O novo art. 225 do Código Penal e a questão do Direito Intertemporal

Rômulo de Andrade Moreira

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Foto: Pixabay

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A Lei nº. 13.718/18 deu nova redação ao art. 225 do Código Penal, alterando o seu caput e revogando o parágrafo único. A redação anterior estabelecia que os crimes contra a dignidade sexual, em regra, eram de ação penal pública condicionada à representação, salvo quando a vítima fosse menor de dezoito anos, ou pessoa vulnerável, casos nos quais a ação penal seria pública incondicionada. Agora, com a nova redação, independentemente da idade ou condição do ofendido, todos os crimes tipificados nos Capítulos I e II do Título VI do Código Penal são de ação penal pública incondicionada.                             

Neste artigo abordarei apenas a questão do Direito Intertemporal, ou seja, a aplicação do novo dispositivo às infrações penais praticadas anteriormente, cometidas ainda na vigência do antigo art. 225.

Como se sabe há dois princípios que regem o Direito Intertemporal das leis em matéria criminal: o primeiro segundo o qual a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu nos termos do art. 2°., parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal. Este princípio se insere no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna e tem aplicação imediata (§ 1°. do mesmo art. 5°.), além do que, como garantia e direito fundamentais, tem força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[1], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada  de caráter jurídico-positivo”.[2]

O segundo princípio é o da aplicação imediata da lei processual penal, preconizado pelo art. 2°. do Código de Processo Penal e que proclama a regra da aplicação imediata (tempus regit actum).

Pois bem.

Com a nova redação do art. 225, não mais será exigida a representação da vítima para o exercício da ação penal pública, ainda que se trate de maior de dezoito anos e pessoa não vulnerável. Pergunto: e relativamente aos fatos praticados (nos termos do art. 4º. do Código Penal) antes da alteração legislativa, continuará sendo exigível aquela “condição específica de procedibilidade”, quando se tratar de vítima maior ou não vulnerável?

A resposta exige que se defina a natureza jurídica da referida norma: seria ela de natureza processual, penal ou híbrida/mista (penal e processual)? Se se admitir a natureza puramente processual, não há que se falar em retroatividade ou irretroatividade, sendo a sua aplicação imediata, independentemente do tempo do crime. Porém, se aceitarmos que é uma norma de caráter também penal (portanto, híbrida ou mista), a irretroatividade impõe-se (ou a ultra atividade da lei revogada), pois, indiscutivelmente, sendo disposição penal mais gravosa deve ser observado o princípio da irretroatividade. Aqui, é importante que se diga não estar se confundindo lei com norma jurídica.

Esta matéria relativa a normas híbridas ou mistas, apesar de combatida por alguns, mostra-se de fácil compreensão. O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[3] Ele explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.”[4]

Informa, ainda, que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[5]

Feitas tais considerações, lembra-se que por lei penal mais benéfica não se deve entender apenas aquela que comine pena menor, pois “en principio, la retroactividad es de la ley penal e debe extenderse a toda disposición penal que desincrimine, que convierta un delito en contravención, que introduzca una nueva causa de justificación, una nueva causa de inculpabilidad o una causa que impida la operatividad de la punibilidad, es dicer, al todo el contenido que hace recaer sobre la conduta”, sendo necessário que se tenha em conta uma série de outras circunstâncias, o que implica em admitir que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Zaffaroni.[6]

Portanto, normas de Direito Material não são apenas as de caráter incriminador, as que definem fatos puníveis e cominam as respectivas sanções (normas penais em sentido estrito), mas “também aquelas que completam o sistema penal com os seus princípios gerais e dispõem sobre a aplicação e os limites das normas incriminadoras”, como bem esclarece Aníbal Bruno.[7]

Ora, um dispositivo legal (aqui, repita-se, não se está confundindo, por óbvio, norma com lei) que trate de exigir (ou deixar de exigir) a representação para o exercício de uma ação penal pública, tem, indiscutivelmente, um aspecto híbrido. Tratando-se de uma “condição específica de procedibilidade”, visível é o seu caráter processual penal. Nada obstante, há também um aspecto que “toca” o Direito Material, pois, como se sabe, a representação submete-se a um prazo decadencial (seis meses), findo o qual ocorrerá a extinção da punibilidade, pela decadência, nos termos do art. 107, IV, do Código Penal. Eis onde se situa a “face” material do art. 225 do Código Penal. Trata-se, portanto, de uma norma processual penal material.

A propósito, veja-se Carlos Maximiliano: “Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[8]

Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[9]

Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho: “Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.[10] Atente-se, ademais, “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio”.[11]

Diante do exposto, chega-se à conclusão que, relativamente aos crimes contra a dignidade sexual tipificados nos arts. 213 a 218-C do Código Penal, e praticados antes da vigência da nova lei (e aqui relevante será a data da ação ou da omissão, nos termos do art. 4º. do Código Penal), o início da persecução penal (desde a instauração do Inquérito Policial) continua a depender da representação, salvo, evidentemente, tratando-se de vítima menor de dezoito anos ou vulnerável. Em outras palavras: o novo art. 225 não pode retroagir, sendo forçoso admitir uma verdadeira ultra atividade da disposição antiga.

Referências:

[1] Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editora Tecnos, 1993, p. 67.

[2] Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2001, p. 62.

[3]  Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Editora, págs. 219/220.

[4]  Ob, cit., p. 220.

[5] Idem.

[6] Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, Buenos Aires: Editora Ediar, 1987, págs. 463 e 464.

[7] Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, Tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 181.

[8] Direito Intertemporal, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314.

[9] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1975, 124.

[10] O Processo Penal em Face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.

[11] Eduardo J. Couture, Interpretação das Leis Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 4ª, ed., 2001, p. 36 (tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano).

 

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Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.
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