompanhamento que deve ter o professor ingressante se dão a partir de uma “revisão de literatura” que não apresenta ao leitor correntes, autores, escolhas e opções: novamente apresenta definições taxativas sob a qual o texto não permite ao leitor construir sua visão.

Por todo o lado, os autores enfatizam a ideologia da “performance“ docente como pedra filosofal de todo o processo de ensino. Nesse sentido, dentro da lógica capitalista, propõem políticas de incentivos – “política de bonificação” – cujo resultado, em meu entendimento, é a uberificação da escola. Essa performance é exigida também dos diretores (subitem 6.2, p. 257) para quem os auditores reservam papel especial e onde o pré-requisito técnico suposto é estar alinhado à política do rendimento da secretaria.

PORTO ALEGRE, RS, BRASIL 26.06.2015: O governador José Ivo Sartori participou nesta sexta-feira (26), da sessão Plenária Especial em homenagem aos 80 anos do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS). O evento, na sede da instituição, reuniu autoridades, deputados, secretários, prefeitos e convidados. Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

PORTO ALEGRE, RS, BRASIL 26.06.2015: O governador José Ivo Sartori participou nesta sexta-feira (26), da sessão Plenária Especial em homenagem aos 80 anos do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS). O evento, na sede da instituição, reuniu autoridades, deputados, secretários, prefeitos e convidados. Foto: Luiz Chaves/Palácio Piratini

Violência e transformação

A dissociação do tema da violência como determinante do clima escolar, feita pelos auditores, principalmente em se tratando de escolas de periferia, merece uma atenção especial. Ela revela a distância que estão os auditores da realidade de ensino. O Relatório da Frente Parlamentar Contra a Violência nas Escolas fez um raio x do tema e apontou para o fato de que, exatamente por estarem as EMEF em bairros pobres e de periferia, “o tráfico de drogas domina a rotina e dita as regras, agressões físicas, verbais e psicológicas que fazem parte do dia a dia de professores, estudantes, funcionários e familiares”. Para os auditores, a violência repercute apenas porque gera indisciplina, isto é, a voz que descontextualiza o problema faz parte do problema da interpretação dele.

O que falta ao relatório? A visão das teorias que veem a escola como espaço de luta pela transformação da sociedade e que servem de base para o trabalho pedagógico. Esta perspectiva de entendimento do campo educacional tem dificuldades de diálogo com a tradição de pesquisas baseadas em surveys educacionais.  A avaliação em larga escala, afirma Alicia Bonamino em sua obra Tempos de avaliação educacional (Rio de Janeiro, Quartet, 2002), produziu “um deslocamento da preocupação com o impacto das condições sociais do aluno sobre a produção, o acesso e a apropriação do conhecimento escolar, na direção da focalização dos professores e diretores, das instalações, equipamentos e materiais escolares” (p. 173). A autora aponta, analisando o caso do SAEB, que tais processos de avaliações mudaram sua orientação a partir de 1996, “a mudança nos padrões de gestão se materializou no deslocamento do MEC de seu tradicional papel de órgão executivo para atividades normativas e de fiscalização“ (p.177). Ela envolve o estabelecimento de avaliação por competências cujo significado não foi devidamente apurado “dificultando uma definição mais conclusiva…[constituindo-se] uma noção adstrita aos mundos do trabalho, da formação profissional” (p. 179).

Negação do pensamento crítico

Nesse sentido,  Martha Nussbaum, em “Sem fins lucrativos: porque a democracia precisa das humanidades”(São Paulo, Martins Fontes, 2015), sugere que, frente a todas as tentativas do estudo do TCE/RS  de reduzir a educação a um “processo de capacitação para o negócio”, essa instrumentalização econômica que fazem os auditores dos dados educacionais, ao contrário do que afirmam, de que serve para subsidiar uma formação educativa de qualidade, ao contrário, impõe sistematicamente a submissão da rede de ensino a indicadores que seguem a lógica do negócio. Porque é grave o estudo do TCE/RS? Porque ameaça os fundamentos da democracia escolar, “o apego aos valores do pluralismo, das liberdades civis, etc”, constituída como a apologia de uma educação produtivista, utilitária, típica do neoliberalismo, ao contrário do pensamento dos educadores, generalista em suas criticas.

O estudo do TCE/RS é uma proposta que termina por colocar a resposta as avaliações como finalidade do processo de ensino, negando o pensamento crítico. Essa autoridade inquestionável que exige submissão à pressão homogeneizadora dos índices de desempenho, nega a criação, a imaginação, o valor das demais disciplinas como artes, que perdem espaço para disciplinas como matemática e língua portuguesa. Pior, elas negam ao professor o direito ao uso do tempo e do espaço, das brincadeiras como espaço pedagógico.

Explorar a educação é, para o TCE/RS, parte integrante de seu processo de modernização, novos horizontes no campo da auditoria de desempenho. É a forma do relacionamento do TCE/RS com as demais instituições que está mudando, ele ambiciona afetar a organização interna das demais instituições. O que se está esquecendo neste processo: ”o reconhecimento do valor das auditorias como incremento de informação e análise para as instâncias que farão uso delas”, afirma Speack (p.211).

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Assumir e refletir

O TCE/RS deve assumir que o que está fazendo não é fiscalização, é interferência. É preciso questionar os significados da relação TCE/RS com o sistema municipal de educação: o TCE/RS está se transformando numa instância para-judicial, com independência e autonomia alienadas das demais instituições judiciárias. Ao contrário, na sua origem, sua finalidade é a assessoria às demais instituições, o que significa, que a instância de decisão é a SMED e a direção das escolas e não o contrário. O agente fiscalizador último é o público, que pode avaliar se as escolas estão cumprindo o seu papel. O TCE/RS não quer apenas avaliar contas, eles quer julgar políticas públicas. Isso é um problema.

O TCE/RS deverá refletir se tem condições de elaborar estudos sobre políticas públicas tão diversas e com tão precária revisão de literatura e os órgãos atingidos, o valor o espaço que dão a eles. A questão é que, se o TCE/RS apresenta um conflito em suas atribuições e funções, ele não deveria concentrar-se apenas na tarefa de fiscalização de recursos, na impossibilidade de ter qualificação que a área exige?  A questão é definir qual é o papel da fiscalização externa que o TCE/RS realiza na educação e sua relação com os controles internos da SMED e do sistema municipal de ensino. Não é possível ao TCE/RS dar-se o direito de dizer como devem ser os processos educacionais porque esta é uma atribuição que cabe aos professores. Não lhe cabe a escolha do Ideb como critério de avaliação do rendimento ou definir um único critério de mensuração da eficácia escolar, que não pode ser algo mensurável apenas quantitativamente, como apontam s profissionais de ensino.

O desafio colocado pelo relatório do TCE/RS é exatamente este: ele terá de discutir se continuará adotando, para cumprir seus objetivos, um sistema de controle gerencial ou levará em consideração o que as escolas fazem de melhor? Terá de optar entre avaliações quantitativas ou qualitativas?  É preciso parar e discutir as bases do processo de avaliação do TCE/RS para que ambas instituições possam fazer o que sabem fazer melhor, mas ao mesmo tempo, de forma democrática, construir um sistema de avaliação conjunta voltado para o bem público. Se o estudo do TCE/RS apresenta estatísticas e econometria como resposta, é pergunta que esconde é: como fazer para adaptar o sistema de ensino ao novo projeto ultraliberal?

Conclusão

A resposta de meu estudo é que a pergunta formulada está na ordem do dia. Se é isto que pregam seus autores, é preciso injetar algo de subversivo no estudo do TCE/RS. Nesse sentido, é preciso voltar ao ponto apenas indicado no interior deste estudo: se a visão do TCE/RS e a dos atores do sistema municipal de ensino divergem entre si é porque constituem ambas os dois lados de uma visão, que o filósofo esloveno Slavoj Zizek denominou de lacuna paralática. A aposta é que é preciso reintroduzir um pouco de materialismo histórico no estudo do TCE/RS: é preciso apontar que o que falta no estudo dos auditores é… a boa e velha dialética materialista, é acusar o estudo dos auditores de utilizarem a econometria para banir o verdadeiro problema.

A crise da esquerda deve-se também as derrotas no plano da argumentação. A ausência da interpretação dialética no estudo do TCE/RS é que torna seu estudo tão embaraçoso, ele serve apenas para revelar paixão dos técnicos do TCE/RS pelo seus estudos “científicos”, “repletos de dados” mas no fundo é incapaz de perceber aspectos de sua incoerência para explicar a realidade. O problema não é que haja uma analogia estrutural entre a visão de professores e profissionais de ensino que contradiz as previsões dos técnicos do TCE/RS, não se trata de que as categorias neoliberais presentes no estudo são legítimas ou não, mas se trata justamente de questioná-las, mostrar que o foco do processo educativo como forma de trabalho é outro no sistema municipal, não é o foco das estatísticas, é o foco pedagógico. Os dados falham porque tentam falar de indivíduos isolados tomados como objetos, mas o problema é justamente outro,  são indivíduos – professores, alunos, direções – que precisam se relacionar, não são objetos, são sujeitos. Se trata de entender como a ordem social e cultural da realidade escolar é estruturada para manter a sanidade do sistema educativo em tempos de crise. Porque, se somos apenas dados, ficaremos loucos.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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