O estupro como animalidade

Coluna Democracia e Política

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protesto feminista

Mulheres fazem ato contra cultura do estupro, na Igreja da Candelária, centro da capital carioca. | Créditos: Tomaz Silva/Agência Brasil


Animais e o sagrado

“Eles (os 33 estupradores) são uns animais”, foi o brado que ressoou nas passeatas de norte a sul do país realizadas em defesa da mulher e da vítima do estupro, a jovem carioca de 17 anos. Mas essas multidões sabem exatamente o que isso significa e o quanto estão certas?

George Bataille (1897-1962), dedicou um capítulo de seu “Teoria da Religião” (Autêntica, 2015) para caracterizar a animalidade. Bataille é um notável estudioso do sagrado e crítico precoce do capitalismo.  Combinou Hegel, Nietzsche, Freud e Mauss num sistema original para pensar o humano levado ao extremo, refletindo sobre os significados da transgressão na cultura, de forma similar ao trabalho do antropólogo René Girard.  Escrita originalmente em 1948 e para muitos, um livro de difícil classificação, Teoria da Religião era parte de um trabalho onde  Bataille queria mostrar a tese de que o Capital surge para interromper a dimensão do sagrado das sociedades primitivas.

O universo religioso é superior à religião, é um movimento geral que abrange a totalidade do social  e que o sociólogo Michel Maffesoli resgatou na sua análise da origem da palavra, re-ligare, conceito que quer afirmar que, de alguma forma, estamos todos ligados, ou conectados, para usar uma expressão do filósofo Byung Chul-Han.  O que Bataille procurou ao longo de sua obra era encontrar um esquema alternativo ao modelo econômico do mercado, do valor de troca e da produção, daí seu esforço em afirmar que mais do que a produção organiza a sociedade, para ele a base da sociedade é a forma como nos relacionamos com o sagrado.

Referências às religiões totêmicas e aos animais aparecem no pensamento do filósofo e  terminaram por ocupar um lugar importante em sua obra. Por isso situa, no capítulo que denominou “Os dados fundamentais” da sua Teoria das Religiões, três elementos a partir dos quais poderia ser construída: a análise da distância entre animalidade e a humanidade, a humanidade na elaboração do mundo profano e o sacrifício, a festa e os princípios do mundo sagrado, dimensões que, como o autor defende, da mesma forma que o sociólogo Jean Baudrillard em “A troca simbólica”,  não desaparecem da vida humana sob o capital.

É que Teoria da Religião era um livro pensado por Bataille para fazer parte de uma obra que seria chamada “A Suma Ateológica”, composta pelos livros A experiência Interior, O Culpado, Sobre Nietzsche e escrita no momento que elaborava A Parte Maldita, esta sim, um dos grandes libelos contra a produção em geral e teoria econômica pensada a partir do momento em que o Capital engendrou na produção o que ele denominou de excesso.

O filósofo francês Georges Bataille. | Créditos: Source, Fair use, https://en.wikipedia.org/w/index.php?curid=25136740

Comer

Mas Teoria das Religiões, escrita em 1948, só foi publicada em 1974 pela Gallimard, tendo sido por esta razão absorvida por raros pensadores o seu pensamento. Por que a Animalidade é tão fundamental para Bataille e como suas características nos auxiliam a entender o estupro perpetrado contra a jovem adolescente carioca? Para Bataille, “a animalidade é a imediatez ou a imanência”. O que chama a atenção  e que não  pode ser desprezado, é que para Bataille a situação precisa e imanente que define a animalidade  “é dada quando um animal come outro”(p.23).

Porque este detalhe é importante? Há um simbolismo que remonta as análises do antropólogo Claude Lévi-Strauss que surgiram em suas pesquisas sobre povos indígenas do sul do Brasil, onde o autor encontrou povos para os quais em sua língua um verbo significa ao mesmo tempo “comer” e “copular”. Para os araweté, por exemplo, suas almas são devoradas pelos deuses após a morte e ressuscitadas como seres vivos.

Mas neste povo, a relação entre homens e deuses é sempre vista por tais povos primitivos sob o ponto de vista masculino, quer dizer, só homens podem ir ao céu e voltar vivos sem serem devorados, o que não acontece com as mulheres. Por isso as mulheres nesta cultura não podem se tornar xamãs e são impedidas de guerrear, sendo apenas “a comida predileta” (sic) dos deuses assumindo a forma de canibalismo divino e sexual.

Representação da cena canibal | Créditos: Theodor de Bry – Trabalho próprio pelo carregador, Photography by The Photographer, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=44893797

Por inúmeros caminhos a analogia entre “comer” e “sexo” chegou aos tempos atuais, onde pesquisadores apontam na gíria do verbo comer sua conotação sexual.

Esse sentido “chulo” do verbo comer é encontrado na literatura brasileira desde os anos 20, ainda que, os arawetés somente tenham entrado em contrato com a civilização nos anos 70 e  por esta razão, considera-se que outras populações indígenas também utilizavam a conotação sexual de comer com o sexo que terminaram por influenciar a cultura nacional.  Essa conotação não existe apenas na língua portuguesa, mas também em espanhol, havendo referências para seu uso no México em função de sua população indígena.

Quer dizer, aquilo que Bataille identifica com animalidade, “aquele que come outro”, adquire um novo sentido quando buscamos o significado simbólico que as situações de estupro encarnam. Aqui, o estupro é entendido como o retorno do recalcado, retorno da animalidade em estado puro:  estuprar é  “comer” (sic) alguém a força e isto é também o retorno do feitio canibal do festim diabólico. Esse é, segundo Baudrillard, o problema do simbólico, do religioso, ele nunca desaparece, sempre retorna sob outras formas. Se o ato amoroso tem a ver com a vida, se a prática consensual do sexo tem relação com a alegria, o estupro é seu contrário.

Negação da humanidade

O ponto de vista que Bataille sugere é que toda vez que um animal come outro ele nega sua transcendência ”animais de uma determinada espécie não comem uns aos outros…” afirma o autor. Exceto o homem porque ele é capaz de estupro é o que queremos sugerir. Mas a interpretação do estupro como retorno de nossa animalidade é ainda mais difícil a partir de  Bataille, já que o autor reconhece que quando nos distinguimos do objeto  podemos nos identificar ao humano  ”a rigor, o animal pode ser visto como um sujeito para o qual o resto do mundo é objeto, mas nunca lhe é dada a possibilidade de ver a si mesmo assim.

Elementos dessa situação podem ser apreendidos pela inteligência humana, mas o animal não pode realiza-los”(p. 24). Não é essa  exatamente a posição do estuprador, ele não consegue sequer ver o Outro porque não pode reconhecer a ihumanidade do ato que pratica?

Só isso pode explicar porque os estupradores da jovem de 17 anos colocaram as imagens na internet, e o ponto é importante porque,  se o estuprador é um animal, isto é, um ser humano que permitiu que seus institutos animais guiassem sua razão, significa que, na realidade, sequer a distinção entre sujeito e objeto foi lhe posta porque ela simplesmente não existe na relação dos animais com sua vítima “o animal (sic) que outro animal come ainda não está dado como objeto”, diz Bataille.

A razão, afirma o autor de “A experiência interior”, dá-se porque  “ na medida em que somos humanos [é] que o objeto existe no tempo em que sua duração é apreensível”. O estuprador não é um homem decaído em sua moral, é um homem decaído em sua ontologia, em sua natureza de ser humano, que permite o retorno de sua animalidade recalcada. O estuprador é ihumano (Lyotard).

Atentar à humanidade

O ponto é compreender o inteiro significado que atribuímos ao estupro como retorno da animalidade. É essa total falta de consciência da existência do Outro que faz do estuprador um animal, ele afirmar que ele é incapaz de considerar a mulher como sujeito significa que o estuprador está no limite da consciência do ser, o que não deve servir para desresponsabiliza-lo, ao contrário, deve servir para entender o significado das maneiras como falamos dele. Ou antes, a maneira correta de falar de um estuprador não é falar juridicamente, que atentou a Lei, aos regulamentos, etc, etc, mas que atentou à humanidade, aquilo que nos faz humanos.

É só nesse sentido que o ato do estupro é um ato negador da política: o salto interpretativo se faz na medida em que o ser humano se faz humano pela capacidade de reconhecer e negociar com outro – exatamente como se faz no relacionamento amoroso –,  centro do campo social. Para o estuprador, sequer esse horizonte é vislumbrado porque nele tudo é animal, o estupro é sua forma violenta de “comer” (sic) o outro, exatamente porque em nossa cultura associamos o sexo ao “comer”. Talvez a verdadeira luta das mulheres  esteja na ressignificação desses termos, de que de agora em diante, possamos educar as gerações sem a identidade entre “comer” e “sexo”.

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Manifestação de mulheres contra o machismo e a cultura do estupro na Avenida Paulista. | Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil

Um estuprador não é o extremo, é a redução

O estupro é uma ação animal porque reduz a imanência, “humanidade”, à imediatez dos sentidos. O mundo do estuprador – além de ilegal, é claro, contrariando a Lei, os direitos, etc, etc – é um mundo fechado onde seu sujeito é incapaz de alcançar a transcendência. O estuprador não leva ao extremo o que pode fazer um ser humano, ao contrário, ele é prova da redução de homens ao estado de animais ”inevitavelmente, diante de nossos olhos, o animal está no mundo como a água está na água”.

Quer dizer, com a civilização e a Lei, imaginávamos que havíamos superado o animal que existe no homem, mas ele está a espreita: “O animal tem diferentes condutas de acordo com as diferentes situações”, diz. Neste ponto, Bataille abre a perspectiva para entender o estupro não apenas como uma violência animal que emerge contra a razão, mas como uma expressão radical das formas de violência sobre a subjetividade.

Não é o que percebemos em determinadas situações de violência, como o bullyng, o assédio moral, essas violências cotidianas, comezinhas, de homens contra homens e contra mulheres, elas não são  sentidas pelas vitimas exatamente da mesma forma, como estupro? A forma limite da violência simbólica não está assumindo a forma-estupro? ”Não podemos dizer de um lobo que come outro que ele esteja violando a lei que afirma que, normalmente, os lobos não comem uns aos outros. Ele não viola essa lei, simplesmente ele se encontrou em circunstâncias nas quais ela não vigora mais” (p.27).

Nesse sentido, o estuprador é o pior ser humano porque ele é incapaz de reconhecer o Outro – o que exige o Tempo – e portanto, é incapaz de reconhecer a morte  “O animal perdeu a dignidade de semelhante do homem, e o homem, percebendo em si mesmo a animalidade, vê-a como uma tara…comer (sic) o homem é  abominável”(p.36).

Para Bataille, o que nos define como humanos está na relação que estabelecemos com o corpo do Outro. Por esta razão, mesmo o estudo da anatomia foi por muitos anos algo escandaloso. E o que mais mexeu com nossos fantasmas talvez tenha sido Salò ou 120 dias de Sodoma, onde a atitude humana para com o corpo era aterradora “A glória do corpo humano [é] ser o substrato de um espírito”, diz Bataille. No estupro, o homem revela a completa redução ao estado animal, e esse sentido não é porque se trata de um ato violento apenas,  o que é, mas que se trata de um ato redutor de sua humanidade e aniquilamento de seu espírito.

 

 

 downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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